Clima global, meio ambiente e justiça social
É problemático concentrar o foco da discussão nas possibilidades de catástrofe. Ora, se o desastre é iminente, basta operar sobre ele, sem ser necessário mudar os hábitos consumistas ou os graves problemas ambientais e sociais que afetam nosso cotidianoAmérico Kerr
Explicações para a determinação do clima terrestre baseiam-se em fundamentos físicos bem aceitos na comunidade científica. A energia da radiação solar que chega à Terra é o “motor” do clima. Enquanto os gases atmosféricos são relativamente transparentes à radiação solar direta, gases-estufa absorvem grande parte da radiação emitida pela superfície aquecida da Terra. Uma parte dessa energia retida escapa para o espaço e outra volta a aquecer a superfície terrestre. Esse processo é conhecido como efeito estufa, e sem ele estima-se que a temperatura média da superfície terrestre seria de inóspitos –18º C, e não de 14,5º C como temos hoje. O efeito estufa, portanto, é propício à vida como ela é em nosso planeta. O vapor de água na atmosfera é o principal gás-estufa, contribuindo com quase dois terços da radiação absorvida, enquanto o CO2 responde por pouco menos de um terço do efeito, e os demais gases relevantes pesam cerca de 3% (metano, óxido nitroso, ozônio e clorofluorcarbonetos).2 O que tem causado grande preocupação são os riscos de intensificação do efeito estufa por ação antropogênica, particularmente porque 85% dos recursos energéticos que utilizamos vêm da queima de combustíveis fósseis. Esta emite especialmente CO2 e metano, podendo ainda gerar ozônio, os quais, com outras atividades antropogênicas, estariam aumentando a concentração de gases-estufa na atmosfera.
Organizado pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e pela Organização Meteorológica Mundial (OMM), o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) vem se reunindo periodicamente para debater, organizar e publicar relatórios que expressam uma análise das tendências observadas no clima da Terra e suas projeções futuras, avaliar seus impactos sobre os sistemas socioeconômicos e naturais, bem como sugerir medidas para mitigá-los. Em 2007 foi publicada a quarta série de relatórios, iniciada em 1990, estando em preparação uma quinta série.
A estimativa do IPCC em 2007 era de que a temperatura média da Terra, no intervalo de 1850 a 2005, teria aumentado 0,8º C, com incerteza de 0,2º C. Os possíveis resultados desse aquecimento seriam o derretimento de geleiras e a consequente elevação do nível dos oceanos (que também ocorreria pela expansão térmica da água), o aumento da quantidade de nuvens, de vapor de água e, portanto, da quantidade de chuvas, entre outras perturbações do clima.3
Essas tendências estão indicadas como bastante prováveis, mas não são certezas absolutas. Assim também é considerado muito provável, mas não absolutamente certo, que as mudanças climáticas sejam de origem antropogênica, e não oscilações naturais do clima. A variação detectada para a temperatura é um valor próximo das incertezas de medida, e a potência energética adicional líquida retida na atmosfera por ação antropogênica é estimada em 1,6 W/m². Isso representa cerca de 1% do efeito estufa total,4 e a barra de incerteza em seu cálculo é de 1,8 W/m².
Não é tarefa simples medir o clima mundial ou modelar e projetar seu comportamento futuro. E temperatura é apenas um dos parâmetros. Qualquer alteração na radiação recebida do Sol ou perdida para o espaço, ou mudanças na redistribuição dentro da atmosfera ou entre esta, a terra e os oceanos podem afetar o clima. Há forçantes positivas ou negativas, conforme aqueçam ou resfriem o sistema. Emissões de gases-estufa seriam uma forçante positiva. Porém, o uso de combustíveis fósseis, ao gerar tais gases, também propicia a formação de partículas que podem espalhar a radiação solar, sendo esta uma forçante negativa. Já a fuligem absorve radiação com alta eficiência, por isso seria uma forçante positiva. O conjunto dos aerossóis troposféricos representaria uma forçante líquida negativa.
Há ainda uma série de efeitos de realimentação positiva ou negativa, que pode intensificar ou atenuar as mudanças. Temperaturas mais elevadas, por exemplo, provocam uma maior taxa de vapor de água na atmosfera, realimentando o aquecimento. Mas isso também pode alterar o padrão das nuvens, que tanto podem provocar aquecimento quanto resfriamento, dependendo das características prevalecentes. Por exemplo, o albedo (reflexão da luz) é uma forçante negativa, enquanto o calor liberado na condensação do vapor de água é uma forçante positiva. O vapor de água e as nuvens representam alguns dos principais fatores de incerteza nos modelos climáticos, não havendo um modelo físico teórico para o tratamento das nuvens.5
Os oceanos têm uma enorme capacidade de armazenamento de energia térmica, podendo mascarar tendências climáticas. Sua grande capacidade sequestrar CO2 relaciona-se intensamente com a concentração desse gás-estufa na atmosfera, podendo provocar efeitos de realimentação positiva ou negativa, dependendo da resposta desse sistema complexo. Erupções vulcânicas ocorrem aleatoriamente, gerando grandes forçantes negativas, cujos efeitos podem persistir por alguns anos.
A radiação solar recebida pela Terra, motor principal do clima, sofre oscilações naturais características. Uma delas está associada ao número de manchas solares que têm apresentado picos progressivos, em ciclos de onze anos, com amplitude de aproximadamente 1,3 W/m² (no topo da atmosfera). De maior amplitude, porém mais lentas, são as variações associadas à inclinação da Terra e à sua órbita em torno do Sol – precessão, obliquidade e excentricidade –, induzindo ciclos de radiação com períodos em torno de 21 mil, 41 mil e 100 mil anos, respectivamente. Estudos paleoclimáticos indicam variações de temperatura de até 10º C, fortemente associadas a esses ciclos e à intensidade de radiação solar deles decorrentes no Hemisfério Norte (onde há maior superfície de terra). Análise das bolhas de ar presas no testemunho de gelo de Vostok ao longo de 600 mil anos indica que as concentrações de CO2 e metano, importantes gases-estufa, também acompanharam essas oscilações.
É evidente a complexidade tanto de medir quanto de modelar o clima global. Mas isso não é uma peculiaridade dessa área científica. Na verdade, todos os campos da ciência buscam permanentemente gerar teorias e montar modelos que expliquem o Universo natural, desde sua constituição submicroscópica até as dimensões amplas do Cosmo. A ciência evolui através de um processo dialético em que as pesquisas fundamentam-se no conhecimento estabelecido, mas que somente consegue transpor seus limites à medida que questiona e põe em dúvida, constantemente, aquilo que acredita saber. A capacidade de a ciência explicar cada vez mais fenômenos traz confiança no método científico, mas o conhecimento está em permanente transformação, e os limites do que ignoramos permanecem infinitos.6
Sedução da catástrofe
A grande visibilidade e a intensa relação política, econômica e social da questão climática global contaminam seu ambiente de pesquisa científica. Isso tem induzido uma focalização muito intensa dos pesquisadores participantes do IPCC sobre a perspectiva de uma catástrofe climática. Realizam um trabalho de boa qualidade, mas questões pertinentes acabam eclipsadas em razão do bombardeio externo de pares que desejam desmoralizar resultados e conclusões, porque comprometidos com interesses do capital em manter um modelo social consumista, perdulário e sem compromisso com as gerações futuras. Essa é uma armadilha perigosa para o fazer ciência, pois dúvidas são normais e indispensáveis à evolução do conhecimento.
Mas não é a racionalidade científica que determina a aceitação popular da possibilidade de uma catástrofe climática. É, sim, sua experiência frequente com impactos antropogênicos catastróficos localizados (enchentes, secas, efeito ilha de calor, poluição atmosférica etc.).
Mas é problemático concentrar o foco da discussão nas possibilidades de catástrofe. Ora, se o desastre é iminente, basta operar sobre ele, sem ser necessário mudar os hábitos consumistas ou os graves problemas ambientais e sociais que afetam nosso cotidiano. As propostas de geoengenharia, por exemplo, estão aí para isso: colocar espelhos em órbita em volta da Terra para modular a entrada da radiação solar; emitir grande quantidade de partículas de sulfato na atmosfera, pois elas também espalham de volta parte da radiação solar; borrifar grande volume de água dos oceanos na atmosfera para gerar núcleos de condensação que possibilitem a formação de camadas de nuvens para refletir a radiação solar; fertilizar maciçamente os oceanos para estimular o crescimento de fitoplâncton que consuma CO2; selecionar variedades vegetais com folhagens mais claras e que reflitam mais radiação solar; pintar os telhados de branco. Já houve um encontro de pesquisadores para discuti-las, nos Estados Unidos, em março de 2010.7 Análises de raízes históricas da geoengenharia identificam uma forte ligação com projetos militares que visam ao controle do tempo como arma de guerra.8
Ainda que suas propostas soem estapafúrdias e contenham outros riscos ambientais evidentes, essa linha de intervenção vem ganhando espaço quando o foco do debate é apenas conter a catástrofe climática. Afinal, se a perturbação antropogênica soma 1% de energia, basta construir engenhocas humanas que subtraiam 1% e estamos no equilíbrio! Assim como as guerras, essas intervenções podem propiciar negócios bilionários, e mais outros depois para consertar os desequilíbrios que devem provocar tais engenharias.
Expansão dos biocombustíveis
Enquanto esse tipo de proposta não tem encontrado respaldo no IPCC, a expansão dos biocombustíveis é estimulada. Mas sustentabilidade não tem sido sua marca.
Os conversores vegetais são captores naturais de radiação solar, sendo a mais antiga fonte de energia usada pela humanidade.9 São os alimentos que nos dão força vital e a luz e calor que desde os primórdios se obtiveram pela combustão de lenha, palha e esterco seco. Mas os processos físico-químicos que permitem extrair combustíveis, como óleo e álcool de vegetais, possibilitam um modo controlado de armazenar e utilizar a energia solar, cuja natureza é intermitente e flutuante. Quando as plantações crescem, elas reincorporam o CO2 emitido na queima dos combustíveis, razão pela qual têm sido considerados limpos.
Certamente essa não é a opinião daqueles que habitam as regiões canavieiras do país. Em períodos de safra, a população do interior paulista convive com as cinzas e a fumaça sufocante das queimadas da cana que precedem a colheita, bem como com o irritante odor do vinhoto. Tampouco são inofensivos os poluentes emitidos por veículos que usam álcool ou biodiesel. Ademais, para movê-los, estima-se que seria preciso cobrir quatro vezes a superfície total do Brasil (com cultivar de eficiência similar ao da cana na produção de combustível) para reduzir 50% das emissões mundiais de gases-estufa até 2050.10 Além disso, o atual sistema de produção de biocombustíveis e sua expansão estão envolvidos com forte espoliação de trabalhadores e grandes impactos ambientais no Brasil e no mundo, comprometendo a segurança alimentar.11
Biocombustíveis podem representar uma forma sustentável de captação de energia solar se produzidos e utilizados com respeito à vida e de modo efetivamente sustentável. Mas não quando se destinam a manter um sistema de transporte ineficiente, poluidor e criminoso. Caminhões consomem muito mais energia que navios e trens no transporte de cargas. Veículos individuais usam cerca de trinta vezes mais energia que ônibus e setenta vezes mais que metrô.12 A poluição urbana do ar, em grande parte associada às emissões veiculares, mata prematuramente cerca de 1,3 milhão de pessoas em todo o mundo, enquanto acidentes com veículos ceifam a vida de mais 1,3 milhão de pessoas e deixam lesões em outros 20 milhões a 50 milhões.13 Privilegiar os sistemas coletivos de transporte, para indivíduos ou cargas, possibilitaria transportes mais rápidos e seguros, grande economia de energia e redução da poluição do ar.
A energia solar ainda é pouco aproveitada. Em média, ela deposita na superfície terrestre, ao longo de um ano, oitenta vezes a energia das reservas de combustíveis fósseis conhecidas. Certamente há limitação de conversores eficientes e limpos que a acoplem aos dispositivos que circundam nossa vida moderna, movidos particularmente a energia elétrica. Mas é evidente também a mão pesada das grandes corporações produtoras de energia que querem manter seus oligopólios e só têm olhos para soluções centralizadas de captação e exploração desse recurso energético. Espalhada sobre a superfície terrestre, a energia solar oferece uma possibilidade ímpar de socialização de sua captação e consumo que poderia ser desenvolvida por governos comprometidos com interesses populares.
Essas questões não são exceções, mas regra. A solução que traz maiores benefícios diretos à vida dos cidadãos representa muito menos emissão de gases-estufa e poluentes agregados. O debate sobre a crise climática tem o mérito de estar conseguindo pressionar as grandes corporações econômicas e os governos que as servem a discutir alternativas para equacioná-la. Mas é indispensável que se vá à raiz dos problemas, enfrentando a catástrofe cotidiana da poluição do ar, da degradação ambiental e da desigualdade social. Solucioná-la significaria também prevenir os danos adicionais que podem advir de possíveis mudanças climáticas. São apenas os objetivos de lucro imediato e a qualquer custo que têm sustentado a negativa dos impérios econômicos em assumir medidas que tragam justiça social e sustentabilidade ao nosso planeta.
Américo Kerr é Professor do Departamento de Física Aplicada da USP.