Coligações em eleições proporcionais: o menor dos males ou vitória do “centrão”?
O fim das coligações representou um avanço importante no sistema político brasileiro. Se elas voltarem, teremos mais um retrocesso
A aprovação na Câmara do projeto de emenda constitucional (PEC) 125/2011 prevê o restabelecimento das coligações em eleições proporcionais. A PEC agora segue para o Senado, onde, para valer nas próximas eleições, precisará receber o apoio de ao menos três quintos dos senadores antes de outubro. A título de lembrança, as coligações foram abolidas em 2017, mas a decisão passou a vigorar apenas nas eleições municipais de 2020. Ou seja, antes mesmo de ser testada em eleição para as câmaras legislativas estaduais e federais, nossos parlamentares já querem restituir a velha prática. A ideia seria uma espécie de ponto comum entre aqueles que defendem a adoção do famigerado “distritão” e os que, temerosos dessa mudança, aceitariam um retorno ao antigo status quo como caminho menos danoso para o sistema eleitoral brasileiro. O fim das coligações, entretanto, representou um avanço importante no sistema político brasileiro. Se elas voltarem, teremos mais um retrocesso.
O ideia básica das coligações em eleições proporcionais é a de que os partidos podem juntar forças não apenas em torno a um candidato majoritário – ou seja, aos cargos de prefeito(a), governador(a) e presidente(a) – mas também na distribuição proporcional das vagas para câmaras de vereadores, assembleias legislativas e Câmara dos Deputados. De acordo com o princípio da proporcionalidade, hoje vigente, as cadeiras devem ser distribuídas de acordo com o desempenho de cada partido, de modo que sua distribuição represente não apenas aqueles mais votados, mas também partidos minoritários. O princípio é o de que a representação política é direito também das minorias políticas. Ou seja, é importante que diversas vertentes de opinião no âmbito de uma sociedade estejam representadas no parlamento, por meio de diferentes partidos.
Se há coligações em eleições proporcionais, no entanto, as cadeiras não são distribuídas entre partidos, mas entre coligações de partidos. Ou seja, o que interessa é a soma de votos recebidos por todos os partidos de uma coligação. Uma vez determinado o número de cadeiras no parlamento a que aquela coalizão tem direito, elas são distribuídas entre os partidos que a compõem. Coligações partidárias em eleições para o parlamento são permitidas em muitos países, na forma de federações partidárias, por exemplo. A legislação brasileira vigente até 2017, entretanto, diferia de maneira significativa desse modelo, ao permitir que essas coligações variassem em sua composição de estado para estado e que não seguissem necessariamente as alianças majoritárias. Era possível, a título de exemplo, que o PMDB se coligasse com o PSDB em alguns estados, ao passo que apoiasse a candidatura presidencial do PT. No sistema que vigorava aqui, as coligações raramente significavam proximidade ideológica. O cálculo, via de regra, era meramente eleitoral, seguindo as candidaturas favoritas em cada disputa.
Não é preciso ser especialista para notar o problema grave que esse modelo criava para o princípio da representação política. Os votos destinados a um partido de ideologia X podiam ser aproveitados para eleger candidatos do partido Y, de ideologia muitas vezes distinta. Pior: as eleições para a Câmara dos Deputados também eram regidas por coligações celebradas nos estados. Não apenas a coligação gerava uma distorção grave no voto, como o tipo de distorção produzida variava enormemente entre as diferentes unidades federativas, refletindo os diferentes interesses e estratégias de cada partido, em cada estado.
Partidos sempre agem de forma estratégica, no Brasil e em qualquer lugar do mundo. No entanto, a regra das coligações em eleições proporcionais criou no sistema eleitoral brasileiro um mercado, em que essa ação trabalhava contra a qualidade da representação política. Os minutos de televisão a que tinham direitos pequenos partidos eram “vendidos” a candidatos majoritários em troca da participação dessas mesmas legendas nas coligações majoritárias. Assim, um candidato, digamos, do PSDB, franco favorito ao governo de um estado, atraía o apoio de um sem número de partidos do “centrão”, de modo a aumentar seu tempo de propaganda eleitoral. As coligações proporcionais que se formavam a partir desse escambo, por sua vez, garantiam que parte significativa dos votos dados ao PSDB para a assembleia legislativa fosse aproveitada para eleger candidatos e candidatas desses pequenos partidos coligados que, de outro modo, teriam representação bem menor. Uma vez eleito o candidato vencedor ao governo, não havia qualquer garantia de que a coalizão que lhe apoiara nas eleições iria continuar a fazê-lo no parlamento. O único fato consumado era o seguinte: o novo governo certamente precisaria do apoio dos partidos do “centrão” que, turbinados pela aliança eleitoral, tornavam-se imprescindíveis para a governabilidade de qualquer que fosse o candidato vencedor.
Ainda que todos os sistemas eleitorais produzam algum grau de distorção entre a vontade do eleitorado e o preenchimento das cadeiras parlamentares, a coligação em eleições proporcionais levava essa distorção a um nível extremo, em que o desempenho dos partidos dizia mais respeito à habilidade de desconhecidos caciques partidários do que às escolhas dos eleitores. Chegamos assim ao ponto crucial do problema: as coligações em eleições proporcionais formaram o ambiente perfeito para o desenvolvimento dessa ação parasitária característica dos partidos do centrão. Valendo-se dessa regra, esses partidos potencializaram seu papel no sistema político, tornando-se canais privilegiados de acesso ao Estado, e aliados indispensáveis a qualquer governo que se quer estável.
As eleições de 2022 seriam as primeiras realizadas em âmbito nacional sanadas desse vício. Agora, essa possibilidade está nas mãos das senadoras e senadores, que podem barrar a volta de tal prática perniciosa. No médio prazo, seus efeitos institucionais prometem ser significativos – não à toa, há tamanha pressão para nova alteração no modelo eleitoral. Uma vez dispensado o distritão, corremos o risco de aceitar o mal menor, o retorno do mecanismo que foi usado pelos partidos do “centrão” para angariar poder crescente no Congresso. O show de casuísmos em série no debate sobre a reforma política ao qual ora assistimos é sintoma desse mal. Precisamos a todo custo evitar que ele continue a enfraquecer a legitimidade e representatividade do nosso sistema democrático, já tão combalido.
João Feres Júnior é professor associado do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp/Uerj), doutor em Ciência Política pela City University of New York, Graduate Center e coordenador do Observatório Legislativo Brasileiro, núcleo de pesquisa do Iesp/Uerj.
Leonardo Martins Barbosa é Doutor em Ciência Política pelo Iesp/Uerj e pesquisador do Observatório do Legislativo Brasileiro (OLB) e do Núcleo de Estudos sobre o Congresso (Necon).
*Artigo produzido no âmbito do projeto Ciências Sociais Articuladas, que integra as iniciativas promovidas pela articulação entre a Associação Brasileira de Antropologia, Associação Brasileira de Ciência Política, Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais e Sociedade Brasileira de Sociologia em defesa das Ciências Sociais brasileiras, e é desenvolvido em parceria com o Observatório do Legislativo Brasileiro.