Complô contra a América
Há um complô contra a América. Pela falsidade de suas propagandas e promessas, pela desigualdade econômica orgulhosa, pela desatenção ao seu próprio povo e pela leniência e incentivo a uma selvagem violência
Cercam os Estados Unidos da América. Atiram os Estados Unidos da América de um lado a outro, em meio a risos e obscenidades. Agridem os Estados Unidos da América (quase) como só os Estados Unidos da América souberam agredir no passado. Como só os “inventores” do bullying poderiam saber e talvez só Philip Roth, autor do livro que enseja o título desse texto, pudesse imaginar.
Antes, alguns também se aproximaram dos Estados Unidos da América, mas sem pedras e sem escárnio. Com adulações irrefletidas, bajulações subservientes e uma ideologia nascida de um raciocínio paroquial. Atribuíram ao país uma essência de superioridade metafísica, repisando a liberdade como se ela pudesse viver apenas pelo simples fato de ser discursada, e como se os fatos não fossem capazes de desmentir a fria retórica.
Peça de propaganda démodé, a soi-disant liberdade dos Estados Unidos da América derrete, como bem sabemos, no sangue do povo negro morto pelos brancos policiais, no povo pobre que morre nas portas dos hospitais privados, na história eterna de genocídio indígena, nas invasões farsescas ao redor do globo, nas pantomimas humanitárias, e, não esqueçamos, no armamento bestial de uma população temerosa de sua própria sombra. Cercaram já, sim, os Estados Unidos da América, portando o capachismo e servilismo que coroaram o país com uma suposta democracia ontológica. Alguns, teimosos, ainda cercam.
Mas a história, que não é detentora de teleologia alguma de um bem maior, por vezes ensina duras lições no curto tempo de uma vida humana.
O dia 11 de setembro é um exemplo. Não o de 2001, mas o de 1973, quando os Estados Unidos da América agrediram, com seus arrochos econômicos, e sobrevoaram, com suas aeronaves militares, o Chile de Salvador Allende, forçando-o a deixar a presidência e a tirar a própria vida. A democracia, a liberdade e o progresso viriam pelas mãos de Pinochet, segundo Henry Kissinger e a diplomacia intervencionista que declamava a política norte-americana. Vietnã, Brasil, Argentina, Honduras, Coreia, Iraque, Afeganistão, Venezuela, Síria e outros países foram algumas de suas vítimas internacionais estranguladas pelas mãos de quem bradava por direitos humanos e democracia à força.
E o ano de 2021 — ano em que se completam vinte anos do cruel ataque às torres gêmeas, que acabaram por fundamentar duas décadas de terror em nome da defesa contra o terror — amanheceu com o capitólio dos Estados Unidos da América ensanguentado, sujo e em chamas. Cercaram-no, o capitólio. Cidadãos norte-americanos que se denominam masculinistas, psicopatas mergulhados no ridículo, vestidos tosca e barbaramente, queimaram, depredaram, mataram e suspenderam a legitimação, pelo Congresso, do novo presidente eleito do país.
Nenhum avião venezuelano vai cruzar os céus de Washington como os norte-americanos fizeram em Santiago do Chile. Não haverá Abu Ghraib que abrigará norte-americanos. Nem porta-aviões a caminho da costa leste para auxiliar um possível golpe.
Os Estados Unidos da América, com relação a isso, podem ficar descansados. Esses países hoje sorriem com a certeza de que toda a arenga norte-americana sobre sua própria democracia, a força de suas instituições e sua liderança mundial não é nada além de uma frágil circunstância ficcional, podendo ser materialmente desmentida até por uma horda de insanos grotescos. A única reação que esses países podem ter, e alguns – não podemos condenar – têm, é o da satisfação em ver as agruras presentes de seu agressor.
Mas, com relação a si próprio, eis que os Estados Unidos da América estão cercados. Há um complô contra a América. Pela falsidade de suas propagandas e promessas, pela desigualdade econômica orgulhosa, pela desatenção ao seu próprio povo e pela leniência e incentivo a uma selvagem violência, a democracia onírica de um país que gosta de impor seus sonhos hoje é poeira nas mãos dos tresloucados que a cercam.