Colapso do sonho democrático no Mali
Uma vez modelo de democracia africana, o Mali mergulha na instabilidade política enquanto a rebelião no norte corta o país em dois. Desde o golpe de Estado de 22 de março, o presidente da transição, Dioncounda Traoré, tenta reconciliar apoiadores e oposicionistas do putsch, uma crise que revela antigas fraturasJacques Delcroze
Mali está ameaçado pela generalização da charia? Desde 27 de junho o norte do país está nas mãos de grupos radicais islâmicos que tomaram o controle das cidades de Kidal, Gao e Tombuctu, dominando cerca de dois terços do território. Sua ação mescla abusos em nome de Alá e assistência às populações pobres – pelo menos as que não fugiram. Os salafistas instalados nas três grandes regiões setentrionais distribuem dinheiro e socorro, e não têm problemas em recrutar jovens desempregados e sem perspectivas de futuro. Em Gao, eles fornecem combustível e gêneros básicos a preço de custo, equipam os centros de saúde, pagam seus agentes… Um eleito do norte diz que tentou entrar em contato com o chefe do movimento radical islâmico Ansar Dine, Iyad Ag Ghali, para encontrá-lo. Resposta: “Posso encontrá-lo quando você renunciar ao seu cargo. Deputados não têm nenhuma legitimidade diante da lei de Deus”.
Porém, num país com duas vezes e meia o tamanho da França, o norte fica longe − longe do país “útil”, onde se concentram 90% da população. Em Bamako, enquanto se passam os dias de invernagem, em pleno Ramadã, permanece a tolerância de praxe: restaurantes abertos, álcool disponível e fumantes na rua. Embora envolva a maioria dos habitantes, o mês do jejum (que termina em meados de agosto) segue “à malinesa” (ver quadro).
A principal fonte de ansiedade é o trabalho. Em decorrência da crise, a economia está em frangalhos. Muitas empresas, sobretudo de serviços, fecharam as portas ou colocaram os funcionários em desemprego técnico. Depois do ramo de hotéis e restaurantes, imediatamente atingido, todos os setores passaram a funcionar em marcha lenta. Grandes empregadores estão demitindo, como a Air Mali. Apenas a mineração parece ter se esquivado, e o Estado continua pagando os salários.
Outro motivo de confusão: o colapso político de um país até então erigido em modelo democrático. A popularidade do golpe de Estado militar de 21 de março de 2012, denunciado por toda parte no exterior, causou surpresa. Apesar de seu calendário inverossímil – algumas semanas antes de uma eleição presidencial aberta – e sua conduta permissiva ao saque e ao ajuste de contas, os soldados no campo do exército de Kati, liderados pelo capitão Amadou Sanogo, agiam em terreno favorável: aproveitando a exasperação após os reveses militares contra a rebelião tuaregue do norte, o discurso dos golpistas sobre a corrupção das elites e a “democracia de fachada” encontrou resposta favorável na população. Muito rapidamente, sucederam-se políticos junto a eles, incluindo – discretamente – aqueles que condenaram o golpe por meio da Frente Unida para a Salvaguarda da República e da Democracia (FDR, Frente da Recusa).1
Para Oumar Mariko, protagonista da revolução de 1991 que derrubou o regime de partido único do general Mussa Traoré e dirigente do partido Solidariedade Africana pela Democracia e Independência (Sadi), “esse golpe de Estado nos libertou de uma miragem e recolocou o problema em seu contexto, o da busca da democracia pelos povos malineses”.2 A intelectual Aminata Dramane Traoré é da mesma opinião, afirmando que “Sanogo não é o problema, Sanogo é um sintoma”.3 A tese encontra forte eco no exterior, especialmente na França, onde se revisitam vinte anos de “má gestão” em favor do colapso do Estado malinês4 – depois de se haver aclamado o “modelo” proposto pelo país.
Essas vozes não estão renunciando rápido demais às conquistas da Terceira República, nascida em 1991? A liberdade de expressão, que permite aos jornalistas criticar de maneira mordaz a situação política (embora isso possa sujeitá-los a agressões físicas); a abertura social, com a criação de uma miríade de associações que agora se mobilizam pelo norte; ou ainda o dinamismo da cena cultural, que fez da capital malinesa um centro artístico do continente: dos Encontros da Fotografia de Bamako ao festival Étonnants Voyageurs, o país é referência, enquanto seus cantores conquistam o cenário internacional. No plano econômico, o crédito “democrático” de que gozava o Mali permitiu o surgimento de uma nova geração de empresários e uma abertura para o turismo e os investimentos estrangeiros.
“Más decisões foram tomadas”
“É preciso ser louco para governar este país”, confessou em 1992 Amadou Toumani Touré (apelidado de ATT) a Alpha Oumar Konaré, o arqueólogo eleito presidente nas primeiras eleições livres da história do Mali. O chefe de Estado teve então de enfrentar, sucessivamente, a rebelião – já – no norte, o impulso das demandas corporativas, a agitação incessante dos estudantes estimulados por sua participação na transição política de 1991 e as vivas tensões entre partidos a cada evento eleitoral. O grande projeto de seus dois mandatos foi a descentralização, cujo fracasso, por falta de recursos, não derrotou o mito ainda vivo.5
Eleito por sua vez presidente em 2002, Touré foi o arquiteto de uma real distensão política. Seu papel na derrubada do regime Traoré em 1991 rendeu-lhe grande popularidade. Então general, ele liderou o golpe de Estado para em seguida entregar o poder aos civis. Levado à direção do país dez anos depois, pretendia-se um conciliador, a ponto de inventar uma forma de governo que atomizou o cenário político: sem partido para apoiá-lo, procurava o consenso e reunia em torno de si representantes de todas as tendências. Esse sistema pouco a pouco anestesiou as forças de alternância, a capacidade de proposição dos partidos e até mesmo qualquer debate público. Enquanto o país se cobria de canteiros de obra e a infraestrutura (estradas, canalizações, energia…) dava um salto, a corrupção então generalizada e a cooptação no mais alto escalão de quadros medíocres desacreditavam o regime: muitos malineses passaram a perceber o consenso como um modo pacífico de “dividir o bolo” em uma “democracia blindada” – nas palavras de Mohamed Lamine Traoré, ex-militante democrático que se tornou ministro, já falecido.
A mesma forma de gestão se estendeu à questão do norte, onde as tensões foram reavivadas pelo Grupo Salafista para a Pregação e o Combate (GSPC) – que em 2006 se converteu em Al-Qaeda no Magreb Islâmico (AQMI) –, e em seguida pelas consequências da guerra na Líbia, que facilitou a circulação de armas no Sahel.6 Para Touré, que em 1992 tinha levado a paz ao norte, negociando o Pacto Nacional de 11 de abril e selando a paz com os rebeldes,7 era um fracasso evidente. Sempre ligado à conciliação, conversando com todo mundo – e correndo o risco de parecer metido em conluios –, Touré pensou que poderia santificar o território malinês contra o avanço dos grupos combatentes argelinos que em 2003 passaram a operar no Sahel. Obtendo, nesse mesmo ano, a libertação de 32 ocidentais sequestrados na Argélia, ele assumia o papel de mediador. E era encorajado a isso pelas potências europeias, como mostra a pressão exercida por Paris pela libertação de Pierre Calmatte, em fevereiro de 2010. Mas, nessa época, o “pacto” com a AQMI não funcionou, e os sequestros se sucederam no Mali, o que valeu a Touré acusações de tolerância excessiva por parte da Argélia e da França.8
Esse militar experiente, porém responsável pela desorganização do exército, viu-se em completa rejeição: “Foram tomadas decisões ruins: houve oficiais afastados ou ignorados, nomeações inexplicáveis de generais, problemas não resolvidos de abastecimento e logística em geral; isso sem contar que todo mundo falhou no momento crucial, principalmente os chefes de unidade tuaregues”, testemunha um ex-ministro da Defesa. Esse último ponto é intrigante. Na opinião das autoridades malinesas, a integração dos combatentes tuaregues ao exército, prevista pelo Pacto Nacional, era real. E ninguém em Bamako entendeu de fato o ressurgimento – limitado a certas facções – da rebelião do norte em 2006.9 A muito defendida aplicação efetiva das decisões do Pacto Nacional foi lenta, principalmente no que concerne à autonomia administrativa e ao desenvolvimento econômico: “Erros foram cometidos”, reconhece Souleymane Drabo, editor do diário L’Essor, “e era necessário ter dado prioridade à integração do norte ao resto do país, num momento em que tantas novas estradas eram abertas. Mas é incorreto dizer que ATT – e Konaré antes dele – não fez nada pelo norte. Para quem conhece bem Kidal, a cidade se transformou. Para um estrangeiro, continua a mesma miséria, mas nós sabemos de onde viemos. Aliás, a opinião pública malinesa nunca aceitou de verdade ver tanto dinheiro sendo dirigido às três regiões do norte, quando se sabe que a falta de estrutura está em toda parte. Dizem: a região de Kayes [sudeste do país] mudou de cara – sim, porém, não graças ao Estado, mas aos recursos dos trabalhadores emigrados!”.
Subadministrado e minado por uma corrupção que assolava também as coletividades locais, o Estado malinês certamente não era capaz de colocar em prática a visão do presidente Konaré: incluir a questão do norte e do estatuto especial das regiões em questão no grande movimento de descentralização. Cinquenta anos após a independência, “ainda estamos lidando com a questão nacional”, reconhece Soumeylou Boubeye Maiga, o último ministro dos Assuntos Estrangeiros de Touré. Para além das notícias, ele trata de um medo real no Mali: ver o sul se afastar das regiões setentrionais e abandoná-las à própria sorte.
Outro fantasma ameaça a experiência democrática. Enquanto os pais da independência valorizavam os grandes impérios da história malinesa10 como caldeirões para a coexistência dos grupos étnicos, agora o momento é de isolacionismo. M. T., historiador e sociólogo, concorda em dar uma declaração, mas não quer ser citado nominalmente, de tão sensível que se tornou a questão: “O malinês pensa-se cada vez mais como bambara [etnia considerada majoritária, cuja língua se tornoufranca, permitindo a relação entre idiomas diferentes] e olha para as relações entre etnias como para os laços de dependência que existiam sob os reis de Ségou, nos séculos XVII e XVIII”.No mesmo campo comunitário, valoriza-se excessivamente o legado mandingo e a “nobre” história do império mandingo criado no século XIII por Sundiata Keita, que na verdade tem mais de mito que de historiografia.
Ameaça do radicalismo islâmico, visão revisionista da democratização, ascensão do comunitarismo, tudo somado a um nacionalismo ranzinza que se expressa diante das intervenções diplomáticas estrangeiras desde o dia 21 de março: essas são as características alarmantes de uma Terceira República do Mali ameaçada em seus fundamentos.
BOX:
Um islã dividido
O islã malinês é tudo menos unificado. Reunidos em julho de 2012, os líderes muçulmanos do país pretendiam protestar contra a pilhagem dos mausoléus dos santos, iniciada no dia 30 de junho em Tombuctu. Mas sua unanimidade de fachada não consegue esconder as profundas divisões. Aos líderes tradicionais, respeitosos do islã marabútico que há séculos irriga a religiosidade popular, opõem-se as tendências “modernistas”, apoiadas pelas monarquias petrolíferas do Golfo. Para estas, marabus e culto de santos são superstições a serem eliminadas. A segunda tendência encontra ressonância cada vez maior no Mali. Um mosaico de novas correntes hoje flerta com o wahabismo, cuja introdução, por meio de jovens intelectuais que saíram para estudar no Oriente Médio, remonta às últimas décadas do período colonial. A doutrina oriunda da Arábia Saudita fez grandes progressos nos últimos vinte anos. O presidente do Alto Conselho Islâmico do Mali (HCIM), Mahmoud Dicko, é um simpatizante.
Dezenas de associações muçulmanas nasceram com a primavera democrática do Mali, em março de 1991. Uma das mais populares tem como líder Cherif Ousmane Madani Haidara, que denunciou a “usurpação” do nome de sua organização, Ansar Dine (“Defender o Islã”), pelo grupo islâmico que opera sob essa designação no norte, qualificado por ele de terrorista e “satânico”. De inspiração sufista, Haidara, cujos populares sermões são amplamente transmitidos por rádio e fitas cassete, prega a tolerância.
Todos, porém, engrossam a mesma tendência purificadora que se ergue contra as práticas antiéticas e a permissividade da sociedade. Embora o HCIM, órgão consultivo criado em 2002, tenha chamado a destruição dos túmulos de Tombuctu de “atos de outra época”, ele desempenhou um papel determinante, por uma década, nos debates sobre o projeto de novo código de família. Finalmente aprovado em 2011, esse documento marca um retrocesso nos direitos das mulheres. (J.D.)
Jacques Delcroze é Jornalista.