Como o Russiagate cega os democratas
Para justificar a derrota nas eleições de 2016, os democratas levantam razões de todo tipo: a ilegalidade do sistema eleitoral, as fake news ou então os russos, acusados de conluio com o presidente Donald Trump. O foco em Moscou oculta as verdadeiras causas da derrota, especialmente o programa econômico defendido pelo partido
Os bombardeios franco-americano-britânicos na Síria, na sequência do envenenamento de um ex-espião russo e de sua filha no Reino Unido, mergulharam as relações entre a Rússia e o Ocidente em abismos inéditos. No entanto, alguns, pouco sensíveis a essas tensões, chegam a ver nisso razões para ter esperanças, a começar pelo New York Times. Comentando a decisão norte-americana de fechar um consulado e expulsar sessenta diplomatas russos, o conselho editorial do prestigioso diário se alegrava em 26 de março: “Esses desenvolvimentos permitem esperar que [Donald] Trump seja enfim obrigado a reagir à ameaça que [Vladimir] Putin faz pesar sobre os Estados Unidos e seus aliados”. O único inconveniente, segundo os jornalistas, é que “Trump deverá ir mais longe se quiser enfrentar de maneira eficaz os golpes baixos de Putin”.1 Algumas semanas depois, após o suposto ataque com armas químicas realizado em Douma, perto de Damasco, o presidente norte-americano fustigava “Putin, a Rússia e o Irã”, culpados de “apoiar o animal Bashar al-Assad”, e afirmava que eles iam “pagar muito caro”. Foi “a primeira vez depois de sua eleição que ele se dirigiu pelo nome ao presidente russo no Twitter”, extasiou-se o New York Times.
A “esperança” expressa pelo diário faz eco ao sentimento dominante nos círculos progressistas depois que os serviços secretos acusaram o Kremlin de ingerência na eleição presidencial norte-americana de 2016. Em 2009, no início do primeiro mandato de Barack Obama, os democratas evocavam um “reset” nas relações com Moscou e zombavam o retorno dos republicanos aos discursos da Guerra Fria. Exortando Trump a “endurecer a política em relação à Rússia e a Putin” – como o fez Chuck Schumer, o chefe da minoria democrata no Senado – ou ainda a “retaliar […] para nos defender contra a subversão russa” (segundo as palavras do ex-vice-presidente Joseph Biden), eles se alinham hoje aos neoconservadores e aos falcões republicanos.2
“Um ataque contra a Constituição”
Assim, a indicação para o posto de conselheiro de Segurança Nacional de John Bolton não necessariamente desagradou aos democratas. De fato, este último “é o pior pesadelo de Moscou”, observa Harry J. Kazianis, pesquisador do Centro para o Interesse Nacional. “Durante toda a sua carreira, ele foi um falcão anti-Rússia.”3 Além disso, semanas antes de sua indicação, durante discurso pronunciado em fevereiro, Bolton afirmou que a suposta ingerência da Rússia no processo eleitoral era “um ataque contra a Constituição dos Estados Unidos”. Ele pediu, portanto, medidas duras contra Moscou, “no ciberespaço e em outros lugares”, e formulou este conselho: “Não acho que a resposta deva ser proporcional; acho que ela deve ser totalmente desproporcional”. Em outras palavras, como ele disse na rede de ultradireita Fox News em 2016: “É preciso machucar os russos”.
Bolton sempre recusou qualquer forma de negociação ou reaproximação com Moscou, sob o risco de aumentar o perigo nuclear. Quando era subsecretário de Estado para o controle de armamentos (2001-2005), ele supervisionou a denúncia pela administração de George Bush do tratado ABM (Anti-Balistic Missiles), assinado trinta anos antes com a União Soviética. Fixando um teto para as capacidades estratégicas de defesa, esse tratado incentivava a limitar o desenvolvimento de armas nucleares ofensivas, firmando as bases dos tratados posteriores sobre o controle de armas. Quando apresentou o novo arsenal nuclear russo, em março último, Putin tomou o cuidado de deixar claro que essa modernização era a consequência da revogação do tratado ABM por Washington; depois, ele apelou para um retorno ao sistema de controle de armamentos desmontado, segundo ele, pelos Estados Unidos. Para Bolton, isso não passa de “argumentos de propaganda”, “absurdos”. O verdadeiro objetivo de Putin, analisou ele na Fox News, rede da qual era então consultor, era “tentar fazer novamente da Rússia uma grande potência […], e fazer novamente da Rússia uma potência nuclear maior é parte desse objetivo”.
Bolton nunca escondeu: ele quer acabar com as disposições que garantem, em âmbito mundial, um controle dos armamentos. “A próxima etapa nas relações bilaterais com a Rússia”, explicou em 2017 na Conferência de Ação Política Conservadora, “é a revogação pela atual administração do novo tratado Start” (Strategic Arms Reduction Treaty – Tratado de Redução de Armas Estratégicas) – acordo assinado em 2010 com Moscou que previa diminuir o número de ogivas nucleares norte-americanas e russas –, porque “isso seria um sinal enviado a Vladimir Putin”.
No entanto, mais do que analisar as implicações dessas posições estratégicas, os meios de comunicação progressistas preferem se interessar pela “estranha” aparição de Bolton, há cinco anos, num clipe de uma associação russa de defesa de armas de fogo.4 Não porque as propostas que ele defendia ali tivessem qualquer interesse diplomático, mas porque a prática corrente dos comentaristas do Russiagate é colocar em destaque todo elemento que possa reforçar a história de um esquema de Moscou e de uma possível implicação de Trump, e ignorar as informações que possam invalidar essa tese.
Preocupação nas Nações Unidas
Nessa perspectiva, a indicação de um falcão anti-Rússia para o posto mais alto da segurança nacional é apenas o mais recente dos elementos a evitar.5 Afora a expulsão de um número recorde de diplomatas, seria possível mencionar, entre as recentes iniciativas norte-americanas, as sanções adotadas contra personalidades (entre elas o genro de Putin) e contra treze empresas, ou ainda o destacamento de dois navios de guerra para o Mar Negro – manobra que “se inscreve num esforço destinado a combater a crescente presença dos russos na região”, segundo a CNN. “Vocês enviam navios para o Mar do Norte e isso aumenta neles a sensação de ameaça”, disse um alto funcionário norte-americano.6 Uma simples olhada num mapa faz com que nos perguntemos sobre a razão pela qual os Estados Unidos querem combater a “crescente presença” dos russos num mar que margeia seu próprio território. Seria igualmente possível se perguntar se as expulsões de diplomatas e as sanções financeiras constituem uma estratégia apropriada. Mas a adesão à história de um Trump submisso à Rússia torna difícil a crítica dessas medidas, levando em conta que até os adversários do presidente as defendem.
Não olhar para as iniciativas pró-guerra do presidente em relação à Rússia significa ignorar os riscos que elas alimentam. Comparando a situação atual “àquilo que vivemos durante a Guerra Fria”, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, recentemente exortou as duas partes a restabelecer “os mecanismos de comunicação e controle a fim de evitar a escalada das tensões e contribuir para que as coisas não escapem completamente ao controle”. A ameaça nuclear, alertou ainda o Boletim dos Cientistas Atômicos, foi “agravada pelo fato de que as relações russo-americanas são hoje marcadas mais pelo conflito do que pela cooperação”, que a coordenação está “reduzida a quase nada” e que “nenhuma negociação russo-americana sobre o controle dos armamentos está em curso”.7
A perspectiva de um arrefecimento das tensões sofreu um sério revés com a crise que resultou do envenenamento do ex-espião russo Sergei Skripal e de sua filha, Yulia, em Salisbury (Reino Unido). O ministro britânico das Relações Exteriores, Boris Johnson, conseguiu convencer mais de vinte Estados-membros da União Europeia e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) a expulsar cerca de 150 diplomatas russos – uma cifra nunca atingida por uma operação desse tipo.
Desde o começo do caso, o líder trabalhista Jeremy Corbyn qualificou o envenenamento de “bárbaro e mais que irresponsável”, depois quis que “se pedissem explicações às autoridades russas com base em provas”, encorajando o governo conservador a enviar amostras à Rússia sob os auspícios da Organização para a Proibição de Armas Químicas. Pedir provas? Apelar para instituições internacionais? Tal atitude fez que Corbyn fosse chamado de “pombo dos russos” pelos meios de comunicação britânicos, por seus adversários políticos e mesmo por membros de seu próprio partido.
Ouvir o barulho da artilharia
O envenenamento em Salisbury e o Russiagate têm em comum a acusação automática do Kremlin, aí incluída a ausência de provas públicas e o risco de provocar uma escalada das tensões. Uma diferença de tamanho distingue, no entanto, esses dois casos. Diferentemente de Corbyn, nos Estados Unidos nenhum líder político de primeiro escalão insistiu na necessidade de provas nem preconizou uma reação estudada. Impulsionados por sua obsessão anti-Rússia, os democratas e os colunistas progressistas insistem, ao contrário, para que Trump endureça sua postura.
A chegada de Bolton só vai reforçar essa tendência. Em artigo publicado em fevereiro, ele afirmou: “As ambições globais de Putin não envolvem intenções benevolentes em relação à América e, quanto mais rápido ele souber que sabemos disso, melhor”. Ora, prosseguiu ele, seria ingênuo acreditar que simples “acusações penais” e “sanções financeiras” contra os russos “serão minimamente suficientes para lhes provar nosso descontentamento”: “É preciso, em vez disso, que Putin ouça o barulho da artilharia e das lagartas dos tanques da Otan multiplicando as manobras conjuntas com o Exército ucraniano. É isso, e muito mais ainda, que vai atrair sua atenção. Uma resposta análoga se justifica no Oriente Médio, onde a Casa Branca coloca já as bases de reações mais enérgicas às investidas que a Rússia faz como forma de testar os Estados Unidos. Há raros momentos na política em que acontecimentos inesperados criam ocasiões que é preciso aproveitar antes que desapareçam”.8
A elite democrata e os grandes líderes de opinião da esquerda liberal estão entre aqueles que Bolton pode admitir que criaram as ocasiões que ele agora quer aproveitar. Neste momento perigoso das relações russo-americanas, eles enfim se convencerão de que seria melhor deixar como está?
*Aaron Maté, jornalista, é correspondente e produtor de The Real News.