Como a Lava Jato expõe os afetos da Justiça
Artigo série especial Mídia e Justiça, que aborda a relação entre o Judiciário e os Meios de Comunicação em tempos de Vaza Jato.
Nos últimos dias a Vaza Jato trouxe à tona uma série de diálogos que tinham algo em comum: os afetos. As conversas dos envolvidos com a operação Lava Jato, que “avaliam” se o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva teria ou não direito de ir ao velório do irmão e do neto colocam em um plano discricionário e, por vezes debochado, algo que não é relativo a opiniões, é vinculativo, cabendo a qualquer preso que esteja em regime fechado, conforme a Lei de Execuções Penais.
Há outros trechos divulgados no mesmo período cujo objeto dos diálogos se refere à morte de Marisa Letícia, esposa do ex-presidente. Novamente, o tom de quem se afeta com as relações pessoais de um réu passa longe da suposta impessoalidade de quem procura aplicar a lei.
É fato que conversas privadas são sempre permissivas. Ninguém está a salvo, mas tantos sentimentos impregnados em um grupo persecutório como exposto reiteradamente pela Vaza Jato tanto mostra uma posição partidária, inclusive em um sentido primeiro de tomar um lado de forma veemente, como abre o flanco para uma análise freudiana de primeira ordem. É a aplicação afetiva do direito.
Desculpas
O incômodo com a questão foi tamanho que uma das procuradoras da operação Lava Jato, Jerusa Viecili, publicou um pedido de desculpas em sua conta no Twitter. A posição foi pessoal e não do grupo, mas tem uma conotação importante: a de mostrar que do mesmo jeito que as considerações afetivas tinham vindo a público, a retratação também precisava ter esse viés. Assim, há duas questões a serem colocadas.
A primeira é se admitir que considerações pessoais interferem na aplicação da lei e a segunda é que agora isso ganha uma dimensão pública. Os dois pontos estão longe de serem pueris e, em especial, corroboram a ideia de um Justiça política distante da propagada imparcialidade. O centro do argumento é que no lugar da estratégia própria dos jogos políticos o que aparece é algo, digamos, mais visceral.
Há aí algumas novidades ilustradas por essa abordagem. É comum, por exemplo, nas ciências criminais, que hajam perfis de acusados nos estudos de psicologia jurídica. Os afetos em questão são do “outro” e não de quem aplica a lei.
Mesmo quando olhamos para o lado institucional da equação, os modelos atitudinais pensam filiações políticas, classes sociais, regiões de origem e outros pontos. Os afetos passam longe. Agora, diante do quadro atual, não seria estranho se fossem juízes e membros do Ministério Público os questionados sobre seus sentimentos em relação ao réu.
Monumento
Vamos dar um pulo no tempo e ver o que nos mostra outro episódio. Pouco antes das conversas sobre a rede familiar de Lula virem à tona, em outro diálogo o procurador da República Deltan Dallagnol propunha ao hoje ministro da Justiça e então juiz Sergio Moro, que a Lava Jato deveria realizar um concurso para a criação de um monumento em homenagem à operação. A obra seria um ponto turístico em Curitiba.
De forma literal, as palavras de Deltan eram “A minha primeira ideia é esta: Algo como dois pilares derrubados e um de pé, que deveriam sustentar uma base do país que está inclinada, derrubada. O pilar de pé simbolizando as instituições da justiça. Os dois derrubados simbolizando sistema político e sistema de justiça…”. O mesmo Deltan que, devemos ressaltar, noutra ocasião, numa conversa consigo mesmo, por chat, se comparou a Jesus Cristo.
Os dois “blocos de vazamentos”, sobre os direitos do réu e sobre o monumento à Lava Jato e a comparação a Cristo, aparentemente distintos, revelam uma ligação umbilical: afeto e símbolo. Aquilo que comove e que é preciso expressar.
Saindo um pouco da superfície, estamos falando de uma investigação que carece de reconhecimento não só internamente, como um grupo contra um inimigo comum, como externamente para motivar uma adesão que não está restrita ao contexto, pretendia ter um aporte perene, “monumental” para ser exata. Fato é que a ideia de Deltan não vingou, sendo vetada na conversa pelo próprio Sergio Moro ao alegar que tal iniciativa poderia soar como “soberba”.
Sistema de Justiça
Assim, os diálogos indicam um grupo que se move com base em apreciações sobre as relações afetivas de um investigado – as considerações sobre esse ponto chegam a gerar expediente oficiais, como no caso do parecer feito para a juíza de execuções penais sobre a ida de Lula ao enterro do irmão – e que, em outro turno, atuam publicamente para garantirem um reconhecimento de si.
Se pensarmos tendo como base o escopo clássico do Sistema de Justiça essa é uma novidade e tanto. Ela vai além de admitir que Justiça atua politicamente porque o que se busca é menos um fim persecutório, racional, e mais um apaziguamento de anseios e paixões.
E, sim, isso faz parte da política, mas nem de longe se via esse elemento sanguíneo ligado ao que, de forma neutra, muitos chamam de “operadores do direito”. Sendo objetiva a questão que aparece é não apenas a do jogo político clássico de interesses de determinados grupos e atores, mas também do que é recôndito.
Grazielle Albuquerque é jornalista, doutora em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e foi visiting doctoral research no German Institute of Global and Area Studies (Giga), em Hamburgo. Seu trabalho se volta para a atuação do Sistema de Justiça, em especial para sua interface com a mídia.