Colonialismo e identidade: Paul Gauguin no Taiti
Exposição “Paul Gauguin: o outro e eu” discute pinturas feitas por Paul Gauguin na Polinésia Francesa sob olhares contemporâneos
Desde sua fundação em 1947, o Masp abriga o mais importante acervo de arte europeia do Hemisfério Sul. Os últimos anos, no entanto, foram marcados pelo revisionismo – o temido “cancelamento” – das obras e vidas de artistas europeus considerados cânones da história da arte. Esse foi o caso de Paul Gauguin, cuja obra “Autorretrato (Perto do Gólgota)” integrou o acervo fixo do museu em 1952, onde atravessou as sete últimas décadas até que, em abril deste ano, foi movida para o andar debaixo e colocada em perspectiva pela mostra Paul Gauguin: o outro e eu.
Com curadoria de Laura Cosendey, Fernando Oliva e Adriano Pedrosa, a exposição reúne 40 obras do artista francês com o objetivo de questionar o seu imaginário sobre o ‘exótico’ e os ‘trópicos’, explorando as relações de apropriação cultural, colonialismo e erotização do corpo feminino nas obras pintadas pelo artista no Taiti (Polinésia Francesa), onde morou por dez anos.
Autorretrato (Perto do Gólgota)
Quando chegou ao Brasil em 1952, o autorretrato de Gauguin chamou a atenção da elite intelectual, que se reuniu no Rio de Janeiro para celebrar a aquisição de Pietro Maria Bardi, diretor-fundador do Masp. Pintada em 1896, a obra mostra o artista à imagem de Jesus Cristo, de cabelos longos e túnica azul-clara, à frente de uma cena de crucificação que acontece sobre um morro e contornado por uma aura que remete ao halo de divindades do cristianismo.
Exposta pela primeira vez na noite de 27 de outubro de 1952 na casa da família Soares Sampaio, uma típica residência da elite brasileira, a pintura recebeu ampla cobertura da rede de comunicação de Assis Chateaubriand – fundador do museu e dono dos Diários Associados. Chama a atenção em uma foto publicada no Diário da Noite o aparato cenográfico construído ao redor do autorretrato, com fundo que imita uma vegetação tipicamente brasileira e fortemente associada à ideia estereotipada de “trópicos”. Naquele momento, ainda debatia-se a questão modernista de formação de uma “identidade brasileira” na arte, que se relacionava com a “busca pela essência” que motivou a ida de Gauguin ao Taiti.
Frustrado com a cena artística da metrópole parisiense e passando por dificuldades financeiras, Gauguin parte para o Taiti nos últimos anos de sua vida com o objetivo de buscar outra experiência de mundo, em que pudesse aliar sua pintura a um imaginário para além dos padrões da cultura europeia. Após sua morte, em 1903, sua obra passa a ser valorizada por modernistas como Pablo Picasso, tornando-se mais um cânone da arte francesa, da qual queria diferenciar-se.
No entanto, os pensamentos dos fundadores do museu, na década de 1950, e do próprio artista, 70 anos antes, são muito distintos, defendem os curadores: “No momento em que o Masp recebe a obra ele está sendo influenciado por essa narrativa que se construiu em torno da figura do artista, da mitologia pessoal que ele queria construir para si, mas o modo como o museu enaltece a obra é totalmente diferente do modo como o próprio Gauguin via a sua arte.”
O fetiche pelo primitivo por parte de Gauguin e a vontade de criação de uma mitologia ao redor do próprio personagem são as principais expressões da obra, que abre a exposição questionando o “eu” reinserido em um contexto artístico em desconstrução, que busca contemplar o “outro” como protagonista.
Colonialismo e apropriação cultural na Polinésia Francesa
“Que chegue o dia em que fugirei para as matas numa ilha da Oceania, vivendo lá em êxtase, calma e arte. Rodeado por uma nova família, longe desta luta europeia em busca do dinheiro. Lá no Taiti poderei, no silêncio das belas noites tropicais, ouvir o murmúrio suave dos movimentos do meu coração, em harmonia amorosa com os seres misteriosos do meu ambiente. Livre por fim, sem me preocupar com dinheiro, poderei amar, cantar e morrer”, escreveu Gauguin em 1890.
Ao chegar no Taiti no ano seguinte, no entanto, o artista se depara com uma realidade muito diferente do paraíso idílico e intocado que havia criado em seu imaginário: sua ideia de um Taiti “nativo” se contrapõe à aculturação social e religiosa que encontrou ao chegar na ilha, que já vivia pelo menos cem anos de colonialismo violento por parte da França, que se apropriou do território formalmente em 1842, quando foi declarado província francesa.
No segundo espaço de exposição, a pintura em óleo “Mulheres taitianas ou Na praia”, emprestada do Museu d’Orsay, ilustra a quebra de expectativa que o artista experienciou nas ilhas: as duas personagens pintadas em uma praia tratam-se, na realidade, da mesma modelo em vestimentas diferentes. A figura à esquerda está vestida com roupas típicas e uma flor de tiaré, também conhecida como “gardênia do Taiti”, adorna sua orelha, ecoando imagens publicitárias de mulheres da região que circulavam na Europa. Já a jovem da direita usa um vestido de missionária, indicando o poder que o catolicismo francês exercia na Polinésia naquele momento.
A inexistência de ritos originários em prática em um Taiti tomado pelo catolicismo também entra em conflito com o ideal de Gauguin, que buscou apresentar imagens que eternizassem esse imaginário mitológico ao mesmo tempo em que se relacionam com seu próprio referencial religioso. Com pinturas intituladas “Eu vos saúdo, Maria” e “Eva”, o pintor produzia um diálogo entre si e a alteridade:
“Essa dupla de Eva e Maria nas pinturas dele é muito forte. Em muitos trabalhos, Gauguin faz um diálogo com a história da arte de seu tempo, ocidental, e também da alteridade. A gente acaba vendo vários arquétipos, a gente vê como ele trabalha essas figuras buscando espelhá-las, buscando equivalentes do nosso universo conhecido para se situar uma uma cultura que não é a nossa de origem. Também era uma forma de se comunicar com o público com o qual ele está apresentando essas obras”, completa Laura Cosendey.
As meninas de Gauguin
Expostas lado a lado, as pinturas “Duas mulheres taitianas” e “Palavras do diabo” expressam a relação problemática que o artista construiu com as mulheres e meninas da ilha, vistas por ele como exóticas e erotizadas em seus quadros. Sintomáticas de uma sociedade colonialista, Gauguin adota em sua obra o ponto de vista de um homem branco europeu, por mais que tanto tenha tentado distanciar-se desse “eu” europeu.
Característica da forma como a pintura europeia é definida pelo olhar masculino, “Palavras do diabo” revela em arquétipos de castidade e sensualidade a idealização do corpo da mulher não-branca: inocente, ela não teria conhecimento de sua própria sensualidade. A imagem de ingenuidade frente à sexualidade remete à forma como o artista se relacionava sexualmente com garotas de 13 e 14 anos nas ilhas da Polinésia.
Inspirada em um detalhe do templo de Borobudur, na Indonésia, “Duas mulheres taitianas” também é exemplar da maneira erotizada e exotizada com a qual Gauguin representou o corpo de mulheres indígenas. A curadoria destaca no texto que acompanha o quadro: “a obra foi pivô da revisão crítica de Gauguin, em particular pelo modo como elas parecem estar ofertando não apenas as flores ou frutas “tropicais” que carregam, mas seus próprios seios.”
Em um momento tomado por discussões simplistas em relação a artistas e obras de outros tempos, a exposição Paul Gauguin: o outro e eu opta pela oportunidade de educar e informar: “A saída pelo cancelamento traz uma leitura muito simplista. Cancelar acaba sendo uma forma de perder uma oportunidade de trazer esse problema. Eu acho que é muito mais uma questão de como, que contexto a gente cria para expor, como a gente reproduz, revisa e revisita essas narrativas dominantes”, analisa Laura.
Em cada legenda, a curadoria exibe e problematiza o conteúdo da obra do artista, colocada no contexto maior do museu, que dedica sua programação de 2023 às Histórias indígenas. Além da mostra de Gauguin, a programação anual também inclui mostras de Carmézia Emiliano, MAHKU, Sheroanawe Hakihiiwe, Melissa Cody, além do comodato Masp Landmann de cerâmicas e metais pré-colombianos e a coletiva Histórias indígenas.
A mostra Paul Gauguin: o outro e eu acontece no 1º andar do Masp (Avenida Paulista, 1578) até 6 de agosto de 2023. É obrigatório o agendamento on-line pelo link masp.org.br/ingressos. Ingressos: R$ 60 (entrada); R$ 30 (meia-entrada); gratuito às terças-feiras
Carolina Azevedo faz parte da equipe do Le Monde Diplomatique Brasil.