Como o funk carioca destruiu a paisagem musical
Mais de uma década separa a corrida por cliques nas atuais plataformas da implosão do circuito de bailes – causas e consequências de agitações de 2013. Veja no novo artigo da série Entrementes
Cheiro úmido e tremor no esterno do peito: duas sensações estranhas à experiência de escutar música no streaming. As frequências graves da parede sonora se somavam ao escuro dos bailes para oferecer aos presentes um estrago irremediável – com consequências culturais, políticas e sociais que, entre uma canção e outra, nem sempre eram tão perceptíveis. O funk carioca não fundou as viradas de madrugada, o volume alto nas caixas, as festas em ambiente fechado. Mesmo assim, foi capaz de destruir a paisagem musical.
A empreitada não foi fruto de uma invenção sonora. Houve um arranjo que combinou traços históricos da cultura popular com as condições de comunicação disponíveis na virada dos anos 2000 para os anos 2010. Porque exatamente nesse período um circuito foi formado, inicialmente no Rio de Janeiro antes de se expandir para o país de modo mais amplo. Embora tenha sido explosivo, o intervalo foi breve. E quase imperceptível, por conta da confusão que invadiu a cena pública.
É também a agressividade dos últimos meses que impediu que outras camadas do que aconteceu no Brasil em 2013 fossem compreendidas. Multidões às ruas, reivindicações difusas de junho, apropriações de discursos e ocupação dos espaços públicos por movimentos de extrema direita exigiram esforços para o entendimento da ação dos partidos ou das grandes corporações. Os traços culturais, menos tingidos de ares de gravidade, costumam escapar das análises. Imaginem no caso do funk.
Lascivo, violento e fragmentado – o gênero musical tem todas as características para dificultar um olhar preciso, contido e livresco. Ainda mais quando a intenção é comparar um parâmetro político contemporâneo, a exemplo dos protestos que eclodiram durante a Copa das Confederações no Brasil, com essa cena cultural. A relação com a população negra e com o apelo junto às camadas menos endinheiradas é outro ponto de tensionamento. Até a experiência dos bailes se choca com a trama fria de argumentos.
Impressões de impacto: a maneira de enfrentar o que aconteceu nesse breve intervalo é de partida provisória e inacabada. Ou melhor, estilhaçada. Um pouco do horizonte cultural dos anos 2000, alguma coisa a mais das canções e muito de política. Até porque os silêncios sobre a relação entre o que aconteceu entre o sucesso do “Clima dos Bailes” e as disputas sociais no Brasil da época – e atualmente – dizem bastante sobre contra quem se dirigem os preconceitos no país.
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Nada havia de silencioso no extraordinário circuito formado pela produtora Furacão 2000. Chegava a lugares-limite, impensáveis a poucos anos o espetáculo ruidoso do ritmo eletrônico carioca, com vozes distorcidas por caixas de som quase estouradas. A palavra é errada – nada ali se destinava a espectadores. Massa sonora, penumbra, lotação de quadras e atmosfera criada pelos bailes não permitiriam postura contemplativa: induziam a movimento, conferiam ao corpo centralidade. Mas não se trata de peça exótica, fetichizada.
Durante a primeira década do século XXI, foram travadas batalhas políticas e jurídicas para que os eventos se tornassem definitivamente legítimos. A Furacão 2000 participou dessas campanhas, que culminaram na aprovação do projeto de lei que derrubou as limitações para bailes em comunidades. Àquela altura, quadras de escola de samba e casas de shows no asfalto já recebiam as noites de funk. Na geografia desigual do Rio de Janeiro, entravam agora em áreas de classe média no asfalto do norte ao oeste da cidade.
As iniciativas de equipes como a Furacão 2000 promoveram uma movimentação tensa, errática e controversa de jovens de diferentes realidades para os bailes. Adolescentes de colégios privados e recém-adultos compravam os mesmos ingressos, escutavam músicas iguais e dançavam sob ritmos idênticos. O fascínio com essa estranha oportunidade é expresso de forma bem-acabada no conto “Baile Perfumado” de João Paulo Cuenca. Em encantamento com as transformações sociais promovidas pelo então governo federal, talvez.
Qualquer visão de congraçamento de classes e raças durante essas noites é pura mitologia. O interessante é a articulação com o dia a dia dos frequentadores. As canções circulavam pelos programas para download – gratuitos e ilegais –, com o incentivo de páginas na internet voltadas para o funk. As músicas vinham com a assinatura desses sites, inclusive. Embora coletâneas em CD transitassem entre lojas especializadas e bancas de camelô, era a web que ajudava a fazer com que as letras fossem memorizadas.
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A imagem de quem curtia a Furacão 2000 também operou uma invasão: a produtora conseguiu manter durante anos a faixa após a hora do almoço na Band com o programa “O Clima dos Bailes” – portanto, em TV aberta. Diante do flash com o cameraman, danças eram improvisadas na expectativa de que fossem exibidas para os televisores ao longo da semana. Havia entrevistas com os artistas que se apresentavam e até com os frequentadores, mas eram os gestos, incisivos ou evasivos, que atraíam os olhares.
A despeito de o rádio também exercer influência decisiva para esse sucesso, ver em casa o que acontecia nas quadras e poder escutar quando quisesse as faixas dos cantores, chamados de MC’s, era transformador. Enquanto outros canais de TV transmitiam cultos no mesmo horário, era exibido o que acontecera na noite da véspera ou antevéspera. Foi o que sustentou a conexão entre a rede de festas, o público que pagava ingresso e as mudanças no gênero que já existia pelo menos desde a virada para a década de 1990.
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A transição de 2013 para o ano seguinte é definitiva para Anitta. É nesse intervalo que explode “Show das Poderosas” – composta pela própria artista, a caminho de abandonar o prefixo MC e encarnar de vez a nova cantora. Trilha sonora de novela da TV Globo, foi sucesso com as crianças, mas desviou do repertório provocativo e incendiário do álbum de estreia. As primeiras versões físicas do CD foram distribuídas entre universitários e frequentadores de festas, mas o álbum efetivamente veio a público em 2014.
O título foi o mesmo da canção que mais circulava naquele momento, apesar de haver identidade muito maior entre as demais faixas do que com “Show das Poderosas”. Cada canção era acompanhada de uma introdução, algo que não era tão comum para o funk. Podiam ser mais habituais as aberturas com os MC’s já com o microfone em riste. Anitta recuperava tradições melódicas dos bailes, com letras de autoafirmação e ironia. A trajetória da cantora desestimula todas as acusações de ausência total de talento.
Gravações com o guitarrista Nile Rodgers, a cantora Madonna ou com os tropicalistas Caetano Veloso e Gilberto Gil deveriam inibir essa categoria de crítica. Anitta é a artista brasileira da atualidade mais ouvidas nas plataformas – e é esse o ponto que ajuda a entender reações furiosas. As dinâmicas em torno do hábito de ouvir música foram transformadas em uma década. Os cliques guardam poucas características do trânsito, lícito ou pirata, de CDs pelas cidades. Ou dos downloads de arquivos.
MC Anitta é o maior exemplar do circuito carioca do funk. Apareceu em “Clima dos Bailes”, teve músicas baixadas por programas duvidosos e fez as apresentações em sequência, nas noites infindáveis que aquela cena exigia. As canções iniciais da carreira, a exemplo da composição própria “Menina Má”, foram experimentadas na volúpia das madrugadas em claro. O salto para a carreira nacional aparta a cantora da identidade da Furacão 2000. Até houve tentativas no gênero musical, mas sua inclinação é para um pop global.
O padrão foi seguido por músicos que partiram dos bailes: Ludmilla, atração da edição de 2024 do festival Coachella; e Kevin O Chris, gravado pelo canadense Drake, igualmente se basearam no alcance mundial das redes digitais para ensaiar atingir outros países. Isso não exige um abandono total da relação com os lugares de onde o funk surgiu – embora, nesse processo, possa haver priorizações. Na trajetória de artistas de outros gêneros, como Pabllo Vittar, é possível identificar semelhanças essas tendências.
Não por coincidência, todos os nomes brasileiros mencionados fizeram parcerias com Anitta. Se as controvérsias sempre alimentaram a circulação dos artistas e de seus trabalhos pela cultura popular, a dinâmica digital radicaliza o cenário: a aproximação se dá ou por meio da adesão fervorosa dos fãs ou pelo ranger de dentes dos odiadores. Assim, é possível que qualquer tatuagem promova mais discussões do que as complexas transformações a que, em cerca de uma década, a música assistiu.
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Os ruídos da comunicação se espalharam por esse tímido hiato: muitas das primeiras transmissões ao vivo na internet realizadas por usuários avulsos, distantes das grandes corporações, também datam dos primeiros anos da década de 2010. As lives improvisadas documentaram inclusive as manifestações de 2013, em suas tensões que propiciaram, no limite, a emergência de uma extrema direita com poder de voto e as resistências democráticas que impediram outros retrocessos sociais, políticos e culturais desde então.
Mais de uma década separa a corrida por cliques nas atuais plataformas da implosão do circuito de bailes – causas e consequências de agitações de 2013. No Rio de Janeiro, o destaque da cena musical horrorizou a frágil moralidade: reacendeu preconceitos, recolocou em disputa questões como a violência policial, embaralhou momentaneamente hierarquias. Esses indicativos, em escala nacional, ajudam a trazer à tona motivos que fizeram eclodir tantos ressentimentos, a despeito de não esgotar em absoluto os atos.
A dinâmica digital fez ruir estruturas que serviam de parâmetro para a sociedade. Um exemplo é a indústria dos discos, que precisou ser reformulada depois da explosão dos downloads. O circuito do funk passou à revelia das grandes gravadoras, foi ignorado pelos círculos ilustrados da cultura brasileira até que se tornou impossível escapar do seu apelo. A formação da cena só foi permitida por essa via alternativa, formada por negociações com veículos tradicionais combinadas aos novos hábitos.
O circuito da Furacão 2000 ilustra as possibilidades que a internet propiciava. Verbo conjugado no passado: o início dos anos 2010 foi o marco anterior à consolidação das big techs. No mundo, a caçada contra iniciativas como Pirate Bay e Mega Upload simboliza o começo da concentração para os grandes grupos. Escândalo de vazamento de dados, processos de desinformação e agressões internacionais aos preceitos democráticos mínimos são elementos que se somaram a essa linha cronológica a partir do monopólio.
O rearranjo da música vai na mesma direção. A participação efetiva do funk, enquanto projeto coletivo, na cena pública dá lugar a um duplo esvaziamento. De um lado, a pulverização das iniciativas, com cada perfil de artista a servir de suporte para propósitos distintos. De outro, a concentração de recursos em poucos escolhidos, capazes ao mesmo tempo de atrair engajamento e oferecer uma experiência diluída. Nada de intensidade – apenas cliques, hot charts, trending topics.
A cena musical participou, assim, da derrocada da estrutura tradicional do disco no Brasil. Hoje, aquele trânsito estimulado pela Furacão 2000 inexiste. A equipe de baile continua ativa, sem programa na televisão e sem a mesma adesão do passado. Supor que a hegemonia neopentecostal, que a ética miliciana e que o empobrecimento das classes médias tenham a ver com esse processo não é um erro. Seria um equívoco, isso sim, desconsiderar as frequências graves do Rio de Janeiro enquanto fator para transformações sociais.
Helcio Herbert Neto é autor do livro Palavras em jogo (2024). Atualmente, realiza pesquisas sobre cultura popular em âmbito de pós-doutorado no Departamento de Estudos Culturais e de Mídia da UFF, instituição pela qual também se tornou mestre em Comunicação. Formado em Filosofia (UERJ) e Jornalismo (UFRJ), é ainda professor e doutor em História Comparada pela UFRJ.