Como as alianças entre a extrema-direita e o agronegócio ameaçam o futuro do planeta
O ecofascismo ganha espaço à medida que o colapso ambiental é reconhecido por segmentos da extrema-direita como uma oportunidade de reorganizar a sociedade sob lógicas autoritárias
A posse de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos, no início deste ano, reacendeu debates que partem de suas alianças com os bilionários das Big Techs, a exemplo de Jeff Bezos, Mark Zuckerberg e Elon Musk – este último que se referiu a posse do atual presidente como um “ponto de virada para a civilização humana[1]” -, como também em relação às políticas racistas contra imigrantes que se estendem para o chamado “ecofascismo”. Entre as principais discussões da política trumpista está a sua postura em relação à emergência climática, marcada por discursos que incentivam a exploração de petróleo e gás, a expansão de mineradoras e a reformulação de políticas ambientais que favorecem as grandes corporações.
O ecofascismo ganha espaço à medida que o colapso ambiental é reconhecido por segmentos da extrema-direita como uma oportunidade de reorganizar a sociedade sob lógicas autoritárias. Combinando discursos ambientalistas com manifestações racistas e nacionalistas, o ecofascismo se manifesta por meio da proposição de políticas que tratam da preservação dos recursos naturais — compreendida aqui segundo o discurso neoliberal da “economia verde”, “capitalismo verde” e “desenvolvimento sustentável” —, mas apenas para seu “grupo referente”: masculinista, rico e branco. Isso ocorre em detrimento da inclusão de pessoas racializadas, mulheres, corpos dissidentes e pessoas LGBTQIAPN+. Nesse contexto, a emergência climática é instrumentalizada para justificar restrições migratórias e negar a responsabilidade histórica dos países mais ricos nas emissões de carbono.
A ascensão da extrema-direita na última década é um fenômeno global, especialmente nas democracias ocidentais. Esses movimentos compartilham características como a construção de um “Outro” – um inimigo a ser combatido – e a defesa de ideias masculinistas e supremacistas brancas. Por outro lado, existem características específicas deste avanço no contexto brasileiro, onde a extrema-direita emerge a partir de um histórico que combina a consolidação de um liberalismo escravocrata, regimes autoritários recorrentes e o pacto das elites em torno da branquitude[2]. Essa herança molda os valores da extrema-direita brasileira, que identifica como inimiga dos povos originários, comunidades tradicionais, mulheres, movimentos sociais, pessoas negras e LGBTQIAPN+.
Enquanto nos EUA e na Europa o “Outro” a ser enfrentado é frequentemente representado pelo imigrante – figura que ameaça a estabilidade econômica e cultural ao ser percebida como parasitária ao Estado de bem-estar e portadora de valores incompatíveis com as democracias ocidentais -, no Brasil, a ascensão ecofascista assume contornos próprios. Aqui, ela opera como uma articulação mais profunda entre a masculinidade enquanto regime de poder, o capitalismo extrativista e a exploração da natureza e seus povos. A dominação da natureza, neste contexto, não é apenas prática econômica, mas uma tecnologia de controle territorial e social, impulsionada pelo agronegócio, que funciona como expressão da lógica produtivista e extrativista, transformando a destruição ambiental em um símbolo de afirmação supremacista e masculinista.
O ecofascismo à moda brasileira, portanto, consolida-se não só pela política, mas pela captura dos desejos frustrados em uma sociedade precarizada, oferecendo ordem, potência e pertencimento por meio da exploração violenta da terra e dos corpos que dela dependem[3]. A conexão entre o agronegócio e a extrema-direita não é recente, antes mesmo da ascensão de Jair Bolsonaro (PL), o setor já liderava ataques às políticas de reforma agrária e às alianças com o Estado para desarticular os movimentos sociais.[4] No entanto, é a partir do governo Bolsonaro que essas alianças se fortalecem, consolidando-se e se institucionalizando por meio da aprovação de projetos como o marco temporal e o “pacote do veneno”.
Em verdade, o governo Bolsonaro não apenas fortaleceu uma nova direita brasileira – em que pautas ultraneoliberais e autoritarismo se mesclam – como também consolidou um ecossistema cultural que se expressa na figura do “homem do agro”: um arquétipo masculinizado, armado, viril e produtor. Essa estética de força e controle territorial não é apenas retórica, ela opera como dispositivo de poder simbólico e material, articulando desejo, identidade e violência. O ressentimento, antes sustentáculo afetivo da extrema-direita, cede lugar a uma performatividade bélica e produtivista, que naturaliza a devastação como ato de soberania. A imbricação entre a masculinidade como regime de poder e o capitalismo gore movimenta uma economia libidinal, através da mobilização dos desejos e dos corpos para essa nova zona de engajamento.[5]
Nesse rearranjo, o agronegócio atua como aparelho ideológico de dominação, produzindo uma masculinidade branca, cristã hegemônica que se afirma pela violência contra a natureza e seus povos. Essa estética, sustentada por símbolos como o chapéu de cowboy, o rifle, trator, e até mesmo motosserra, performa uma promessa de pertencimento diante da precariedade social e subjetiva. Não por acaso, supremacistas como Trump, Milei e Bolsonaro apresentam discursos que enaltecem o “plano motosserra”. Bolsonaro se autointitulou como “capitão motosserra”[6], já Milei frequentemente aparecia em comícios portando um motosserra. Em fevereiro deste ano, Musk, convocado a reduzir o tamanho do governo trumpista, apareceu no palco da Conferência de Ação Política Conservadora em National Harbor, com a motosserra que ganhou de Milei, cujo slogan gravado no instrumento registrava “Viva la libertad, carajo”[7].
O agronegócio também desempenhou um papel crucial no financiamento de movimentos golpistas, como há muito tempo denuncia o site de olho nos ruralistas[8], o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff – também chamado de “Agrogolpe”[9]-, onde mais de 50% dos votos favoráveis vieram da Bancada Ruralista[10], além da admissão/recusa da abertura de processos contra o ex-presidente Michel Temer, e campanhas eleitorais, incluindo a de Bolsonaro, que recebeu R$1,2 milhão de reais de 4 fazendeiros nas últimas eleições presidenciais. Já, em relação à intentona golpista do 8 de janeiro, especula-se através das investigações realizadas pela Polícia Federal que empresários do setor foram citados como financiadores dos atos golpistas, evidenciando o vínculo entre os interesses econômicos do agronegócio e os ataques à democracia[11].
É por meio desta aliança entre o agronegócio e os interesses da extrema direita que a exploração de territórios e seus povos é executada, mesmo diante da emergência climática, evidenciada por mudanças drásticas de temperatura, alternando entre períodos de grandes secas e chuvas intensas[12]. Essas alterações extremas, provocadas pela intensificação do aquecimento global causado pela atuação de atores poderosos (Estados e corporações ligadas ao agronegócio), resultaram em inundações devastadoras que causaram danos ao redor do mundo, destruindo casas e vidas humanas e mais-que-humanas. Um exemplo recente ocorreu no Rio Grande do Sul, onde as enchentes de 2024 afetaram 95% dos municípios do estado, resultando em prejuízos estimados em R$ 88,9 bilhões, com impactos significativos nos setores produtivo, social, infraestrutura e meio ambiente. As chuvas intensas causaram 183 mortes e deixaram 27 pessoas desaparecidas. Além disso, mais de 2,3 milhões de pessoas foram afetadas, com milhares de desabrigadas e danos extensivos à infraestrutura local.[13]
No cenário global, o Brasil ocupa a sexta posição entre os maiores emissores de gases de efeito estufa.[14] Enquanto a indústria de combustíveis fósseis é o principal vilão nas discussões climáticas globais, aqui o agronegócio lidera as emissões, especialmente devido ao desmatamento na Amazônia e no Cerrado brasileiro, e à criação intensiva de gado. Segundo o Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa do Observatório do Clima (SEEG), 74% das emissões brasileiras estão diretamente ligadas ao setor.[15]
As redes sociais, por sua vez, tornaram-se o terreno fértil para a disseminação de desinformação ambiental e climática, com o apoio direto de líderes globais da extrema-direita. A pressão crescente pela flexibilização de políticas de controle nas grandes plataformas contribui para amplificar discursos de ódio e narrativas negacionistas sobre o clima. Apesar disso, entretanto, o negacionismo não é algo novo, mas um resquício do colonialismo que ganha força no projeto político da extrema-direita ao promover a destruição humana e ambiental. Essa lógica reflete o desprezo pelo saber e pelas múltiplas existências, que se infiltram nos mais variados setores e grupos da sociedade[16].

Como diz Ailton Krenak “Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar. E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança, canta, faz chover. O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição de vida. Então, pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos”.[17]
A citação de Krenak revela como a lógica colonial e capitalista destrói não apenas territórios e vidas, mas também sentidos, experiências e sonhos. Essa “humanidade zumbi”, que rejeita a diversidade e a vitalidade da existência é a mesma que impulsiona a guerra colonial contra a natureza, promovida pela extrema-direita em aliança com o agronegócio e grandes corporações. Essa é uma luta desigual, que despreza saberes ancestrais, territórios e diferenças, criminalizando, perseguindo e atacando os verdadeiros defensores da vida.
É por isso que o conceito de “guerra colonial contra a natureza”, inspirado na expressão de Eliane Brum[18], se torna tão importante neste estado atual de coisas. A palavra colonial situa a forma pela qual a destruição massiva da natureza e seus povos são mobilizados pelos interesses econômicos dos atores poderosos. Quando falamos em natureza, ratificamos a ideia de que ela está interconectada e integrada aos povos e seus territórios, sem os quais ela não poderá se manter em pé, e, consequentemente, manter as possibilidades de vida e existência na Terra em pé[19].
Nesta guerra, os principais “inimigos” a serem combatidos são os grupos que contrariam a lógica do capitalismo neoliberal e de mercantilização da natureza, todos aqueles e aquelas que lutam pela proteção das florestas, rios, montanhas, árvores e animais. Sem eles, não há futuro para o planeta. Em tempos de emergência climática, resistir a essa lógica colonial é um passo fundamental para reimaginar formas mais justas de coexistir no planeta, enfrentando os negacionismos, e lutando contra a continuidade da exploração de seres humanos e mais que humanos.
Karine Agatha França é Mestre em Doutoranda em direito, com bolsa CAPES/UFSC, Mestra em ciências criminais (PUCRS), com bolsa CAPES; pesquisadora no grupo Poder, controle e dano social (UFSC).
Paula Gil Larruscahim é doutora em Criminologia Cultural e Global (Kent e Utrecht), pesquisadora associada no Grupo Internacional de Pesquisa em Autoritarismo e Contra Estratégias da Fundação Rosa Luxemburgo, pesquisadora no Observatório da Extrema Direita e no grupo Poder, Controle e Dano Social (UFSC).
[1]BRASIL DE FATO. Elon Musk é acusado de fazer saudação nazista após posse de Trump e gera onda de indignação. 20 jan. 2025. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2025/01/20/elon-musk-e-acusado-de-fazer-saudacao-nazista-apos-posse-de-trump-e-gera-onda-de-indignacao/.
[2]BENTO, Cida. O pacto da branquitude. Companhia das letras, 2022.
[3]VALENCIA, Sayak. Capitalismo gore. España: Melusina, 2020.
[4]NANNINI, Warllen. Agronegócio e a extrema-direita bolsonarista: Simbiose que engendra e amplia a barbárie socioambiental no Brasil. AMBIENTES: Revista de Geografia e Ecologia Política, v. 5, n. 1, 2023, p. 66.
[5] VALENCIA, Sayak. Capitalismo gore. España: Melusina, 2020.
[6]BRASIL DE FATO. “Sou o capitão motosserra”, diz Bolsonaro sobre aumento do desmatamento na Amazônia. 6 ago. 2019. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2019/08/06/sou-o-capitao-motosserra-diz-bolsonaro-sobre-aumento-do-desmatamento-na-amazonia/.
[7]CNN BRASIL. Musk ergue motosserra dada por Milei durante conferência conservadora. 24 mar. 2024. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/musk-ergue-motoserra-dada-por-milei-durante-conferencia-conservadora/.
[8] Ver: https://deolhonosruralistas.com.br/
[9] WELCH, Clifford Andrew. Governamentalidade: agenda oculta do agrogolpe de 2016. O campo no Brasil contemporâneo: do governo FHC aos Governos Petistas. Curitiba: Editora CRV, p. 107-137, 2018.
[10]Dos 208 deputados votantes, 172 (82,7%) apoiaram o impeachment (Ver CASTILHO, Alceu Luís. A serpente fora do ovo: a frente do agronegócio e o supremacismo ruralista. Revista OKARA: Geografia em debate, v. 12, n. 2, p. 699-707, 2018).
[11]QUEIROZ, Vitória. Dinheiro que financiou tentativa de golpe foi obtido com pessoal do agronegócio, disse Cid à PF. CNN Brasil, Brasília, 14 dez. 2024, 13:07. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/dinheiro-que-financiou-tentativa-de-golpe-foi-obtido-com-pessoal-do-agronegocio-disse-cid-a-pf/ e DANTAS, Dimitrius. Atrás do ‘pessoal do agro’: PF rastreia transações em espécie em Goiânia e Brasília para identificar financiadores do golpe. O Globo, 16 dez. 2024. Disponível em: https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2024/12/16/atras-do-pessoal-do-agro-pf-rastreia-transacoes-em-especie-em-goiania-e-brasilia-para-identificar-financiadores-do-golpe.ghtml.
[12] POMPEIA, Caio. Formação política do agronegócio. São Paulo: Elefante, 2021.
[13]CNN Brasil. Alagamentos, destruição e 183 mortes: relembre a tragédia das chuvas no RS que marcou 2024. 27 dez. 2024. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/sul/rs/alagamentos-destruicao-e-183-mortes-relembre-a-tragedia-das-chuvas-no-rs-que-marcou-2024/.
[14]EUROPEAN UNION. Emissions Database for Global Atmospheric Research (EDGAR) – Report 2024. Available at: https://edgar.jrc.ec.europa.eu/report_2024.
[15]O ECO. Gases do efeito estufa: Dióxido de Carbono (CO2) e Metano (CH4). Dicionário Ambiental. ((o))eco, Rio de Janeiro, abr. 2014. Disponível em: <http://www.oeco.org.br/dicionario-ambiental/28261-gases-do-efeito-estufa-dioxido-de-carbono-co2-e-metano-ch4/>
[16]ROQUE, Tatiana Marins; GIRALDO, Victor Augusto. Um segundo turno entre Leibniz e Descartes: o infinito contra o negacionismo. Boletim de Educação Matemática, v. 36, n. 74, p. 1–22, set./dez. 2022. Disponível em: https://www.scielo.br/j/bolema/a/s6cFqcLZsbtDzzrqcDLGw3z/?lang=pt.
[17]AILTON, Krenak. Ideias para adiar o fim do mundo. Companhia das Letras, 2019, p. 13.
[18]BRUM, Eliane. Banzeiro òkòtó: uma viagem à Amazônia, centro do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
[19]DOS SANTOS, Antônio Bispo; PEREIRA, Santídio. A terra dá, a terra quer. Ubu Editora, 2023.