Complexificando a avaliação do Estatuto da Cidade: 20 anos de luta e captura
Confira o artigo de Raquel Rolnik, incluído na coletânea “20 anos de Estatuto da Cidade: experiências e reflexões”, organizado por Edésio Fernandes e publicado pela editora Gaia Cultural, em 2021
10 de julho de 2001. Há 20 anos atrás, exatamente, estava sendo aprovado o Estatuto da Cidade. Para alguns, que têm se manifestado neste momento de balanço de duas décadas da aprovação, se trata de uma lei absolutamente fundamental, que conseguiu concretizar, através de instrumentos de intervenção na organização territorial da cidade, ideias que haviam sido lançadas na Constituição de 1988, como a função social da cidade, a função social da propriedade, a obrigatoriedade de participação popular no planejamento urbano além do fundamental reconhecimento do direito daqueles que vivem na cidade a poder ter acesso à moradia e à cidade.
Sim, essas eram bandeiras muito importantes. Desde a Constituinte, imaginaram e sonharam a utopia de uma cidade que pudesse ser guiada efetivamente pelas necessidades das pessoas, mais do que pelos desejos e cálculos de rentabilidade dos capitais e dos negócios que ali se instalaram. Esta utopia imaginava também uma cidade que poderia eliminar de vez a discriminação a que está sujeita uma boa parte dos territórios da cidade. Principalmente, aqueles que foram auto produzidos por seus próprios habitantes. Estamos falando, sim, das favelas, das periferias, das quebradas deste país, onde mora a maior parte da população de menor renda, a maior parte da população não-branca, negra e indígena. Se imaginou também que, finalmente, poderíamos pensar em uma cidade pensada pelas pessoas e para as pessoas.
Foi nessa direção que um movimento social, que hoje poderia se autodenominar de “direito à cidade”, mas que não tinha este nome nos anos 1980, se constituiu e se afirmou. Entretanto, essa utopia e essa imaginação política encontraram barreiras muito claras durante a Constituinte, que aliás foi controlada pelo chamado “centrão”, o mesmo que domina os parlamentos, até hoje, em todo o país. E mais: também foi se transformando ao longo de sua implementação. Não é possível entender a natureza do Estatuto da Cidade e seus limites, se não complexificarmos a leitura de seu processo de formulação e implementação.
Estamos falando de vários tipos de bloqueios, resistências, mas também de encontros e confluências perversas de agendas. De um lado, a resistência em função da defesa irrestrita da propriedade e da violência proprietária, contra todas as formas de vida e contra todas formas de vínculo com o território que não a propriedade privada registrada. Essa, claramente, foi uma resistência. Mas, também uma resistência, eu diria, tecnocrático-imobiliária, que moveu o lócus do debate sobre a função social da cidade, sobre o reconhecimento dos direitos da cidade para o plano diretor e a regulação urbanística enquadrada pela tradição do planejamento urbano. E finalmente, a enorme influência de um urbanismo neoliberal, que penetrou nas cidades do planeta sobretudo a partir dos anos 1990.
Temos contado esta história a partir da ótica de uma geração de instrumentos urbanísticos que penetraram no léxico e nas estratégias presentes no planejamento das cidades brasileiras, vinculados a um movimento de renovação teórica e prática deste campo, desde o final dos anos 1980. Trata-se do Movimento pela Reforma Urbana, que, entre outras ações políticas, investiu energias de mobilização e formulação no campo da regulação urbanística. Função Social da Cidade e da Propriedade Urbana; Inclusão Sócio-territorial; Participação e Gestão Democrática; Gestão Social da Valorização Imobiliária; são algumas das expressões que passaram a fazer parte dos vocabulários das diretrizes dos Planos Diretores; outorga onerosa do direito de construir, zonas especiais de interesse social, transferência de potencial construtivo, edificação e parcelamento compulsórios, entre outros, do rol de instrumentos presentes nestes planos. E assim se produziu uma narrativa que passou a identificar estes instrumentos e inovações regulatórias como “instrumentos da reforma urbana”. Se é verdade que estes só foram inseridos nos planos diretores a partir de intensas mobilizações e lutas de movimentos sociais e sindicais que abraçaram esta agenda, sobretudo os movimentos de moradia e arquitetos, advogados e engenheiros identificados com estes, os mais de 30 anos desta trajetória merecem um balanço crítico. A meu ver, deve se centrar, neste momento, menos no quanto estes instrumentos e esta renovação foi capaz de penetrar nos marcos regulatórios do país e mais sobre os limites que percebemos hoje na avaliação de seus efeitos concretos sobre a cidade.
Queremos aqui refletir sobre os limites e possibilidades da aplicação destes instrumentos iluminando o processo político e epistemológico responsáveis pela formatação dos paradigmas que os conformaram. Para isso, é necessário percorrer rapidamente as mais de três décadas desta trajetória, desde o final dos anos 1980 e do processo constituinte, que marca este encontro entre um movimento social e o campo da legislação urbana.
Costumamos atribuir a denominação de “ideário da Reforma Urbana” as formulações ligadas a um movimento de ruptura e tensionamento com a ordem urbanística vigente, que emergiu a partir das lutas de periferias e favelas por seus direitos a ter direitos. Na história contada pelos participantes e protagonistas deste processo, as diretrizes e instrumentos, consolidados no Estatuto da Cidade, de 2001, foram desenhados no interior da formulação de uma utopia de implementação de políticas municipais includentes, diante de uma cidade marcada pela exclusão territorial das maiorias. Nos anos 1980, a ditadura militar entrava em crise em meio a uma enorme debacle econômica, depois dos anos do chamado “milagre econômico”. Naquele momento, emergia um movimento social para derrubar a ditadura militar e o modelo que tinha orientado as políticas nos 20 anos anteriores, com a esperança da construção utópica de uma nova possibilidade de gestão do país, de cidades e territórios, através de processos radicalmente democráticos. Era uma aposta em uma democracia com participação direta, exercida por meio de práticas como orçamentos participativos e conselhos que seria capaz de promover o desenvolvimento com inclusão, lembrando que, em contextos tão grandes de desigualdade, a ideia de inclusão pressupõe e está indissociável da ideia de redistribuição de renda urbana e dos recursos do fundo público. Esse era o fundamento do orçamento participativo, da inversão de prioridades, dos investimentos nas periferias, e está na origem de algumas das diretrizes que acabaram adentrando e renovando o planejamento urbano.
Porém, esta não foi a única força que moldou a renovação do planejamento urbano no país. E tampouco se constituiu num vácuo, mas sim sobre uma tradição de planejamento urbano anterior. Assim, é necessário contar outros lados desta mesma história.
Se a força de um movimento social pressionou para inserir uma agenda urbana na Constituinte de 1988, no Congresso Constituinte prevaleceu a tradição tecnocrática do planejamento. Esta articulava a ideia de planejamento como ordenamento racional e modernizador do espaço com a economia política das cidades, centrada na lógica da produção imobiliária e da produção de grandes infraestruturas. Isso significa que a técnica do planejamento, a linguagem do planejamento, seu repertório, é muito estruturada a partir dos produtos de um pensamento sobre o território marcado pela colonialidade de cânones europeus e imposto sobre o conjunto do planeta como modelo, contra o qual todas as demais formas de relação dos indivíduos e comunidades com o território são estigmatizadas. Não é à toa e não sem consequências políticas que territórios populares são denominados de aglomerados subnormais “por nossa agênia de estatísticas demográficas. Por outro lado, trata-se de uma linguagem – especialmente aquela do zoneamento – conformada pela e para a indústria imobiliária, pelo complexo imobiliário-financeiro: incorporadoras e empreiteiras envolvidas na produção do espaço construído oficial”.
Os parâmetros da linguagem do planejamento, assim como a lógica de conformação da urbanização, é 100% aderente aos produtos imobiliários produzidos pela indústria imobiliária (a torre, o parcelamento do solo, o condomínio, o galpão industrial etc.) e os produtos da indústria da construção de grandes estruturas (os viadutos e túneis, os piscinões, etc.). Coeficientes de aproveitamento, por exemplo, tão centrais em toda a regulação urbanística, têm a ver fundamentalmente com potencial construtivo, ou seja, capacidade de extrair renda de um terreno. E muito pouco com a lógica de organização dos espaços de vida ou questões como a paisagem, a história e a natureza.
A definição, portanto, do Plano Diretor como o lócus de disputa pela cidade, definiu seus termos, sua epistemologia, e a hegemonia do imobiliário desde as primeiras experiências. Condenou o movimento social a jogar neste campo, com suas regras, linguagens e formas de leitura da cidade, estabelecendo desde este momento ainda nos anos 1990, e ao longo das décadas subsequentes, uma espécie não de ruptura, mas de pacto ou coalizão que procurou, a partir e no interior desta lógica, introduzir elementos de redistribuição, inclusão e controle social.
Finalmente, também não podemos deixar de apontar que a definição e desenho dos instrumentos urbanísticos, desde os anos 1990, e particularmente na formulação do Estatuto da Cidade, que sofreu enorme influência da emergência de um novo paradigma de planejamento urbano formulado e aderente às teorias e práticas neoliberais. Essas práticas ganham força com os contextos de ajuste fiscal e participação crescente de atores privados em processos de reestruturação urbana. Por outro lado, o imobiliário e o espaço construído foram ganhando um papel cada vez mais central nos processos de financeirização — na medida em que o espaço entra como garantia, como colateral, nos circuitos financeiros, e através de novos instrumentos financeiros capazes de titularizar o espaço, ou seja, possibilitar sua circulação instantânea em circuitos financeiros cada vez mais globalizados.
Desde a entrada em cena do Planejamento Estratégico, da abertura de espaços de flexibilização normativa, a regulação urbanística tem sido fundamental para estabelecer perímetros para que estas parcerias possam capturar territórios da cidade para suas expectativas de remuneração futura.
Também este paradigma e seus instrumentos, como as Operações Urbanas, foi objeto de tensionamento permanente em torno da captura e distribuição de ônus e benefícios, assim como de exigibilidade de contrapartidas sociais. Fundamental também assinalar que, a depender dos compromissos maiores ou menores com a redistribuição de renda e inclusão e sua capacidade de negociação com os distintos interesses envolvidos na disputa pela cidade, a ação de governos municipais na gestão do plano e seus instrumentos fez diferença nos resultados. Por outro lado, a ideia de disputar contrapartidas e não o modelo de desenvolvimentos urbano em si nos torna cativos de uma forma de pensar e fazer cidade centrada na ideia de que a melhor forma de transformar a cidade é aquela que gera mais remuneração para os capitais investidos, e não aquela com maior capacidade de proteger e promover a vida.
Por outro lado, é exatamente este modelo de cidade – com suas regras do permitido e proibido definida a partir dos produtos imobiliários – é que opera, no cotidiano da cidade a discriminação de pedaços inteiros de cidade, construídos sob a lógica da sobrevivência e com recursos escassos, condenando estas áreas a uma espécie de transitoriedade permanente. Que por sua vez, é o cimento de uma economia política da cidade que permite que o Estado ali atue de forma discricionária e negociada. A demarcação destes perímetros é o cimento tanto da ação genocida, da polícia que entra atirando e matando, quanto da existência, em cada uma das cidades, de uma” lógica do centrão”, aquela que permite a troca de benefícios urbanos (não garantidos) por votos, sustentando coalisões que barram as tentativas de ruptura deste modelo.
A gincana infinita para poder regularizar e integrar de forma definitiva as vilas e favelas, as manobras protelatórias, que desde a constituinte se antepuseram aos avanços propostos (a constituição que exigia a lei federal que exigia os planos diretores que exigia dois anos de parcelamento compulsório e 5 anos de IPTU progressivo para talvez quem sabe um dia, depois de 35 anos expropriar um imóvel que não cumpre sua função social…) se somaram portanto à captura tecnocrática imobiliária do projeto de cidade, contribuindo inclusive para dificultar tremendamente a participação popular real, a utopia da radicalização democrática.
Por outro lado, instrumentos como a ZEIS, como a disputa do fundo público, têm sido fundamentais como instrumentos de luta dos movimentos pelo direito à cidade, que tem nas ocupações, nas resistências aos despejos, nas disputas pelos espaços públicos, entre outros, não só mantido as mobilizações, mas também renovado suas pautas. Hoje, estas lutas se transformam e incorporam outras pautas, outras agendas centrais, como a luta antirracista, a luta feminista, a luta por outro paradigma de mobilidade, por outras culturas de cidade. Me parece que esses são alguns outros elementos presentes em uma história que, absolutamente, não terminou com o Estatuto da Cidade. Ela continua firme e forte na ideia de uma cidade que seja efetivamente para todos. Uma cidade que reconheça as múltiplas formas de fazer cidade, os múltiplos vínculos com o território como legítimos, uma cidade que rompa com a lógica extrativista – inclusive em relação a natureza – na direção de espaços desenhados para proteger a vida.
Raquel Rolnik é urbanista, professora de Planejamento Urbano da FAU USP e coordenadora do LabCidade. Livre-docente pela FAU-USP e doutora pela New York University, foi coordenadora de urbanismo do Instituto Pólis, diretora de Planejamento Urbano da cidade de São Paulo, secretária de Programas Urbanos do Ministério das Cidades e relatora especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada. É autora dos livros O que é a cidade, A cidade e a lei, Folha explica São Paulo e Guerra dos lugares.