Como fazer um país amar a morte
No Brasil, ao lado de uma biopolítica neoliberal que faz viver e deixa morrer, estamos diante de uma necropolítica que faz morrer e deixa morrer, a qual se desenvolve por meio de diferentes práticas e dispositivos que contam com apoio de várias camadas da população
Exceptis excipiendis
Começava a preparar este texto quando a Polícia Civil terminava de cometer a maior chacina da história da cidade do Rio de Janeiro na favela do Jacarezinho. Durante nove horas, a polícia invadiu ruas e casas com armamento bélico, carregou corpos em lençóis e os colocou em veículos blindados, fraudando as cenas de homicídio e inviabilizando, dessa forma, o posterior trabalho de perícia. Moradores relataram à imprensa o desespero surgido da impossibilidade de se proteger dos intensos tiroteios, sessões de tortura e execuções sumárias que ocorreram dentro de suas residências, bem como o confisco de celulares e as agressões exercidas contra quem não “cooperasse” com os policiais. Em entrevista coletiva na tarde desse mesmo dia, 6 de maio de 2021, o delegado responsável pela ação informou que o objetivo da polícia era executar mandados de prisão contra investigados por aliciamento de adolescentes para o tráfico de drogas e negou que os policiais tenham cometidos abusos porque, segundo ele, haviam agido em legítima defesa. Dois dias depois foram confirmadas 29 mortes. Apenas um dos mortos era policial.
A ação da polícia ocorreu após o Supremo Tribunal Federal (STF), órgão máximo do Poder Judiciário brasileiro, decidir em junho de 2020 proibir operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia causada pela Covid-19, visando assim “diminuir a letalidade policial” em um contexto no qual a população já estava sofrendo com a crise sanitária. Contudo, em “hipóteses absolutamente excepcionais”, o STF entendeu que ações policiais poderiam ocorrer desde que justificadas frente ao Ministério Público (MP), órgão responsável pelo controle externo da atividade policial que, caracteristicamente, não foi avisado pela Polícia Civil com anterioridade acerca da operação. De acordo com levantamento feito pela imprensa brasileira a partir de dados do Instituto de Segurança Pública (ISP), desde a restrição imposta pelo STF, ao menos 944 pessoas foram mortas por policiais somente no estado do Rio de Janeiro entre junho de 2020 e fevereiro de 2021, o que evidencia uma violação sistemática da determinação judicial. A chacina do Jacarezinho corrobora tal evidência, dado que a Polícia Civil, decidindo o que é uma “hipótese absolutamente excepcional”, não se submeteu ao controle por parte do MP e, apesar de não ter legitimidade para decretar e executar a pena de morte – que é proibida no Brasil, excetuado o caso de guerra declarada –, justificou a legalidade dos 28 homicídios com o argumento de que todos os que morreram eram criminosos. Afinal, como se diz por aqui, “bandido bom é bandido morto”. Trata-se de uma expressão popular entre os brasileiros, constituindo, para muitos, um dogma que não deixa espaço para críticas.
Em uma pesquisa encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) em 2016, foi divulgado que 57% dos brasileiros defendem a expressão “bandido bom é bandido morto”, índice que sobe para 62% em municípios com menos de 50 mil habitantes. Por isso, não surpreende que o delegado responsável pela ação no Jacarezinho tenha se apressado em afirmar publicamente que só morreram criminosos na chacina, sem que sequer tenha havido investigação que comprovasse tal alegação, já que no Brasil eventuais assassinatos cometidos por policiais no exercício da função recebem grande apoio popular. Também não é surpreendente que Jair Bolsonaro tenha sido eleito presidente da República em 2018. Explico: no ano anterior, já em campanha, Bolsonaro defendia que a regulamentação do excludente de ilicitude nas ações policiais seria uma das prioridades de seu governo. Trata-se de um eufemismo para, nas palavras do próprio presidente, “dar carta branca para policial matar em serviço sem ser punido” (UOL, 14 dez. 2017). Apesar de a proposta ter sido elaborada pelo então ministro da Justiça Sérgio Moro, e em 2019 ter sido enviada ao Congresso Nacional para votação, o Parlamento não aprovou a exclusão de ilicitude para assassinatos cometidos por policiais em serviço. Todavia, a declaração dada em 2017 foi suficiente para mandar o recado para a tropa – como Bolsonaro chama o conjunto de integrantes das forças policiais brasileiras. De acordo com a Coalition Solidarité Brésil (2021), a letalidade policial avançou sob o bolsonarismo, com ao menos 5.829 cidadãos mortos por policiais em 2019 e 5.660 em 2020. Trago tais dados para que se compreenda que no Brasil de Bolsonaro a chacina do Jacarezinho está longe de ser algo incomum.
Provocativamente batizada de Operação Exceptis, a ação policial que resultou em 29 mortes traduz aquilo que Michel Foucault já havia constatado em seu curso de 1978, Sécurité, territoire, population. Desde a Modernidade, a atividade de polícia não se confunde com justiça ou lei, já que está vinculada a um mundo essencialmente regulamentar: “a polícia é o golpe de Estado permanente que vai agir em nome e em função dos princípios da sua racionalidade própria, sem ter de se moldar ou se modelar pelas regras de justiça”, diz o filósofo francês. Em outras palavras, a polícia é herdeira das medidas de exceção. Herança que, no Brasil, se aprofundou desde que Bolsonaro foi eleito presidente, a ponto de a Polícia Civil contar com o apoio público de seu governo para, ao produzir uma chacina, decidir qual situação é excepcional e qual não é, cabendo ainda a ela decidir se deve cumprir ou não decisões da Suprema Corte brasileira. Com efeito, o padrão operacional das polícias no Brasil pode ser definido da seguinte forma: mata primeiro, investiga depois. Nesse sentido, também não surpreende saber que a Polícia Civil do Rio de Janeiro, por meio de decisão do governador do Estado, Cláudio Castro, estabeleceu sigilo de cinco anos para todas as informações referentes à operação na favela do Jacarezinho (G1, 25 maio 2021).
Produção permanente de cadáveres
“Parabéns à Polícia Civil do Rio de Janeiro!”, comemorou Bolsonaro em sua primeira manifestação pública direta sobre a chacina mais letal da história do Rio (Deutsche Welle Brasil, 10 maio 2021). É diante de frases assim que penso que a gramática foucaultiana, apesar de necessária, parece ser insuficiente para compreender a pulsão de morte capitaneada pelas polícias brasileiras, principalmente durante o governo Bolsonaro, que coincide com a configuração de uma nova situação epocal de recorte necropolítico. Antes de mais nada, julgo necessário discutir brevemente alguns pontos que Foucault aborda, relativos ao desenvolvimento da atividade policial, para que seja possível compreender minha afirmação sobre sua insuficiência.
A investigação foucaultiana demonstrou que, no final do século XVII e início do século XVIII, teóricos como Jean Bacquet e Nicolas Delamare definiam a atividade de polícia como aquela que excede o direito comum com a finalidade de assegurar o “esplendor do Estado” ou, em outras palavras, seu brilho e beleza. A partir dessa perspectiva, se consolidaram tarefas típicas da polícia, tais como polícia dos costumes, polícia da saúde, polícia dos alimentos, polícia da habitação, polícia do comércio, polícia da pobreza, polícia da tranquilidade pública etc. Inclusive, foi nesse sentido que Montesquieu – em De l’esprit des lois (1748) – afirmou que as matérias de polícia se encontram nos detalhes do cotidiano das pessoas e que, ao tratar das minúcias, a polícia não atua por meio das leis civis, mas mediante regulamentos. A partir do século XVIII, a razão de Estado passa a se articular por meio do domínio da gestão econômica sobre a população e, por conseguinte, a função da polícia se torna mais restrita, denotando “simplesmente o instrumento pelo qual se impedirá que certo número de desordens se produza”, constata Foucault. Com isso, a polícia ganha uma nova morfologia, encarnando uma função repressiva exercida por meio de mecanismos de segurança que adquirem “sentido puramente negativo”. É preciso frisar que Foucault não identifica polícia e soberania, uma vez que fazem parte de governamentalidades diversas. Também não identifica violência e polícia, já que esta tem dimensões principalmente disciplinares e biopolíticas. Pois bem, são essas delimitações conceituais que já não me parecem válidas hoje.
Apesar de Foucault ter dito que a soberania é uma tecnologia de poder que faz morrer e deixa viver, e que também pode se expressar por meio da polícia, cujo objetivo é manter a ordem, a força e a segurança do Estado, é com Achille Mbembe que podemos compreender melhor a prática policial no atual contexto brasileiro. Nele a polícia é uma das principais expressões do poder de morte. No conhecido ensaio Necropolitics (2003), Achille Mbembe desenvolve a tese de que o exercício da soberania envolve a instrumentalização da “destruição material de corpos humanos e populações”. Daí surge a noção de necropolítica que, para Mbembe, demonstra justamente que a soberania expressa o direito de matar e expor as pessoas à morte. Penso que a dinâmica entre soberania e produção da morte se manifesta de forma evidente nas polícias brasileiras. No Brasil, a polícia não é o golpe de Estado permanente, como poderia dizer Foucault, mas, em uma expressão cuja força é difícil reproduzir, trata-se da produção permanente de cadáveres. Com efeito, Bolsonaro sabe muito bem mobilizar o necropoder e não somente por meio das polícias. No Brasil, ao lado de uma biopolítica neoliberal que faz viver e deixa morrer, estamos diante de uma necropolítica que faz morrer e deixa morrer, a qual se desenvolve por meio de diferentes práticas e dispositivos que contam com apoio de várias camadas da população. Vejamos algumas dessas práticas.
Garoto propaganda de milícia
Conforme detalhado em diferentes veículos da imprensa brasileira, o massacre deflagrado pela Polícia Civil no Jacarezinho ocorreu 12 horas depois de uma reunião entre Bolsonaro e o governador Rio de Janeiro Cláudio Castro. Além disso, como demonstrado nas reportagens, Exceptis se deu em uma área que interessa às milícias e que está sob o domínio de facções cuja principal atividade é o tráfico de drogas ilícitas. No Brasil, a expressão milícias se refere a grupos paramilitares liderados por policiais e ex-policiais que, por meio de um discurso moralista de combate ao tráfico de drogas, busca legitimação social e ganhos econômicos. O modus operandi das milícias se dá por meio de coação e extorsão de moradores e comerciantes com a finalidade de domínio pelo terror, grilagem de terras públicas, agiotagem e pagamento de propina, tortura, roubo e tráfico, entre outras ações criminosas, tais como a formação de grupos de extermínio, ovacionados e incentivados pela família Bolsonaro.
Entre 2003 e 2018, Flávio Bolsonaro, filho mais velho do presidente e atualmente senador da República, durante anterior mandato como deputado estadual do Rio de Janeiro, aprovou moções de louvor, condecorou e distribuiu medalhas homenageando, “pelos serviços prestados ao Estado do Rio de Janeiro”, diversos policiais e militares investigados, acusados ou condenados por terem cometidos inúmeros crimes. Dois deles são apontados como participantes dos assassinatos, em 2018, da vereadora de esquerda do Rio e defensora de direitos humanos Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes. Outro filho, Carlos Bolsonaro, atualmente vereador do Rio, foi investigado pelo envolvimento nesses homicídios. Contudo, em 2019, a Polícia Civil descartou sua participação como mandante das execuções, ainda que mantivesse relações belicosas com Marielle e morasse no mesmo condomínio de Ronnie Lessa, ex-policial e miliciano integrante do grupo de extermínio “Escritório do Crime”, acusado de atirar em Marielle e que, quando foi preso em casa, tinha em seu poder 117 fuzis. Durante os 27 anos como deputado federal, Jair Bolsonaro demonstrou grande apreço pelas milícias. Em 2003, defendeu na Câmara de Deputados em Brasília o crime de extermínio praticado por elas: “Se depender de mim, terão todo o meu apoio”.
Em 23 de abril de 2021, quando o Brasil se aproximava de 400 mil mortos pela Covid-19, Bolsonaro participou de um programa de televisão chamado Alerta Nacional acompanhado por alguns de seus ministros de Estado. Durante 40 minutos, ele interagiu de maneira descontraída com o apresentador, fazendo piadas homofóbicas e xenofóbicas, criticando as medidas restritivas de contenção da pandemia – que são organizadas com muita dificuldade por governadores e prefeitos, já que o governo federal se recusa a efetivá-las – e afirmando que cogita a possibilidade de usar as Forças Armadas contra o isolamento social. Ao final, posou sorridente para uma foto com uma placa escrita “CPF cancelado”, expressão comumente utilizada pelas polícias e pelas milícias para comemorar assassinatos cometidos sumariamente. Muito utilizada em programas de TV sensacionalistas e populistas como o Alerta Nacional, que cobrem a atividade policial e possuem grande audiência no Brasil, a expressão é um sucesso nacional, em especial porque desumaniza os mortos, transformando-os em meros cadáveres descartáveis aos quais já não mais se associa sequer um número.
Joyce Karine de Sá Souza é doutora em Direito & Justiça pela Universidade Federal de Minas Gerais (Brasil) e professora universitária.