Como perder uma eleição
Um adversário rejeitado por seu próprio campo, uma evolução demográfica favorável, meios financeiros consideráveis: os democratas tinham todas as cartas na mão para vencer a eleição presidencial. Ao final, foram derrotados, vítimas de sua estratégia desastrosaJerome Karabel
Em entrevista concedida dez meses antes de sua vitória na eleição para a presidência dos Estados Unidos, Barack Obama estimava que “Ronald Reagan tinha transformado a América como nem Richard Nixon nem Bill Clinton fizeram”, engajando o país “numa estrada fundamentalmente diferente”.1 A mensagem pretendia ser clara: contrariamente a Hillary Clinton, sua principal concorrente nas primárias democratas, ele seria um “presidente da mudança”.
Oito anos depois, nada de “fundamental” mudou nos Estados Unidos. Chegado à Casa Branca em meio à mais grave crise econômica que o país conheceu desde os anos 1930, Obama empenhou-se inicialmente em evitar um colapso geral. Se, com seu plano de estímulo de US$ 800 bilhões, ele se afastou do dogma da austeridade, o novo presidente fez questão de respeitar os outros fundamentos da ortodoxia neoliberal, evitando adotar a mínima medida que pudesse comprometer a “confiança das empresas” e voando em socorro das instituições financeiras, aí incluídas aquelas responsáveis pela crise.
Quando Hillary Clinton anunciou sua candidatura à eleição presidencial, em abril de 2015, sinais de alerta não faltaram: os democratas tinham sido nitidamente vencidos nas eleições de meio mandato de 2010 e de 2014, a retomada econômica permanecia anêmica e os movimentos Tea Party à direita e Occupy Wall Street à esquerda refletiam um descontentamento efervescente. Foi, portanto, numa atmosfera de insatisfação crescente que a ex-primeira-dama, ex-senadora de Nova York e ex-secretária de Estado, encarnação viva do status quo, lançou sua campanha.
Ela se beneficiava do apoio quase unânime da elite do Partido Democrata – seus membros efetivos, seus financiadores, seus superdelegados (membros do Congresso ou do conselho nacional do partido), todos convencidos havia muito tempo de que a Casa Branca era dela por direito. Obama desencorajou seu vice-presidente, Joe Biden, a se apresentar, depois apoiou Hillary Clinton em seu amargo duelo contra Bernie Sanders durante as primárias. Não é possível entender o abalo de 8 de novembro sem levar em conta a decisão do Partido Democrata de se agarrar à candidatura de Hillary, não obstante o clima geral de ira popular.
Os conselheiros da ex-senadora ficaram felizes de descobrir Donald Trump como o único obstáculo rumo à Casa Branca: ele havia defendido inúmeras propostas racistas, xenófobas e sexistas durante a campanha das primárias e seu temperamento imprevisível tinha convencido os eleitores de que ele “não levava jeito” para ser presidente – pelo menos era isso que asseguravam os estrategistas democratas… Diferentemente de Trump e Sanders, Hillary teve dificuldade para achar um slogan: ela testou pelo menos 85 para finalmente ficar com o insípido “Stronger Together” (Juntos somos mais fortes).2 Sua candidatura era a tal ponto desprovida de conteúdo que, em fevereiro de 2016, num e-mail queixoso, o conselheiro de pesquisas Joel Benenson questionava o diretor de campanha John Podesta: “Temos alguma ideia do que ela quer passar como mensagem principal?”.3
Durante a campanha de 2012, Obama retratou seu adversário como um plutocrata sem coração, ocupado em transferir os empregos dos norte-americanos para outros países. Essa linha de ataque lhe permitiu conquistar votos suficientes entre os operários brancos para ganhar na Pensilvânia, no Wisconsin, em Ohio e em Michigan. Estados industriais e arruinados do Rust Belt (Cinturão da Ferrugem), que margeia os Grandes Lagos. Trump, multibilionário que nunca hesitou em contratar imigrantes clandestinos nem em pressionar pequenos empresários, era também um alvo perfeito. Mas os negócios pessoais de Hillary Clinton tinham prosperado com o dinheiro das multinacionais – entre janeiro de 2013 e janeiro de 2015, ela havia embolsado US$ 21,7 milhões por 92 discursos majoritariamente destinados a executivos dirigentes de grandes empresas. E sua campanha pouco podia divergir dos interesses de Wall Street, que a financiava.
O local do fracasso está claro
Talvez percebendo que a candidata não era talhada para seduzir os marginalizados da globalização e da desindustrialização, sua equipe de campanha optou por uma estratégia identitária. Ela tentou reconstruir a coalizão multirracial de Obama concentrando-se em cinco grupos-alvo: os afro-americanos, os latinos, os asiáticos, aqueles com 25 a 35 anos e as mulheres brancas. Essa escolha transpareceu num bilhete de Podesta datado de 17 de março de 2016. Ele cita ali seus candidatos potenciais à vice-presidência e anuncia que “listou os nomes em grupos alimentares (sic) aproximativos”.
Tal estratégia não podia, contudo, compensar a falta de uma mensagem política. Os grupos da base de sucesso de Obama em 2012 certamente votaram em Hillary Clinton em 2016, mas em menor proporção: 88% dos negros, contra 93% em 2012; 65% dos latinos (contra 71%), 65% dos asiáticos (contra 71%) e 55% das pessoas na faixa de 25 a 35 anos (contra 60%). Única exceção: as mulheres, grupo que chegou a 55%, ou seja, um ponto percentual a mais. Misógino e acusado de molestar mulheres sexualmente, Trump, porém, recebeu 53% dos votos do conjunto das mulheres brancas e 67% do daquelas que não têm diploma universitário.4
A estratégia de mobilização de grupos-alvos apresenta um perigo: ela pode provocar contramobilizações em outros grupos. Trump tirou proveito disso. No plano nacional, a coalizão multirracial de Hillary Clinton funcionou relativamente bem, pois a candidata conseguiu pelo menos 1 milhão de votos5 a mais que seu adversário. Mas as eleições norte-americanas são disputadas estado por estado. Nesse aspecto, o local de fracasso de Hillary foi identificado com precisão: Ohio, Wisconsin, Pensilvânia e Michigan.
Ora, Trump ganhou dela nesses quatro estados porque enviou uma mensagem clara e impactante. Voltando as costas à ortodoxia republicana, atacou sem trégua os acordos de livre-comércio e as transferências de atividades para outros países. Também denunciou a presença em solo norte-americano de milhões de clandestinos e a incapacidade do país de proteger suas fronteiras. Por fim, criticou o envolvimento dos Estados Unidos em guerras inúteis, no Iraque, na Líbia e em outros lugares. Seu slogan (“Tornar a América grande outra vez”), seus apelos incessantes para colocar “A América em primeiro lugar” e suas referências repetidas aos “americanos esquecidos” foram talhadas sob medida para seduzir os trabalhadores brancos.
Muitos comentaristas atribuíram a derrota de Hillary à xenofobia e ao racismo das classes populares brancas. Se esse fator é marcante – diversos estudos mostram que os eleitores de Trump são mais xenófobos que os de outros candidatos6 –, deve-se lembrar também que um afro-americano chamado Barack Hussein Obama venceu nesses quatro estados em 2008 e 2012. Ele se impôs com margens confortáveis e em vários condados com maioria de trabalhadores brancos na população.
Este ano, a parcela dos negros que votaram na candidata democrata caiu em cada um desses estados, e 71% dos homens brancos que não têm diploma universitário votaram em Trump na Pensilvânia, 70% em Ohio, 69% em Wisconsin e 68% em Michigan. Quanto às mulheres brancas não diplomadas, 58% delas votaram a favor de Trump na Pensilvânia, 57% em Michigan, 55% em Ohio…
Hillary se mostrou negligente, deixando de se dirigir a esses eleitores. Ela não foi uma única vez a Wisconsin durante a campanha. Ela nunca pareceu se preocupar com as condições de vida da classe trabalhadora, as quais vêm se degradando continuamente há quarenta anos: entre 1975 e 2014, o rendimento médio dos trabalhadores brancos declinou mais de 20%, com uma queda de 14% entre 2007 e 2014.
A ruptura entre as classes populares brancas e os democratas ultrapassa a mera questão econômica. A isso se junta uma dimensão cultural, ligada ao sentimento (não totalmente injustificado) que muitos trabalhadores brancos experimentam de serem desprezados pela elite progressista. Hillary contribuiu para reforçar esse sentimento quando declarou, por ocasião de um evento para levantar fundos junto à comunidade lésbica, gay, bissexual e trans (LGBT) de Nova York: “Podemos colocar metade dos partidários de Trump naquilo que chamo de cesta das pessoas deploráveis. Não é? Eles são racistas, sexistas, homofóbicos, xenofóbicos, islamofóbicos e muitas outras coisas”, antes de acrescentar que alguns eram “irrecuperáveis”.
Populismo de direita contra o de esquerda
Depois do desastre de 8 de novembro, os republicanos não controlam somente a Casa Branca, a Câmara dos Representantes, o Senado e (em breve) a Suprema Corte: eles ocupam também 31 dos cinquenta postos de governador e lideram 35 senados de estado e 32 assembleias. No entanto, reviravoltas políticas podem intervir com rapidez surpreendente. A vitória, por 23 pontos à frente, do democrata Lyndon Johnson contra o republicano Barry Goldwater na eleição presidencial de 1964 foi seguida, quatro anos depois, pelo sucesso, com os mesmos 23 pontos de diferença, do republicano Richard Nixon contra o democrata George McGovern…
Nos Estados Unidos, como em outros lugares, 2016 foi o ano de uma sublevação popular. Segundo o ensaísta John Judis, os movimentos desse tipo constituem “um sistema de detecção precoce de problemas de maior monta que os principais partidos minimizaram ou ignoraram”.7 Mas ele destaca que as sublevações de esquerda e de direita são fundamentalmente distintas. A primeira defende “o povo contra a elite”, enquanto a segunda “defende o povo contra a elite, ela própria acusada de paparicar um terceiro grupo, que podem ser os imigrantes, os muçulmanos ou os militantes afro-americanos”. Com Trump, a versão direitista triunfou. Mas, mesmo não sendo o caso em vários países europeus, nos Estados Unidos uma alternativa progressista plausível existia, materializada pela candidatura de Sanders…
Jerome Karabel é professor de sociologia da Universidade de Berkeley (Califórnia)