Como escapar da confusão política
Ao dizer que “Marine Le Pen fala como uma comunista dos anos 1970”, François Hollande contribuiu para bagunçar as referências políticas na França. De seu lado, a multiplicação de alianças entre Estados que, a priori, são opostos dificulta a compreensão das relações internacionais.Serge Halimi
Manifestante protesta durante Occupy Wall Street
Mais de quatro anos depois do início das revoltas árabes e das manifestações pelo mundo todo contra o aumento das desigualdades – dos “indignados” ao Occupy Wall Street –, a ausência de resultados imediatos e a perda dos pontos de referência claros desencorajam os ardores de transformar a sociedade e o mundo. Um desencantamento se manifesta: “Tudo aquilo para isso?”. Velhos partidos se decompõem ou mudam de nome e alianças insólitas se multiplicam, o que balança as categorias políticas esperadas. A Rússia denuncia os “fascistas de Kiev”, mas acolhe em São Petersburgo um ajuntamento da extrema direita europeia; a França alterna proclamações virtuosas sobre a democracia e o apoio redobrado à monarquia saudita; o Front National (FN) comemora a vitória eleitoral de uma esquerda radical em Atenas.
A máquina midiática amplifica essa interferência ainda mais naturalmente, já que sua cadência se acelera e ela não sabe produzir nada além de assuntos de tirar o fôlego, próprios para atrair a atenção e suscitar o voyeurismo, a comparação estúpida, o medo. A extrema direita e o fundamentalismo religioso tiram proveito então da desordem geral. Combatentes rivais do “choque das civilizações”, eles propagam a nostalgia de um retorno a um universo de tradições, de obediência, de fé. Eles defendem uma ordem social tão moldada quanto petrificada pelo culto da identidade, da terra, da guerra, das mortes.
Aqui e ali, tentativas de escapar disso transbordam, se chocando, como na Grécia, contra um bloco compacto de má vontade e proibições. Os interesses em jogo são poderosos; a batalha, obrigatoriamente desigual. Sair dessa armadilha exigiria uma visão clara das forças sociais a acionar, dos aliados a ganhar para sua causa, das prioridades sobre as quais fundar uma ação.1 E, para os pontos cardinais que foram armados pelos combates emancipadores de antes – a direita e a esquerda, o imperialismo e o progressismo, a etnia e o povo –, parece que melhor do que nunca se aplica uma observação do escritor Jean Paulhan: “Tudo foi dito, sem dúvida. Se as palavras não tivessem mudado de sentido, e os sentidos, de palavras”.
A França apresenta um exemplo singular. Desde que o FN se tornou um dos principais partidos do país, o tema do “tripartidarismo” reencontrou uma segunda juventude, com um minúsculo detalhe de diferença: originalmente (1944-1947), a palavra fazia referência a dois partidos que se reclamavam marxistas e a um terceiro de centro-esquerda…2
O atual jogo a três deu origem a um concurso de amálgamas, cada protagonista pretendendo que os outros dois se encontrem, ao menos tacitamente, coligados contra ele. “UMPs”, repete o FN. “FNPS”, objeta Nicolas Sarkozy. “UMPFN”, corrigem diversos dirigentes de esquerda. A neblina parece ainda mais impenetrável porque nenhuma dessas três imputações é completamente infundada. “Em matéria econômica, a política de François Hollande é a mesma que a de Nicolas Sarkozy”,3 admite, por exemplo, Arnaud Montebourg, ex-ministro socialista cuja perspicácia ficou dez vezes maior desde sua expulsão do governo, em agosto passado. A União por um Movimento Popular (UMP) e o Partido Socialista (PS) dão a impressão de se enfrentarem na França, mas nenhum questiona os grandes parâmetros econômicos e financeiros fixados pela União Europeia, dos quais quase tudo depende.
Uma grande coalizão dos moderados, como na Alemanha ou na Itália, não esclareceria por fim a situação? Um dos dirigentes da direita francesa, Alain Juppé, sugeriu essa ideia: “Seria preciso, talvez, pensar um dia em cortar as duas pontas do omelete para que as pessoas razoáveis governem juntas e deixem de lado os dois extremos, tanto de direita quanto de esquerda, que não entenderam nada do mundo”.4 Entre esses “moderados e reformistas dos dois campos”, seu aliado centrista, François Bayrou, acrescenta que “não vê diferença entre os grandes”: “Não há nenhuma dificuldade em criar esse tipo de entendimento a respeito do essencial”.5
Direitização da sociedade francesa?
Sem dúvida, tudo foi dito… Já em 1989, o atual primeiro secretário do PS, Jean-Claude Cambadélis, estampava sua morosidade: “Lentamente o ceticismo se instala. Pouco a pouco, estima-se que, encurralado entre as imposições econômicas e a insatisfação social, o terreno não possa ser reconquistado. É preciso ir caçar nas terras do adversário, e nisso há algo de repulsivo, é um salve-se quem puder generalizado”.6 Vinte e cinco anos depois, em um contexto econômico bem mais degradado do que então (em 1988, a taxa de crescimento era de 4,3%; em 1989, de 4%), os socialistas no poder justificam novamente sua guinada neoliberal e o vazio abissal de seu projeto político, ao se esconderem atrás de uma pretensa direitização da sociedade francesa. Cambadélis se lamentava novamente em outubro de 2014: “Todos os temas reacionários clássicos ganharam espaço: a identidade em relação à igualdade e a liberdade para os franceses de raiz, não para aqueles que têm origem na imigração. É extremamente grave”.7 É inclusive uma constatação de falência palpável.
Mas devemos nos espantar com isso? Longe de afastar a onda reacionária, a política dos “moderados” a atrai como um para-raios na mesma medida em que fracassa há décadas, sem propor outro destino coletivo além da promessa de novas penitências recompensadas por meio ponto de crescimento suplementar. Diretor de um jornal progressista norte-americano, Jim Naureckas observa uma debandada semelhante em seu país desde a ascensão do Tea Party: “O centrismo só funciona como ideologia se você estima que as coisas estejam indo bem e requeiram apenas pequenas mudanças. Caso contrário, se você pensa que transformações importantes são necessárias, longe de ser ‘pragmático’, o centrismo é fadado ao fracasso”.8
E nem sempre, bem vemos, em benefício de uma opção progressista. O caso descreve a atual situação grega: um partido social-liberal, o Pasok, passou de 45% a 5% em cinco anos, enquanto o resultado do Syriza cresceu vertiginosamente. Isso também poderia se aplicar, numa escala menor, na Espanha. Mas outros partidos social-democratas resistem melhor. Na Itália, por exemplo, Matteo Renzi aproveitou-se da confusão geral para se impor eleitoralmente (40,8% durante a eleição europeia de maio de 2014), assumindo o papel de insurgente no coração do sistema. Não tanto para transformá-lo, pois a política de Renzi não apenas vai ao encontro das expectativas do patronato transalpino, mas também modifica sua forma, seu estilo: juventude, informalidade, discurso de geração estilo Tony Blair que massacra os “privilégios” dos assalariados protegidos, pretendendo se preocupar com os jovens, condenados aos contratos precários. As elites dirigentes continuam se empenhando em dividir as classes populares na base da nacionalidade, da religião, da geração, do modo de vida, das preferências culturais, do local de residência.9 E a saturar o debate político a fim de que essas polarizações constituam novas identidades políticas que não apresentarão nenhum perigo para a ordem social.
O sucesso do FN decorre dessa interferência, ao mesmo tempo que a amplifica. Seu discurso mistura um nacionalismo étnico (a “preferência nacional”) que seduz o eleitorado de direita e proclamações sociais ordinariamente defendidas pela esquerda. Esta, baseando-se nas questões da identidade, do islã, da imigração, onipresentes no debate público, acredita, como a ex-ministra ecologista Cécile Duflot, que “não há nada além de uma folha de papel mata-borrão entre Nicolas Sarkozy e Marine Le Pen”.10 Mas o ex-presidente recusa tal análise, insistindo sobre um aspecto essencial que, segundo ele, a contradiz: “É mentira que Le Pen é de extrema direita. Ela tem o programa econômico da extrema esquerda. […] Ela propõe exatamente as mesmas medidas – principalmente no que se refere a salário mínimo e aposentadoria – que Mélenchon”.11 Sarkozy associa igualmente Le Pen com o PS: “Votar no FN no primeiro turno é fazer a esquerda ganhar no segundo turno. É o FNPS”.12
O que querem exatamente esses eleitores do FN, objeto de tanta atenção dos concorrentes? Frequentemente vindos dos meios populares, maciçamente partidários de um retorno ao franco (63%), eles se dizem ao mesmo tempo muito menos favoráveis à supressão do imposto de solidariedade sobre a fortuna do que os eleitores da UMP (29% contra 52%) e mais favoráveis do que estes ao restabelecimento da aposentadoria aos 60 anos (84% contra 49%). As demandas dos dois eleitorados se confundem, por outro lado, sobre os temas da redução drástica do número de imigrantes e da proibição do véu na universidade.13
Portanto, direitização da sociedade francesa? A palavra “desordem” sem dúvida corresponde melhor a uma situação na qual o eleitorado de esquerda se desmobiliza porque se sente traído por uma política… de direita. E na qual quase metade dos partidários do FN gostaria “que o sistema capitalista fosse profundamente reformado” e propõe “estabelecer a justiça social pegando dos ricos para dar aos pobres”.14 A história transborda, assim, de casos de protestos legítimos desviados por falta de escoadouros políticos apropriados.
A política internacional não torna o mundo mais decifrável, em particular para aqueles que ainda imaginam que a bússola dos grandes princípios – democracia, solidariedade, direitos humanos, anti-imperialismo etc. – dita o jogo diplomático, mais do que nunca determinado pelos interesses de Estado. Inclusive, mesmo na época da Guerra Fria, a Polônia socialista entregava carvão para a Espanha de Franco, ajudando o ditador de extrema direita a quebrar uma greve de mineiros nas Astúrias. E a China de Mao Tsé-tung tinha excelentes relações com uma turma de tiranos pró-norte-americanos. Simetricamente, quando a União Soviética ocupou o Afeganistão, os jihadistas da região foram armados pela Casa Branca e fotografados com ternura pelo Le Figaro Magazine…
O mundo ficou ainda mais confuso porque hoje os Estados Unidos apoiam o Irã no Iraque, se opõem a ele no Iêmen e negociam com ele na Suíça (ler o artigo da pág. 32)? Ou porque a República Socialista do Vietnã conta com a frota norte-americana para conter as tentações hegemônicas da República Popular da China? Na verdade, os Estados quase sempre procuraram tanto se libertar do abraço de um protetor poderoso demais quanto dissuadir o ataque de um adversário, imaginando alianças de revers [alianças praticadas pela França, que em caso de guerra se alia a um vizinho do seu inimigo – N.T.]. Valorizar as escolhas políticas pouco progressistas da Rússia ou da China para censurar o primeiro-ministro grego por explorar em Moscou ou em Pequim os meios eventuais para escapar do aperto financeiro da União Europeia salientaria por consequência a postura moral. E condenaria à impotência todos os países que não podem fazer que sua salvação dependa da solidariedade de uma comunidade política mundial, pouco operacional no atual momento.
Durante décadas, o combate contra o imperialismo ocidental valeu aos Estados que se engajavam nisso o olhar pleno de indulgência dos militantes de esquerda, ainda mais porque o regime social das nações rebeldes ia de encontro ao dos Estados Unidos e perturbava as multinacionais. Atualmente, esse caso se tornou muito raro; quase nenhum território escapa ao controle do capitalismo. Mais vale então caminhar com as duas pernas, mas uma de cada vez… Quer dizer, encorajar as resistências à hegemonia quando estas abrem o jogo internacional e aumentam o número de opções oferecidas aos dissidentes que seguirão. Mas também compreender que o apoio dado aos Estados expostos às pressões das grandes potências não obriga nem a apoiar nem a perdoar suas outras escolhas políticas e sociais. O tempo das solidariedades automáticas e das oposições sistemáticas não existe mais. Esse conforto acabou.
“Vocês não querem mais saber de classes nem de sua luta? Terão as plebes e as multidões desorganizadas. Vocês não querem mais os povos? Terão os bandos e as tribos”, advertia o filósofo marxista Daniel Bensaïd.15 Nos países onde a política serviu por muito tempo de religião secular – com seus rituais, sua liturgia, seus mistérios –, a diminuição que ela sofreu (redução da escolha, marketing, corrupção, pantouflages[termo que designa o fato de um alto funcionário público passar a trabalhar em uma empresa privada – N.T.]) não poderia deixar de gerar paixões em outros lugares. A fé e uma visão étnica da nação têm em comum o fato de oferecer um meio simples de decifrar o mundo, com uma leitura pouco suscetível de ser desmontada seis meses depois. Mas aceitar que o pertencimento religioso ou cultural constitui a chave da identificação de uma sociedade despossuída de qualquer outro parâmetro é o mesmo que tornar problemática (ou impossível) a maioria das alianças políticas e das convergências sociais.
Nesse jogo, as frações mais reacionárias da sociedade correm o risco de ganhar: uma direita ocidental que, em nome dos valores cristãos do Velho Continente, ou até de um laicismo que por muito tempo perseguiu, começa uma guerra cultural contra um islã minoritário; fundamentalistas muçulmanos que misturam a recusa em assumir as sequelas do colonialismo com a acusação de uma herança progressista herdada do período das Luzes. Na Europa, a saída de tal enfrentamento não gera nenhuma dúvida; apenas um romancista alucinado como Michel Houellebecq pode imaginar que terminaria com uma vitória dos islamitas.
Então é efeito do desespero suicida de uma fração da esquerda radical, ou a consequência do isolamento social e político de suas fileiras mais universitárias, se trechos desse discurso de identidade nacional agora começam a aparecer? Em uma entrevista publicada por uma revista destinada a intelectuais de extrema esquerda, a porta-voz do Partido dos Indígenas da República (PIR), Houria Bouteldja, vem assim evocar os casamentos mistos, propondo que “se resolva o problema com uma conversão… A perspectiva descolonizada é de primeiro nos amarmos a nós mesmos, nos aceitarmos, nos casarmos com um muçulmano ou uma muçulmana, um negro ou uma negra. Eu sei que isso parece uma regressão, mas garanto que não, é um passo gigantesco”.16 Sem dúvida, mas é um dos passos que levam à divisão permanente das categorias populares, ao separatismo racial ou religioso e ao “choque de civilizações”.
Questionado pelo Le Figaro para saber “o que dizer a um jovem de 20 anos”, o ensaísta Michel Onfray soltou a seguinte réplica: “O barco está afundando, seja elegante. Morra de pé”. Outras opções existem, menos cínicas ou desesperadoras. Elas consistem em começar combates, indissociáveis, pela democracia econômica e pela soberania política. Sua solução pode parecer ainda mais incerta hoje porque muitos assuntos nos desviam dela. Mas o destino da Grécia nos leva a ela.
Democracia econômica? Trata-se antes de tudo de conter e depois de colocar um fim ao poder de chantagem que o capital exerce na sociedade17 – um projeto por muito tempo associado à esquerda, mesmo que, na Libertação, um partido centrista como o Movimento Republicano Popular (MRP) se declarasse também “oposto ao capitalismo que reserva o poder de decisão econômica apenas aos detentores do capital e organiza as relações humanas com base na superioridade do capital”.18
Soberania política? É o bem precioso que a União Europeia pretende dinamitar quando se trata dos gregos. Há pouco, Sarkozy comemorava o fato de que, pouco depois de eleito, Alexis Tsipras já tinha “engolido suas promessas eleitorais” e se “colocado de joelhos”.19 Protegidos pelo anonimato, oficiais da zona do euro se expressam com a mesma delicadeza. Eles exigem que o primeiro-ministro grego mude de política se quiser poupar seu país da asfixia financeira. “Esse governo não pode sobreviver”, já soltou um deles.20 No entanto, a menos que haja um golpe de Estado, esse tipo de veredicto ressalta ainda a soberania do povo grego. Então, para os que se sentem desamparados diante de um mundo com parâmetros bagunçados, eis um combate pelo qual lutar, simples, justo, universal e fraterno, que estará ainda menos fadado à derrota quando todos entenderem que ele resume quase todos os outros combates.
Serge Halimi é o diretor de redação de Le Monde Diplomatique (França).