Colapso da confiança
Como o episódio envolvendo a jornalista Miriam Leitão sinaliza para uma crise mais profunda
Em junho de 2017, Miriam Leitão publicou em sua coluna que havia sido assediada por militantes petistas num voo comercial de Brasília para o Rio de Janeiro. Havia se passado pouco mais de um ano do golpe de 2016, que a Globo e a jornalista tinham endossado, e, por coincidência, o voo 6237 da Avianca decolou da capital do país com uma inusual quantidade de militantes que haviam estado em um congresso do Partido dos Trabalhadores e trajavam camisas do evento. Na ocasião, a jornalista escreveu: “Sofri um ataque de violência verbal por parte de delegados do PT dentro de um voo. Foram duas horas de gritos, xingamentos, palavras de ordem contra mim e contra a TV Globo. Não eram jovens militantes, eram homens e mulheres representantes partidários. Alguns já em seus cinquenta anos. Fui ameaçada, tive meu nome achincalhado e fui acusada de ter defendido posições que não defendo”.
Quando Miriam Leitão sofreu o escracho, o Brasil passava por momentos de intensa crise política, com Michel Temer, o então presidente que sucedera a Dilma Rousseff no ano anterior, balançando no cargo em função de sucessivos escândalos com malas de dinheiro e conversas privadas não agendadas com empresários como Joesley Batista.
Quatro anos antes do episódio descrito por Miriam Leitão, grandes manifestações sacudiram o país. As chamadas Jornadas de Junho de 2013, em que militantes, com pautas progressistas, puxadas pelo Movimento do Passe Livre (MPL), haviam iniciado um processos de mobilização nas ruas que logo foram capturadas pelas direitas, não sem um eficiente trabalho da imprensa e de inúmeros de seus colunistas, que abriram as portas para a inflexão que se verificou nos anos a seguintes, quando o país assistiu a uma imensa ofensiva conservadora e reacionária.
Na esteira das grandes manifestações de 2013, o ex-capitão do Exército, expulso por insubordinação, e conhecido pelo seu discurso de agitador fascista, despontou como favorito ao segundo turno. Jair Bolsonaro, então deputado federal e recém filiado ao PSL, após nove anos no PP, aparecia em segundo lugar nas pesquisas presidenciais. Estava atrás apenas do ex-presidente Lula, cujo partido havia sido retirado do poder por uma manobra jurídico-parlamentar-midiática que usou o dispositivo constitucional do impeachment para interditar a primeira e única mulher eleita à presidência na República.
Nunca antes na história do Brasil, nenhum partido e/ou figuras públicas tinham sido alvo de tão sórdida campanha de difamação como ocorreu com o PT, Dilma e Lula. A grande imprensa teve imensa responsabilidade pelo que sucedeu, como se viu e depois se revelou pela razoável literatura escrita sobre os acontecimentos daqueles anos.
Ainda assim, tudo o que os militantes petistas supostamente fizeram diante de uma jornalista que representava uma das faces mais visíveis daquilo que logo foi identificado por muitos como um golpe e que os militantes de esquerda sentiam na pele na forma de ódio e humilhação foi xingá-la no avião (algo que algumas testemunhas desmentiram). Não houve ataque misógino e nem nenhum tipo de desrespeito pela história de vida de Miriam Leitão, como havia acontecido com Dilma e com Lula no âmbito da ofensiva golpista pelo impeachment e por ocasião de toda a espetacularização promovida em torno do tema da corrupção e da operação Lava Jato.
A crise de confiança do jornalismo profissional
A grande imprensa no Brasil, o jornalismo profissional, como acontece em boa parte do mundo, vive uma profunda crise de confiança. Acostumada a manipular processos políticos e opiniões em favor de interesses inconfessáveis e de uma lógica econômica que se estabelece por cima da democracia e do jogo político, inclusive o eleitoral, todos os que são minimamente informados sabem que o monopólio das comunicações tem impedido o debate sobre temas fundamentais que afetam a vida da maioria do povo.
No que tange aos elementos deflagradores de tal crise e, particularmente à atuação da grande imprensa nos acontecimentos da história recente do Brasil, que conduziram ao impeachment e à eleição de Jair Bolsonaro, após a operação de captura dos protestos de 2013 pela extrema direta, é visível o modo como mecanismos corruptores da democracia foram postos em movimento. Conforme observou Antonio Engelke em artigo para a revista Piauí, tais procedimentos terminaram “abrindo caminho para a vitória de um projeto antidemocrático de poder”, algo que se vincula a uma grande crise da imprensa, que ajudou a erodir a democracia.
Em vista disso, veículos da grande mídia, associados a agentes econômicos que costumam atuar nas sombras, a não ser pelos intelectuais orgânicos que são chamados a opinar em veículos de grande alcance e circulação falando como únicos especialistas, empurraram goela-abaixo dos brasileiros a reforma trabalhista, a lei da terceirização e a EC 95 (sobre o teto dos gastos) de Temer, como haviam feito em outras ocasiões e viriam fazer nas reformas encaminhadas por Paulo Guedes e Bolsonaro, de semelhante conteúdo antipopular e sem a possibilidade de contraponto. O que se disse na imprensa, que não enquadrava nenhuma perspectiva distinta desse falso consenso em torno dessas reformas, é que tais medidas eram indispensáveis, algo de que não se poderia fugir e, acima de tudo, melhoraria a vida de todos, ao gerar milhões de empregos, coisa que, como todos sabem, nunca aconteceu.

O resultado das escolhas feitas por práticas recorrentes desse tipo de jornalismo, além, por óbvio, de implicar na ascensão da extrema direita e na eleição de Bolsonaro, terminou sendo, também, a crise de confiança que os grandes veículos de mídia passaram a enfrentar, o que lhes faz perder audiência, credibilidade e, é claro, muito dinheiro. Nesse terreno, como aludiu a jornalista Patrícia Campos Mello, vítima da máquina de ódio do bolsonarismo em função de sua reportagem sobre os disparos em massa de Whatsapp, em 2018, em prol da campanha de Bolsonaro, seria preciso que a imprensa fizesse uma autocrítica, considerando que ela foi “um dos fatores que possibilitaram o surgimento dessa era [de pós-verdade]”.[1]
Também sobre o assunto, Matthew D’Ancona aponta que foi por esse “colapso da confiança” que surgiu a base social para a pós-verdade e todo o tipo de erosão dos pilares da democracia, que deve estar ancorada na confiança e no direito à verdade factual, esteio máximo dos pactos firmados tacitamente pelos cidadãos nos sistemas representativos, que pressupõem, entre outras coisas, uma imprensa livre e plural.[2]
Pelos efeitos de tal crise, ou do colapso da confiança, que tomou de assalto o principal veículo da grande mídia brasileira, que conspirou abertamente para tirar Lula das eleições de 2018, é que aqueles que hoje se recusam a assistir o Jornal Nacional ou qualquer programa da Rede Globo em função dessa desconfiança, terminam caindo em outras emissoras, vitaminadas por verbas públicas que lhes tornam condescendentes com os absurdos, além de transitarem nas bolhas de ódio das redes sociais e de inúmeros vídeos do YouTube que se esmeram em propagar desinformação.
Por tudo o que foi dito, não deveria surpreender que sejam os jornalistas alguns dos profissionais alvejados pela onda de ódio. Em relatório produzido em 2022 pela Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), verificou-se que em 2021 cerca de 230 profissionais da imprensa e veículos de comunicação sofreram alguma espécie de ataque, 22% a mais do que no ano anterior. Pelo mesmo documento, aponta-se ter havido 4 mil ataques diários à imprensa, o que significa 167 ataques por hora e quase três por minuto, num universo onde foram encontrados “1,5 milhão de posts pejorativos, com palavras de baixo calão e expressões depreciativas” dirigidas à jornalistas e veículos de imprensa. E se já parecem absurdos esses números, saber que um dos principais autores de ofensas à jornalistas é o próprio presidente da República dá a dimensão do tamanho do precipício que o Brasil despencou.
“Eu tenho pena é da cobra”
No início de abril de 2022 Miriam Leitão foi vítima de um post de Eduardo Bolsonaro que ironizou o fato de que a jornalista tinha sido vítima da tortura por agentes da ditadura militar (1965-1985) quando estava grávida. Entre outras humilhações e suplícios, Miriam foi colocada numa cela em companhia de uma jiboia por várias horas, durante o período em que estivera presa em função de sua militância no PCdoB. A propósito de assunto, e pela repercussão do caso, ganhou impulso um vídeo em que Jair Bolsonaro, ao ser entrevistado por Matheus Leitão, filho de Miriam, que tinha acabado de publicar um livro sobre o tema (Em nome dos pais), indaga ao então candidato à presidente se ele reitera que teria dito “coitada da cobra” ante a informação de que Miriam Leitão, quando torturada, havia sido posta ao lado de uma cobra, ao que o então deputado diz, sem vacilo, “reitero”.
No atual episódio envolvendo Eduardo, uma das primeiras figuras públicas que saíram em defesa da jornalista das organizações da família Marinho foi Lula
Quando uma mulher é atacada de forma misógina, como foi Dilma entre 2015 e 2016; quando uma vítima da tortura é ironizada em sua dor, como foi Miriam Leitão que ouviu piadas de Jair e Eduardo Bolsonaro; quando uma figura pública é objeto de linchamento e ainda é presa quando se sabe (ou se desconfia) que possa ser inocente, como aconteceu com Lula, a atitude de gente decente é ser solidária com essas pessoas, independente do que pensamos sobre elas, não há porque tergiversar.
Pode-se não compartilhar da visão de mundo da comentarista da Globo, que por certo obedece às linhas editoriais dos seus patrões, mas não se pode vacilar em se prestar a mais irrestrita solidariedade a Miriam Leitão e seus familiares. É preciso, entretanto, lembrar que as escolhas que são feitas pelo jornalismo profissional e por muitos jornalistas hoje vão repercutir no futuro. Não digo isso para justificar o injustificável do ato repugnante de Eduardo Bolsonaro ou de seu pai, que ficaria esquecido frente a tantos outros crimes, não fosse o novo tuíte postado pelo filho. Digo para que não se repitam os erros de se chamar de “escolha muito difícil” às opções de segundo turno numa eleição presidencial quando se precisa decidir entre a democracia e o fascismo, a civilização e a barbárie, como fez o Estadão em 2018.
Em 2017 Miriam Leitão assinou sua coluna em O Globo sobre o “ódio à bordo” e eu escrevi minha coluna no jornal A Tarde, de Salvador, chamando atenção para algumas coisas que me pareciam importantes na época e que permanecem sendo fundamentais hoje. Na altura eu anotei:
“Uma das principais comentaristas do país não pode alegar inocência diante da responsabilidade cumprida na perpetuação das mentiras quanto aos significados das reformas levadas à cabo pelo governo que até outro dia era integralmente apoiado pela Globo. Portanto, soa risível ler a jornalista escrever que os delegados do PT que supostamente lhe ofenderam tenham mostrado ‘uma visão totalmente distorcida’ do trabalho que exerce. Ao contrário do que afirmou, Miriam Leitão demonstrou ser inimiga de governos que lhe pareciam populares. Ainda torceu pela crise, agoirou os governos de Lula e Dilma e não gozava de nenhuma autoridade para alertar sobre supostos erros cometidos pelos petistas a quem acusava de irresponsáveis e populistas.”[3]
Nessa altura, ao que parece, a reputada jornalista de O Globo já se deu conta do mal que foi feito ao país por todos os que relativizaram o absurdo e equipararam o que era constituído de diferenças abissais, tanto que foi justamente a propósito de sua coluna do dia 3 de abril, em O Globo, publicada com o título “A única via possível é a democracia”, o motivo da ira do clã bolsonarista.
Reputo que sejamos todos capazes de aprender com os nossos erros e certamente entre o suposto escracho dos militantes petistas e a atitude reprovável de Eduardo e seu pai, que se constitui crime de apologia à tortura, vai uma enorme diferença. Quanto a Miriam Leitão, apesar de tudo que ela segue dizendo em favor dos absurdos econômicos de Paulo Guedes e Bolsonaro, só me resta lhe prestar solidariedade.
Carlos Zacarias de Sena Júnior é professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia (UFBA), pesquisador do Centro de Estudos e Pesquisas em Humanidades (CRH) da FFFCH-UFBA e coordenador do Politiza, Grupo de Pesquisa História Política, dos Partidos e Movimentos Contemporâneos de Esquerda e Direita.
[1] MELLO, Patrícia Campos. A máquina do ódio. Notas de uma repórter sobre fake news e violência digital. São Paulo: Companhia das Letras, 2020, p. 162.
[2] D´ANCONA, Matthew. Pós-verdade. A nova guerra contra os fatos em tempos de Fake News. Parueri, Faro Editorial, 2018, p. 42.
[3] SENA JÚNIOR, Carlos Zacarias de. Foi golpe! O presente como história. Salvador: Quarteto, 2018, p. 68.