Como os combustíveis encareceram mais no Brasil
O modelo “do poço ao posto”, que revela o papel da Petrobras em cada ponto da cadeia dos combustíveis automotivos, representava mais do que um slogan
A fragmentação da cadeia de combustíveis no Brasil teve efeitos profundos. A venda de ativos da Petrobras, acelerada a partir da década de 2010, desmontou a estrutura estatal integrada, da produção à distribuição. Esse desmonte comprometeu a soberania energética, aumentou os preços e aprofundou desigualdades regionais e sociais. O setor de gás natural é um exemplo emblemático: a privatização de elos estratégicos levou a tarifas elevadas e desestímulo à reindustrialização. No entanto, é nos combustíveis líquidos e no GLP que os impactos mais diretos têm sido sentidos nos últimos anos, afetando a população e setores produtivos como o agronegócio, especialmente em relação ao preço do diesel e do gás de cozinha.
O modelo “do poço ao posto”, que revela o papel da Petrobras em cada ponto da cadeia dos combustíveis automotivos, representava mais do que um slogan: tratava-se de uma concepção de política energética com capacidade de planejamento integrado de portfólios, equilíbrio regional e modicidade de preços. A venda da BR Distribuidora, da Gaspetro, de gasodutos de transporte, refinarias e fábricas de fertilizantes retirou do Estado o controle sobre setores estratégicos, entregando a lógica de preços à fragmentação de mercado e à rentabilidade privada. Essa decisão ampliou a vulnerabilidade do país diante da volatilidade dos preços das commodities internacionalmente e reduziu sua capacidade de resposta.

A privatização da Gaspetro, concluída em 2022, ilustra essa mudança no elo da distribuição de gás. Os relatórios financeiros da Comgás, maior distribuidora do país, mostram uma elevação da tarifa média de R$ 1,54/m³ em 2014 para R$ 3,11/m³ em 2024 considerando a receita realizada e o volume demandado, um aumento de 102% – mais de 20 pontos acima da inflação acumulada (81,5%) no período. O que foi prometido como vetor de competitividade tornou-se obstáculo à produção, onerando cadeias industriais para atender residências.
Entre 2016 e 2022, o GLP subiu de R$ 46 para R$ 112 segundo a Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), empurrando milhões de famílias ao uso de lenha. A gasolina ultrapassou os R$ 7/litro em 2022, frente à média de R$ 2,91 em 2014. Os efeitos dessa explosão tarifária atingiram o cotidiano da população trabalhadora, com impactos na segurança alimentar e nos custos logísticos.
Contudo, outro componente importante se manifestou. A financeirização da Petrobras, orientada para lucros e registrando dividendos recordes, substituiu a função pública por uma lógica de mercado sob pressão de mecanismos de governança que vêm paulatinamente afetando a gestão de estatais brasileiras impostas por operações jurídicas controversas que, por meio de novas leis, reforçam o caráter empresarial e rentista de sociedades de economia mista. A regulação foi enfraquecida e a concorrência se reduziu a enfrentar os oligopólios que operam sob a ótica do máximo rentismo. O setor energético deixa de ser prioritariamente instrumento de desenvolvimento para se tornar fonte de renda e especulação para fundos privados e estrangeiros.
Contudo, 2024 marca o início de uma potencial inflexão. A Petrobras vem resgatando fábricas de fertilizantes e passou a reorientar o Novo Mercado de Gás, procurando influenciar a integração do programa Gás para Empregar à Nova Indústria Brasil. Entre os primeiros passos podem estar o enfrentamento de gargalos importantes de infraestrutura, como constatado no anúncio de captação de R$ 3 bilhões em debêntures para ampliar os dutos para escoamento do gás do pré-sal, especialmente com aportes voltados ao Projeto Raia na Bacia de Campos.
Desde a implementação da nova política de preços da Petrobras, em maio de 2023, o Preço de Paridade de Importação (PPI) deixa de ser referência única, com manutenção dos preços internos abaixo da referência internacional e dando maior estabilidade aos preços internos. Essa mudança tem sido acompanhada por um aumento no fator de utilização das refinarias, resultando em maior volume de processamento de petróleo nacional.
Em 2024, apesar da pressão gerada pela valorização cambial e pelo aumento do PPI, a Petrobras manteve os preços do diesel inalterados ao longo de todo o ano e realizou apenas um reajuste na gasolina, com elevação aplicada em julho. Já em 2025, diante da queda dos preços internacionais, a estatal – após elevar o preço do diesel em janeiro – adotou três reduções consecutivas em março, abril e maio, além de uma diminuição no preço da gasolina em junho.
No entanto, as reduções nas refinarias não têm se refletido integralmente no preço final ao consumidor, uma vez que as margens brutas de distribuição e revenda, especialmente nas regiões Norte e Nordeste, permanecem elevadas. Esse fenômeno decorre da fragmentação da cadeia de abastecimento pós-refinaria, como a venda da BR Distribuidora, e da ausência de mecanismos regulatórios mais eficazes sobre os agentes privados do downstream.
A reconstrução do papel público da Petrobras não é saudosismo, mas uma estratégia racional. A estatal destinará 15% de seu CAPEX ou US$ 16,3 bilhões à transição energética nos próximos anos, sem negligenciar o suprimento de combustíveis fósseis, visando garantir a oferta a partir de 2030. Em 2024, os investimentos cresceram 69,4%, incluindo refino, fertilizantes e infraestrutura, mas ainda priorizando substancialmente a exploração e produção de petróleo.
Com isso, conclui-se que, com o menor consumo per capita de energia entre países continentais – chegando a patamares sete vezes inferiores aos do Canadá, Estados Unidos e Rússia –, o Brasil precisa ampliar a aplicação de energia especialmente em áreas periféricas como pilar de justiça social. O mercado privado, agora presente em diversos elos da cadeia, com forte viés voltado à rentabilidade, não prioriza essa função. O gás natural, insumo estratégico na transição energética e na reindustrialização, precisa ser ofertado a preços justos a partir de forte regulação e presença estatal ao longo de toda a cadeia.
Retomar a lógica “do poço ao posto” é reafirmar a soberania nacional e o papel da energia no desenvolvimento. O desmonte promovido a partir de 2016, e gestado já desde a década de 1990, não trouxe eficiência nem justiça tarifária, pelo contrário, vem onerando toda a cadeia fóssil nacional. Reintegrar os elos sob coordenação pública é condição para um novo ciclo de crescimento industrial, segurança energética e, principalmente, inclusão social.
Leonardo Mosimann Estrella é pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (Ineep) na área de Gás Natural e Fertilizantes. É administrador e discente em Ciências Econômicas pela UFSC e mestre e doutorando em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Socioambiental pela UDESC.