Como se nada tivesse acontecido…
Após o colapso de 2008, acrobatas financeiros, professores de Economia e políticos repetiram todos a mesma ladainha: “Nada será como antes”. Três anos depois, os mesmos culpados pela crise retomaram os mesmos negócios, armados com as mesmas teorias econômicas
Em outubro de 2008, no auge da crise financeira, a Harvard Business School celebrava em grande estilo seu centenário. Em seu discurso, o reitor Jay Light não pôde ignorar acontecimentos tão inesperados quanto constrangedores. Ele explicou: “Acabamos de assistir a um espetacular e preocupante fracasso das salvaguardas financeiras, dos mercados financeiros, das instituições financeiras e principalmente das lideranças, em diferentes níveis. Deixaremos a outros a tarefa de determinar as responsabilidades. Isso não é muito interessante. Mas temos de estar verdadeiramente implicados na resolução do problema”.
Não se dedicar a estabelecer as responsabilidades pela crise, procurando entretanto assumir um papel principal em sua resolução? A falta de curiosidade intelectual e a incapacidade de se questionar têm sido acusações frequentes contra as escolas de comércio em geral e à Harvard Business School em particular, a qual afirma ter a missão de “educar dirigentes para mudar o mundo”. Porém, nesse caso mais especificamente, a pressa em virar a página talvez não advenha unicamente da arrogância própria à elite da Ivy League.1 Ocorre que, se ninguém é responsável, então ninguém é culpado. Uma lógica que também não põe em questão a caixa de ferramentas cujas chaves se detêm. Na verdade, não apenas a Harvard Business School é super-representada entre os dirigentes dos grandes estabelecimentos financeiros, mas também o então presidente, George W. Bush, e seu secretário do Tesouro, Henry Paulson, os principais líderes políticos no momento da crise financeira, saíram de lá.2
A explicação (ou melhor, a não explicação) mais difundida entre os líderes mundiais consiste em ver na crise um “tsunami” imprevisível, surgido do nada: uma “tempestade perfeita” (perfect storm), raríssima conjunção de eventos externos que ninguém nunca identificou. Logo, a crise não poderia, por definição, ser colocada na conta de decisões políticas ou financeiras anteriores.
Em suas memórias, que se pretendem um guia para governantes em tempos de crise, Bush dedica um capítulo à crise. Pego de surpresa como todo mundo, ele destaca seu temperamento de “homem de decisão” que corajosamente optou por esvaziar os cofres do Estado para salvar os bancos, única maneira de evitar a catástrofe. Os leitores que se interrogarem sobre as causas do colapso ou se perguntarem por que o governo nada exigiu dos bancos como contrapartida da ajuda pública ficarão desapontados.3
O choque da crise permitia imaginar, pelo menos, que as práticas políticas e financeiras, assim como seus fundamentos ideológicos, claramente desacreditados, sofreriam uma transformação profunda, e que “nada seria como antes”.4 Nada disso aconteceu. Claro que, durante um breve interlúdio, as elites políticas e financeiras outrora cobertas de glória, as quais levaram a economia à beira do abismo, mantiveram-se discretas (assim podendo dizer depois que estavam sendo perseguidas), antes de se lançarem novamente na arena.
Pois aqueles que estavam no comando continuam no mesmo lugar, armados com o mesmo arsenal ideológico. Os gigantes das finanças, salvos por serem considerados grandes demais para quebrar (too big to fail), estão mais gigantescos do que nunca. E, como indica o economista Paul Krugman, “as lições da crise financeira de 2008 foram esquecidas instantaneamente, e as próprias ideias que estão na origem da crise – ‘toda regulamentação é nociva’, ‘o que é bom para os bancos é bom para a América’, ‘cortes de impostos são a panaceia’ – voltam a dominar o debate”.5
“Salvadores do mundo”
Uma série de livros (ver quadro) permite entender melhor o poder de resistência das crenças que originaram a crise. O economista australiano John Quiggin, em um livro dedicado aos “zumbis” da teoria econômica, analisa as “ideias mortas que continuam andando entre nós”. Isso porque, em vez de desaparecer para dar lugar a outras, mais relevantes, algumas teses – embora desmentidas pelos acontecimentos – não param de ressurgir, como os mortos-vivos dos filmes de terror, para perpetrar novas destruições.
A esse respeito, é exemplar o percurso dos heróis de antes da crise. Alan Greenspan, Robert Rubin e Lawrence Summers – respectivamente presidente do Federal Reserve, secretário e secretário adjunto do Tesouro, em fevereiro de 1999, quando a revista Time, numa célebre reportagem de capa, batizou o trio de “Comitê para salvar o mundo” – passaram por um eclipse muitíssimo breve. O primeiro era republicano, os outros dois, democratas, e os três simbolizavam a incontestável supremacia da esfera financeira. Como lembra a obra de Michael Hirsh dedicada aos “homens sábios de Washington que confiaram o futuro da América a Wall Street”, a classe política abdicou de seu papel, contentando-se em modificar algumas leis para permitir que o mundo das finanças pudesse agir mais livremente, sobretudo graças à intervenção desse trio de choque.
A financeirização penetrou lenta, mas seguramente, no corpo político, assumindo por fim seu controle. No livro intitulado Treze banqueiros, Simon Johnson e James Kwak retratam uma oligarquia que tomou a economia como refém e conseguiu impor sua vontade. Em 9 de novembro de 1992, alguns dias após a eleição de Bill Clinton, o Wall Street Journaltranquilizou os leitores preocupados com a chegada de um democrata à Casa Branca: “Embora não eleitos, anônimos e muitas vezes não norte-americanos, os grandes investidores financeiros de todo o mundo detêm agora um poder sem precedentes – talvez até um direito de veto – sobre a política econômica dos Estados Unidos”. Seu papel? Atuar “como vigilantes para restaurar a lei e a ordem na economia”. Mas precisava Clinton de uma vigilância assim tão estreita para se dobrar aos ditames do mercado?
O boom sem precedentes que se seguiu à sua ascensão ao poder parecia confirmar as virtudes da financeirização, o que incitou os dois grandes partidos a uma escalada sem freios. Era uma disputa para conseguir mais contribuições das grandes instituições financeiras e oferecer-lhes mais presentes. Devem-se a uma administração democrata as grandes reformas de 1999 e 2000, que abriram caminho para a criação dos produtos “tóxicos” – e para o colapso financeiro.6 Mais próxima ainda de Wall Street, a administração republicana de Bush apressou-se em destruir o que restava dos controles, nomeando para cargos-chave zelosos “desregulamentadores”.
Seguidores de Adam Smith?
Após a crise, as elites financeiras foram certamente questionadas, mas seu poder efetivo permaneceu intacto. Herói indiscutível da expansão econômica, Greenspan assumiu um ar acabrunhado quando relatou perante a comissão do Senado, em outubro de 2008, o que acabara de fazer: suas crenças econômicas haviam se baseado em um “erro”. Breve contrição, sem mais. Dois anos depois, ele já tinha reencontrado a soberba, atacando impiedosamente a legislação Dodd Frank, que tentava timidamente trazer um pouco de ordem ao sistema. Quanto a Rubin, ele se manteve discreto, conservando laços estreitos e lucrativos com o establishmentfinanceiro. Summers, por sua vez, nunca saiu realmente de cena. Durante as eleições presidenciais de 2008, ele foi um dos principais conselheiros do candidato Barack Obama e, após sua eleição, assumiu o papel de presidente do Conselho Econômico da Casa Branca, cargo que renunciou no fim de 2010 para retomar suas funções de professor de Economia em Harvard. Hirsh explicou simplesmente que, após a tempestade financeira, “o regime anterior e as construções intelectuais – uma mistura de Friedman, Greenspan e Rubin – continuaram dominando, por falta de outros”.
Em um livro notável que explica “por que o mercado falha”, John Cassidy, jornalista econômico da revista semanal norte-americana New Yorker, estabelece uma distinção, relativa a essas construções intelectuais, que com frequência passa despercebida: em vez de serem a perfeita realização do liberalismo econômico clássico, as ideias que sustentam a financeirização são na verdade uma perversão dele. Cassidy explica que “o conceito de mercados financeiros racionais que se autocorrigem é uma invenção dos últimos quarenta anos”. Embora os profissionais das finanças procurem situar-se na linhagem de Adam Smith, o qual tendem a venerar sem ler, eles alegremente violam os princípios enunciados pelo autor em matéria de regulamentação financeira.
Poucos anos antes da publicação de sua famosa Investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações(1776), Smith testemunhou o estouro de uma bolha financeira que dizimou o sistema bancário de Edimburgo: de trinta bancos, sobreviveram três. Por experiência, ele sabia que, entregues unicamente às forças do mercado, as finanças traziam sérios perigos à sociedade. O pai da economia clássica, embora favorável ao princípio da mão invisível, estipulava expressamente que a lógica de um mercado livre e competitivo não deveria estender-se à esfera financeira. Daí uma necessária exceção financeira ao princípio da livre-iniciativa e do livre-comércio. Daí também a necessidade de um quadro rigoroso de regulamentação: “Essas regulamentações podem, em alguns aspectos, parecer uma violação da liberdade natural de alguns indivíduos, mas essa liberdade de alguns poderia comprometer a segurança de toda a sociedade. Tal como ocorre com a obrigação de construir muros para impedir a propagação dos incêndios, os Estados, tanto em países livres como nos despóticos, devem regulamentar o comércio de serviços bancários”.7
Quanto ao recente “mito do mercado racional”, o jornalista financeiro Justin Fox explica sua genealogia em uma galeria de retratos em que se encontram especuladores, estatísticos e engenheiros, e na qual Milton Friedman e seus colegas da Universidade de Chicago ocupam lugar de honra. Estamos longe de uma economia política ancorada na realidade, menos ainda na história. O uso indiscriminado da matemática permitiu, como outrora o latim, assentar a autoridade do novo clero, estendendo-a bem além da economia e das finanças. Como observou muito justamente Alfred Eichner, “a matemática confere uma fachada a um sistema teórico que não responde a nenhum dos testes empíricos que permitem distinguir entre ciência e superstição ou ideologia grosseira”.8
Desconexão com o real
Um dos elos perdidos dessa traição do clero pode ser encontrado em um documentário intitulado Inside job: A verdade da crise. Charles Ferguson, que em 2007 já havia recebido uma indicação para o Oscar por um filme sobre a atuação norte-americana no Iraque, não é um cineasta como os outros. Ele tem um íntimo conhecimento do mundo dos negócios (empresário, criou um software que depois vendeu para a gigante Microsoft) e do universo acadêmico (é doutorado em Ciência Política pelo Massachusetts Institute of Technology – MIT). Assim, Ferguson pôde detectar o que outros não viram: a corrupção dos professores de Economia e Finanças, que trocaram por um saco de dinheiro sua legitimidade intelectual na criação dos produtos mais perigosos. Os poucos figurões que aceitaram recebê-lo acabaram caindo em armadilhas ao estilo Michael Moore, pois não tinham ideia de que o cineasta sabia tudo sobre seus comprometimentos financeiros. Quando ganhou o Oscar de melhor documentário, Ferguson expressou sua surpresa em ver que nenhum dos responsáveis pelo colapso financeiro havia sido importunado pela justiça.
Encontramos outra perspectiva discordante na obra do romancista e crítico literário John Lanchester, intitulada I.O.U.Tomando de empréstimo um conceito do mundo da arte e da literatura, ele constatou que as finanças entraram totalmente na era do “modernismo”, cujas características essenciais são “a contemplação do próprio umbigo, a abstração e a ruptura com o bom senso”. Um dos temas abordados por todos os trabalhos aqui citados é precisamente essa desconexão com o real, envolto em símbolos que são impenetráveis fora de um estreito círculo de iniciados e em modelos que podem ser utilizados para dizer qualquer coisa.
Desde Friedman, para quem o realismo das hipóteses importava pouco na validade de um modelo, o princípio do garbage in, garbage out (“entra lixo, sai lixo”, em outras palavras: a qualidade dos resultados depende dos dados) não tem mais razão de ser. A economia de produção conta tanto menos quanto mais os sumos sacerdotes da financeirização consideram superior a economia virtual. Como disseram Eric Briys e François de Varenne, dois professores de Finanças, em um trabalho dedicado à glória da globalização: “É ainda mais satisfatório que as novas finanças, as ‘ciberfinanças’ dirão alguns, tenham colocado à nossa disposição ferramentas eficazes onde as ferramentas tradicionais fracassaram. Portanto, não há divórcio entre a chamada economia real e a chamada economia virtual dos mercados financeiros. A economia virtual é útil porque elimina a opacidade inerente à economia real. Ela responsabiliza os atores, permitindo-lhes reter apenas os riscos fundamentais associados à expressão de seu talento. Ela também convida a refletir sobre a verdadeira contribuição dos atores da economia real. Ao levantar o véu, absorvendo a opacidade, a economia virtual submete a economia real ao teste da verdade”.9
George Orwell explicou: a perversão do pensamento começa na perversão da linguagem. A novilíngua dos mercados financeiros perverteu as noções de inovação, valor e engenharia. A inovação era apenas pretexto para gerar comissões, e, enquanto destruíam alegremente o valor, os engenheiros financeiros afirmavam criá-lo. A metáfora do engenheiro talvez seja a maior fraude, ainda que esses mesmos professores de Finanças cheguem às vezes a indignar-se por não serem tratados com o devido respeito: “Em nome de que podemos decentemente afirmar que um contrato financeiro complexo não teria direito ao mesmo tratamento científico elaborado que uma asa de avião ou um microprocessador?”, sugerem Briys e Varenne.10
A arrogância e a ignorância (e acima de tudo uma verdadeira cultura da amnésia) são os ingredientes indispensáveis desse modernismo. Em um livro publicado logo após a crise, intitulado This Time Is Different, Carmen M. Reinhart (Universidade de Maryland) e Kenneth S. Rogoff (Universidade Harvard) apresentam um inventário detalhado de “oito séculos de turbulências e loucuras financeiras”.11 Cada geração de financistas tende a acreditar que a era em que vive é fundamentalmente diferente de tudo o que se passou antes, que a experiência e a história são irrelevantes e que é preciso saudar o advento de um nirvana financeiro.
Pouco antes da crise financeira de 2008, anunciava-se uma nova era, a da “grande moderação”. A fórmula, lançada por Ben Bernanke, então professor em Princeton (e hoje presidente do Federal Reserve), fez sucesso, oferecendo a oportunidade de um novo episódio de autocelebração para o mundo da economia e das finanças, que acreditou uma vez mais ter domado o risco e, graças ao progresso da engenharia financeira, ter posto fim às bolhas, aos pânicos bancários, às crises inflacionárias e aos padrões soberanos. Essa teoria – ao menos enfraquecida desde que estourou a crise – também está entre os zumbis: como observou Quiggin, “os projetos de pesquisa cujo objetivo era explicar, medir e prever a ‘grande moderação’ não foram abandonados. O investimento intelectual nessa teoria tem se mostrado tenaz”.
Fundamentalismo do egoísmo
Se era preciso procurar uma ascendência intelectual a esse fundamentalismo desprovido de base empírica, é em Ayn Rand (1905-1982), publicitária e romancista russo-norte-americana, que se pode encontrá-la. Dogmática e sectária, preconizando o egoísmo como virtude suprema e fustigando qualquer forma de intervenção dos poderes públicos, ela certamente teria caído num merecido esquecimento se não tivesse como discípulo um tal Greenspan. Já em 1963, o futuro presidente do Federal Reserve revelava suas preferências ideológicas no boletim publicado por Rand. Ele rejeitava como um “mito coletivista” a ideia de que, deixados a si mesmos, os homens de negócios venderiam alimentos ou medicamentos perigosos, títulos fraudulentos ou edifícios de má qualidade: “Pelo contrário”, explicava, “é do interesse de cada homem de negócios ter uma reputação de honestidade e vender somente produtos de qualidade. […] A intervenção do Estado sabota um sistema altamente moral. Pois, debaixo de uma pilha de formulários, há sempre o medo do fuzil”. Em maio de 2005, pouco antes do fim de seu mandato como dirigente do Banco Central, ele não havia mudado de ideia: “A regulamentação prudencial é muito mais garantida pelo setor privado, por meio da avaliação e do controle das contrapartidas, do que pelo Estado”.
Num pequeno livro dedicado ao papel dos poderes públicos no mercado, Eliot Spitzer apresenta a tese inversa, que pareceu um pouco excêntrica aos Estados Unidos antes da crise: de acordo com ele, o Estado é necessário para a integridade dos mercados financeiros. Em seu papel de general attorney(ministro da Justiça) do estado de Nova York, o próprio Spitzer chegou a combater alguns gigantes de Wall Street, acusados de práticas fraudulentas e conflitos de interesse (eufemisticamente rebatizados de “sinergias”).12 Seu livro também explica, de maneira original, a resistência e a impunidade das elites financeiras (até mesmo seu poder reforçado), identificando um princípio de Peter “anabolizado”.
O “princípio de Peter” estipula que, numa grande organização, os indivíduos tendem a ser promovidos até chegarem a seu nível máximo de incompetência. “Anabolizado”, ele vai mais longe: “Devido à incompetência desses indivíduos, estoura uma grave crise, que lhes serve então de pretexto para reclamar um aumento de poder”. Encontramos uma ilustração desse princípio em outra passagem do já citado discurso do centenário da Harvard Business School – diante de uma plateia de senhores do mundo, o reitor Light declarou: “A necessidade de liderança no mundo nunca foi tão grande. A demanda pelo que fazemos nunca foi tão importante”.