Comunicação e democracia
O grande desafio é abordar narrativas diferentes, inteligentes e comprometidas com a transformação social. É preciso apostar em um novo aprendizado e em talentos que florescem mais por insistência e garra do que por meio de oportunidades
As discussões sobre a organização de políticas para as emissoras públicas no Brasil seguem um bom processo, por meio de diversos fóruns que têm sido realizados, particularmente nos últimos meses. Diversas associações e organizações, representadas pelas TVs universitárias, comunitárias e ligadas aos governos federal e estadual, além de intelectuais e representantes da sociedade civil, estão mobilizados no diagnóstico da realidade da radiodifusão e nas chances que terá a comunicação pública não-comercial.
A necessidade do reconhecimento da dimensão das TVs educativas e culturais, somada ao esforço do governo federal, por meio do Ministério da Cultura e da Radiobrás, em estabelecer os princípios de regulamentação para a comunicação pública é, de fato, memorável. E marca, definitivamente, um novo caminho, mais democrático, para esse que é o grande campo de manifestação da vida política, social e econômica da atualidade.
Transformação para a cidadania
Mais do que isso, um dos desafios da modernidade é ainda permitir que o poder da comunicação possa garantir a livre expressão de idéias e assegurar a coesão social. Diante da realidade brasileira, refletir sobre os caminhos da comunicação pública é também pensar em como educar para a democracia. Em vista disso, estamos inexoravelmente atados à comunicação pública comprometida com a transformação para a cidadania. Princípios nada novos na comunicação brasileira, mas de difícil empreendimento, haja vista alguns dos episódios enfrentados por iniciativas nobilíssimas, mas de alcance e fôlego restritos, diante dos muitos interesses menos públicos e mais privados que povoam a nossa história.
A TV nem existia e Roquette-Pinto já planejava uma proposta de cinema no Brasil. Por volta de 1910, teve início no Museu Nacional do Rio de Janeiro a primeira filmoteca para o ensino e a pesquisa científica. Roquette-Pinto trazia da região amazônica os filmes produzidos por ele sobre os índios nhambiquaras e fazia projeções naquele espaço. Mas décadas se passaram sem que o tal cinema educativo tivesse uma organização sistematizada, com planejamento definitivo e recursos previstos.
Pois bem: foi dessa maneira que o ministro Gustavo Capanema apresentou ao presidente Vargas um conjunto de questões pertinentes e fundamentadas por Roquette-Pinto para a criação do Instituto Nacional do Cinema Educativo (INCE).
De fato, com a reforma do Ministério da Educação, em 1937, o INCE foi incluído de maneira permanente como serviço público e tinha por função documentar todas as atividades brasileiras em ciência, educação e cultura, com o objetivo de difundi-las, de forma popular, principalmente por meio da rede de ensino.
Imagino que alguns tenham conhecimento desse capítulo de nossa história das comunicações. O fato é que a missão foi cumprida, graças ao empenho da direção administrativa de Roquette e da direção técnica de Humberto Mauro, apesar dos recursos escassos.
Não fosse o visionário Roquette-Pinto, é certo que os esforços para fomentar o caráter educativo do rádio, do cinema e, posteriormente, da TV estariam muito mais debilitados. Ele foi o primeiro a defendê-los com esse propósito e teria dito: “No Brasil, o rádio e o cinema têm de ser a escola dos que não têm escola”.
Para concluir esta introdução histórica, conta sua neta Vera que, quando a televisão foi inaugurada, Roquette Pinto já estava muito doente. Tinha um grande aparelho de TV no quarto e em uma de suas visitas a ele, Roquette-Pinto teria dito: “olha, minha querida, que belo meio para educar nosso povo”1.
Com isso, quero chamar a atenção para as dificuldades que se mantêm, até hoje, mesmo com todas as belas iniciativas, para estabelecer uma comunicação pública ligada aos interesses da população. Interesses, diga-se de passagem, que são socioeducativos, num país em que pouco se lê, e no qual existe uma interação absoluta com a televisão comercial.
Quanto ao rádio, muito mais antigo que a TV, podemos dizer que também deve muito de sua origem à dedicação de Roquette-Pinto. Lembro que foi mérito seu a inauguração da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, em 1923. Depois disso, ainda, fez todas as tentativas para torná-lo instrumento educativo, e o fez até que a TV lhe tirasse o primeiro lugar.
O rádio participou de todos os movimentos da vida brasileira. Contribuiu na derrota da República Velha, uniu-se às agitações da Revolução de 1932, ensinou a população a abstrair e criar imagens numa geopolítica própria à Segunda Guerra, tendo noticiado, posteriormente, passo a passo, o fim do governo Jango e o golpe de 1964.
O rádio brasileiro atual, ainda que continue a manter bons índices de difusão, está descaracterizado em comparação à vitalidade que já teve no cotidiano dos brasileiros, mas, diante da experiência acumulada e de tantos talentos conhecidos, seria muito promissor que pudesse retomar dessa experiência novos caminhos de ação cultural e socioeducativa.
Em um país em que a força da narrativa visual é tão imperativa, seria esplêndido que a audição desse tipo específico de radiodifusão, que pode tão bem explorar a inteligência em suas conexões de sentidos e na criação de imagens, que são sempre pessoais e singulares, fosse um novo exercício de cidadania e identidade coletiva.
Gostaria, antes mesmo de apresentar algumas considerações sobre conteúdo ou formato, a propósito da diversidade, afirmar a relevância que todas as emissoras educativas têm e tiveram.
Tenho acompanhado não só algumas atividades, mas também o empenho da ABEPEC (Associação Brasileira das Emissoras Públicas Educativas e Culturais) em levar a discussão sobre a qualidade, os recursos e a organização necessária para propostas de maior alcance territorial e cultural entre os diversos públicos que atende.
Todavia, considero que alguns pontos merecem destaque nesse esforço de diagnóstico da realidade, ao qual também me uno, orientado por minha experiência em gestão sociocultural.
Como a TV no Brasil nasceu comercial (assim como a norte-americana e diferentemente das européias), tanto a TV como
a radiodifusão públicas precisam vencer um conjunto de dificuldades para que possam se consolidar de forma democrática.
Vale reiterar que comunicação pública não significa comunicação estatal. Mas, sim, uma comunicação que tem o caráter democrático como princípio e a concepção clara sobre a coisa pública como fundamento. E mais: é franca e aberta e não pode ser explorada comercialmente. Esses elementos são básicos. E não adianta usarmos algumas justificativas que cabem para mediar impasses no âmbito da economia da cultura. Não! Devemos reconhecer que a dinâmica que move a TV comercial é totalmente diferente daquela da TV pública, educativa, principalmente no Brasil, em que esta precisa ser fortalecida.
Mesmo com a contribuição da teledramarturgia, a TV comercial não privilegia os conteúdos porque seu produto é a audiência. Regida pelos significados do mercado, seu valor está medido pelo potencial consumo do público. Desse modo, ganha mais quem consegue, com conteúdos variados, prender por maior tempo o espectador. Nesse vale-tudo de velocidade incrível e alto impacto emocional, não há a preocupação com a inteligência, nem tampouco há espaço e tempo para a diversidade cultural.
Não podemos esquecer que apenas uma ínfima parcela das expressões culturais entra como formação/informação nos lares brasileiros. Ainda que alguns programas bem intencionados incluam boas matérias ou reportagens, o próprio ritmo da TV comercial fragmenta, ao editar os conteúdos que dependem de uma reflexão continuada do telespectador, o que poderia se tornar aprendizado.
Falso ideário de futilidades
A propósito desse ritmo, o sociólogo Pierre Bourdieu vai além, ao afirmar que uma parte da ação simbólica da televisão, no plano das informações, é também atrair a atenção para fatos que podem interessar a todos, sem chocar nem agredir ninguém, agregando o que é consensual, e, por isso, sem tocar em nada de fato muito importante.
Essa inversão de valores que durante décadas constituiu um falso ideário de futilidades, atribuindo menos seriedade e peso a coisas bem relevantes, só contribuiu para acirrar uma visão acrítica, fomentada, ainda, pelo mercado e sua sedução de consumo.
Diante de alguns desses aspectos – que são um mar de cultura estabelecida –, deparo-me com certas questões. Como pensar o projeto educativo para a comunicação? Sob quais formatos poderemos atingir nossos objetivos? Que projeto de nação a comunicação pública será capaz de promover?É certo que conteúdos educativos e interessantes podem e são oferecidos, mas o que chama minha atenção é que fragmentos dispersos não bastam diante do que já foi estabelecido com o auxílio da TV comercial. Material e simbolicamente, o mercado, pela via da comunicação televisiva, forjou corações e mentes. O imaginário, a auto-estima e o não reconhecimento de si, como elementos constituintes de um povo, devem ser transformados. E com urgência.
Que Brasil e que ideal de brasileiros estão mais presentes nos noticiários, nas telenovelas e nos meios de comunicação em geral? Penso que é possível um projeto educativo revolucionário pela comunicação pública, mas é preciso investimento e objetivos precisos que justifiquem a “educação para todos”. Como acredito na sociedade educativa, penso que devemos buscar caminhos próprios.
A opção pela diversidade na comunicação pública também passa por uma substituição do consumidor pelo cidadão. E a cidadania, como medida de qualidade e conteúdos, sugere um conjunto de outros princípios programáticos.
Lembro-me de Lúcio Mesquita2 (jornalista, diretor para as Américas do serviço mundial da BBC) usando o exemplo da BBC para exemplificar qual a diferença de uma programação infantil na TV pública e na TV comercial: nos dois canais infantis da BBC, a programação é encerrada às 7 da noite, porque as crianças precisam dormir. Na comercial, a programação de desenhos é ininterrupta, por 24 horas.
Para as propostas que contemplem a diversidade cultural, étnica e estética, em formato e conteúdo, é importante discriminarmos qual é, ou deve ser, o papel da comunicação pública. Há quem acredite que deva ser complementar ao mercado, oferecendo o que não tem interesse comercial. No entanto, o que parece ser fundamental é que a comunicação pública, por meio da TV e do rádio com finalidades educativas, forneça programas, serviços e conteúdos que sirvam ao público como um todo e não a determinados segmentos apenas. Assumindo critérios como imparcialidade, qualidade e criatividade, é possível inovar, oferecendo produtos que sejam novas referências. É viável contar-se com a colaboração de produtores independentes. Há muitos profissionais disseminados fora do eixo Sul-Sudeste. Muitos trabalhos educativos têm melhor caráter de comunicação local do que outros e isso pode ser um critério de escolha.
A qualidade deve estar presente no formato das atividades e nos conteúdos. Com a migração para os recursos digitais, é fundamental que tenhamos muito claro e definido qual TV pública queremos, pois, do contrário, acabaremos nos guiando por orientações que servirão aos modelos comerciais. Definindo a qualidade, podemos planejar como acolher novas experiências com linguagens e como desenvolver modelos narrativos mais apropriados. Essa diversidade só será possível num ambiente em que a criação seja desejada e estimulada e a multiplicidade seja um princípio elementar. Por exemplo, imaginemos uma telenovela construída segundo uma outra narrativa, sem estar entrecortada pelos intervalos comerciais, e com um apelo expressivamente cultural e educativo.
Esforço intelectual crítico
A questão da audiência nas TVs públicas é um aspecto delicado em vários países do mundo. Na França, Alemanha, Inglaterra, EUA, com a PBS (Public Broadcasting System), há um empenho recorrente que usa de muita criatividade e diversidade para manter o interesse dos telespectadores. Aqui poderemos ter melhor sorte!
Quando penso na diversidade cultural e educativa a ser difundida pelos meios públicos de comunicação, deparo-me com alguns pressupostos que orientam os objetivos de nossa ação sociocultural no SESC SP e que podem contribuir para:
1) Que cada cidadão aumente sua condição de análise e crítica, em relação a si mesmo, aos outros e à situação nacional – o que depende de condições de comunicação local e nacional e da difusão dos bens e produtos culturais;
2) Fomentar um esforço intelectual crítico de interpretar, compreender e principalmente confrontar a realidade com os planos e projetos de desenvolvimento que estão postos no cotidiano;
3) Estimular atitudes criadoras e imaginativas que possam transformar valores que serão geradores de novos valores;
4) Contribuir para organizar a vida no tempo livre, de modo que este possa ser apropriado como tempo criativo para autoformação e desenvolvimento pessoal.
Com isso, diante da cultura viva que circula Brasil afora, não é possível buscarmos apenas o que nos parece “puro” ou “tradicional”. Devemos buscar os “hibridismos” ou, como prefere o antropólogo italiano Massimo Canevacci, as “polifonias”, que na cultura, em tempos de globalização, estão em permanente mutação na esteira dos fluxos sem territórios. Não temos mais tempo de buscar uma comunicação pública que trate apenas de ideais de “brasilidade” dissociados das narrativas e auto-imagens reais de “brasilidade”.
O grande desafio é abordar narrativas diferentes, inteligentes e comprometidas com a transformação social. É preciso apostar na via de um novo aprendizado, que permita agregar para desenvolver as inúmeras potencialidades individuais e comunitárias, os talentos que muitas vezes florescem, muito mais por insistência e garra, do que por meio de oportunidades. Com o poder estabelecido pela comunicação social, é necessário investir em estratégias educativas que nos libertem e nos conduzam pelos caminhos da cidadania.
*Danilo Miranda é especialista em ação cultural e diretor do Departamento Regional do SESC – Serviço Social do Comércio no Estado de São Paulo. É também conselheiro do MAM (Museu de Arte Moderna de São Paulo), da Fundação Itaú Cultural e do Art or the World, da Suíça. Foi presidente do Conselho Diretor do Fórum Cultural Mundial/2004, em São Paulo, integrando ainda a diretoria do International Institute for Cultural Enterprise, dos EUA.