Concentrações e exclusões de profissões e minorias nos premiados na Lei Aldir Blanc
Música popular, artesanato, circo, dança, patrimônio, culturas populares, hip hop, povos e comunidades tradicionais passam por tratamento estruturalmente excludente
No caso da má distribuição da Lei Aldir Blanc (LAB) se revela uma tensão entre segmentos culturais historicamente privilegiados pelo poder público em detrimento dos demais, os excluídos, como na obra “The Established and the Outsiders”, de Norbert Elias.
Para o pesquisador Manoel J de Souza Neto, a questão das premiações de editais de incentivo e fomento à cultura se iguala a outros estudos de caso e teorias de autores da sociologia como Pierre Bourdieu e o já citado Norbert Elias. “As distribuições de recursos seriam dirigidas para agrupamentos que têm maior influência política, social, sobrenomes e reconhecimento de seletos grupos de artistas e críticos, que se relacionam como um grupo fechado, ao qual a grande maioria não entra no clube, indiferente ao talento, pois são redes formadas por laços e interesses sociais, políticos e econômicos”, avalia.
Segmentos como música popular, artesanato, circo, dança, patrimônio, culturas populares, hip hop, povos e comunidades tradicionais passam por tratamento estruturalmente excludente. Do outro, pela lógica atual do fomento estatal, produtores, captadores de recursos de leis de incentivo, e ainda agentes das artes visuais, cinema e teatro, são tratados por “queridinhos” do poder público, segundo o pesquisador. Manoel ainda afirma que existem mais de 45 mil músicos no Paraná, segundo dados da Ordem dos Músicos do Brasil do Paraná (OMB-PR), “mas o cálculo varia, pois aqueles que são profissionais em tempo integral, podem ser em número superior aos 10 mil, mas se considerar a cadeia produtiva, pode chegar aos 100 mil envolvidos com a música apenas no Paraná”. Mas esses números não seriam compreendidos pelos gestores de cultura porque, ainda segundo Manoel, “eles não sabem, porque não leram os relatórios sobre informalidade no trabalho da cultura lançados pelo Ipea. A música varia em torno de 90% de informalidade nas relações de trabalho”.
Mesmo com números tão díspares quanto a que o Estado oferece entre um segmento e outro das artes, o que se comprovou com os dados da Lei Aldir Blanc obtidos pela reportagem em relatório da Superintendência-Geral de Cultura do Paraná [não disponibilizado na internet] e no relatório da auditoria do Tribunal de Contas do Estado do Paraná é que não existem estudos para distribuição proporcional dos recursos entre diferentes segmentos da cultura. Além disso, se comprova que não existe confiabilidade na escolha dos premiados e dos excluídos nestes prêmios. (TCE-PR, 2021, p.178; 183; 188).
Renda emergencial: desproporcionalidade revelada através dos segmentos prejudicados em editais
Dados do relatório da Superintendência-Geral de Cultura do Paraná (SGC-PR), com divisão de setores que receberam os parcos valores de R$ 600,00 mensais distribuídos da renda emergencial da LAB (Inciso I), revelam a desproporcionalidade da música, com relação aos demais segmentos.
No entanto, aquilo que pode ser confundido como positivo, no isolado do percentual da música comparado aos demais segmentos, expõe como esse setor tão prejudicado na pandemia (com a proibição de espetáculos, shows, e execução de música ao vivo em bares e eventos), também não encontrou amparo em editais voltados a compositores ou produtores, por causa da burocracia. Restou para maioria dos músicos como única alternativa de busca pela sobrevivência os baixos valores da renda emergencial da LAB. Vale ressaltar que apenas 298 músicos de um universo de 45 mil obtiveram auxílio, em um setor com 90% de informalidade de relações de trabalho.
No entanto, relatos vindos de lideranças do setor musical, relacionados à OMB, declaram que para boa parte dos músicos, os editais eram inacessíveis. Por outro lado, a renda deles era baixa, mas acima do teto permitido, o que impediu que pudessem também buscar o auxílio emergencial.
Indício disso está no relatório Superintendência-Geral de Cultura do Paraná
Respostas dadas pela Diretoria Técnica de Cultura da SGC-PR aos questionamentos dos segmentos excluídos (Protocolo 17.908.645-0) vieram através da nota Técnica DTC n º 60/2021, em resposta a Petição do Fórum de Cultura do Paraná (FCP) ao Secretário de Comunicação e Cultura do Paraná, em que afirmam a despeito de tudo que já foi exposto que “quanto ao questionamento referente à exclusão de setores sociais, não é de conhecimento da pasta que qualquer setor tenha sido excluído nas diversas construções de políticas realizadas pela SECC, e o Estado não pode fazer qualquer exclusão, pois trabalha para e com estes setores”. (SGC-PR, nota Técnica DTC n º 60/2021). Não especificando quais setores foram atendidos e quais excluídos, seja do diálogo formal, dos formatos de editais, ou mesmo atendidos de forma desproporcional, a resposta não fica a contento dos movimentos que solicitaram esclarecimentos.
Má distribuição nas diferentes profissões da cultura
Considerando a dimensão do setor musical, a distribuição dos recursos da LAB no inciso III (prêmios voltados ao fomento e manutenção do setor), em que apenas 2.157 agentes se cadastraram (de 400 mil trabalhadores do setor no Paraná), apenas 1.478 foram contemplados. Esses números se agravam se forem feitos recortes setoriais.
No caso da Música, com 19,49% dos prêmios do inciso III, de apenas 1.478 beneficiados, somente 288 seriam da música.
Praticamente 20% do Inciso III (prêmios voltados ao fomento e manutenção do setor) e 43,26% dos auxílios do inciso I (renda emergencial mensal aos trabalhadores e trabalhadoras da cultura) podem parecer números expressivos. Mas se comparados pela média aproximada de 45 mil músicos profissionais do estado, 577 beneficiados representam uma parcela ínfima. Como agravante, como já citado nesta série, 77,4% ficaram na região de Curitiba, prejudicando ainda mais os músicos do interior.
Para Gehad Hajar, que é bacharel em direito e pesquisador e produtor cultural especializado em ópera, a desproporção ocorre no teatro de forma mais evidente. Ele relata que o total de registros das artes cênicas no Paraná seriam de apenas 1998 trabalhadores para o estado inteiro (levantamento de 2020). “Como é que uma comunidade de menos de 2 mil pessoas em todo o estado do Paraná consegue ter a maior fatia dos orçamentos de cultura? Ter a maior projeção na militância? Consegue ter maior estado de organização dos grupos de pressão? Esses movimentos são todos grupos de pressão”, afirma Gehad.
Essas opiniões e análises geram a percepção de que alguns grupos levam vantagem. Comparado com a auditoria da LAB realizada pelo TCE-PR, os dados se comprovaram ainda mais inquietantes. Não existe divisão proporcional de recursos entre os mais diferentes setores. “Ainda entre os itens elencados, a Secretaria julgou que a distribuição de 10% dos recursos entre categorias culturais caracterizaria seu uso isonômico, ponto em que se diverge, já que as manifestações culturais em análise não atendem o mesmo padrão. Ou seja, o Estado não possui, exemplificadamente, 10% de todas as manifestações culturais na categoria teatro, ou 10% na categoria artesanato e, de forma sistematizada, e os percentuais reais de base são desconhecidos pela Secretaria” (TCE-PR, 2021, p.29).
É notória a distinção dada pela SGC-PR aos segmentos culturais, segundo Manoel J de Souza Neto. “Nos programas e políticas ocorrem destaques para equipamentos públicos como bibliotecas, centros de criatividade em artes visuais, museus, e atividades do segmento teatro são favorecidas de forma evidente, em detrimento das demais atividades culturais”, afirma. Isso se evidencia nas atividades de planejamento da Superintendência-Geral de Cultura do Paraná, expostas na auditoria do TCE-PR (p.35). As metas do plano estadual de cultura e do plano plurianual não correspondem. “Essa falta de correspondência revela a falha de representatividade, sensibilidade e confiabilidade dos indicadores utilizados para desempenho das políticas públicas”. (TCE-PR, 2021, p.37).
Desproporção da distribuição de recursos da música e artesanato comparado ao teatro
Um dos casos mais evidentes localizados pelo Observatório da Cultura do brasil (OCB) nos relatórios, estudos e auditorias, aborda o tratamento desigual que o setor musical e também o de artesanato recebem na distribuição do fomento. Além do governo estadual (SGC-PR) e municipal (FCC, Fundação Cultural de Curitiba) terem ignorado a representação oficial da entidade de classe Ordem dos Músicos do Brasil (OMB) e setores associativos do artesanato e culturas populares, na fase de regulamentação e deliberação das políticas e editais da LAB, as atas e documentos localizados confirmaram a sub-representação destes setores, no fomento (Inciso III) diante de suas reais dimensões.
Na auditoria do TCE-PR, surgiram dados que expuseram a supervalorização das metas de pagamentos de teatro e música. Mas os dados ocultam até do TCE-PR a enorme diferença numérica entre os setores, expondo a desigualdade do teatro no recebimento de recursos, comparado a todas as demais atividades culturais e suas verdadeiras proporções em termos numéricos na representação de praticantes e força de trabalho. Dados de editais anteriores, que revelam a distribuição de recursos em cidades de até 20 mil habitantes, reforçam as concentrações e exclusões.
Apesar da música ser muitas vezes maior do que o teatro em número de trabalhadores (algo em torno de 6 a 7 vezes mais), em todos os estudos localizados pela Fonoteca da Música Paranaense e pelo OBC, confrontados com a análise de editais de forma continuada, fica evidente o baixo atendimento por parte da SGC-PR do setor que é o segundo maior da cultura, enquanto o artesanato, que é o maior segmento com cerca da metade de todos os trabalhadores da cultura no Brasil, fica praticamente excluído. O teatro, com número menor de trabalhadores, sempre aparece nos resultados de editais com a maior parte dos premiados no Paraná, fenômeno que se repete em Curitiba nos editais da FCC.
O tratamento dado pela SGC-PR para setores distintos fica claro nas reuniões feitas entre o órgão e a classe. A ausência de dados da pasta da cultura fica evidente. Pois foi dado tratamento igual para diferentes realidades setoriais. Enquanto o teatro pede mais editais, o setor da música denunciou que os proponentes têm dificuldades em adequar-se às regras dos editais. Os critérios exigidos segundo os relatos obtidos atendem basicamente o teatro.
Ainda que essas situações tenham sido relatadas na imprensa, por meio de denúncias e consultas de diversos setores, o modelo viciado de editais, que propicia a ampliação das contradições e exclusões existentes, foi mantido em todo o período da pandemia e se reproduz nos novos editais pós-pandemia, demonstrando a total incapacidade de audição dos gestores da cultura ante as diferentes realidades dos setores culturais. Prevalece aquilo que interessa aos produtores, captadores e segmento de teatro, os editais que atendem quem já tem currículo de ocupação dos próprios espaços do poder público.
Apagamentos de setores das culturas populares e segmentos étnico-raciais
Nas cidades menores, segmentos que envolvem linguagens contemporâneas como artes visuais, ou de alta qualificação como ópera, e especialmente culturas populares, tiveram 0% de aplicação de recursos conforme tabela abaixo, que consta do relatório da auditoria do TCE-PR.
“Como se observa pelo quadro acima, o desconhecimento de formas e locais de expressão resultou em baixa efetividade na distribuição de recursos em categorias, frustrando os valores em 2/3 (dois terços) das previsões. Algumas combinações de categorias e abrangência geográfica sequer foram contempladas (valores destacados em amarelo, nas linhas 9, 12, 14 e 23), levando a uma realocação posterior dos valores para outras áreas.” (TCE-PR, 2021, p.18).
Além de recursos não aplicados em determinados segmentos e editais que não foram efetivados em 2020 e 2021, ocorreram editais com baixa adesão por falta de planejamento, conhecimento e divulgação, resultando em “Dos 8 (oito) editais lançados para atender o fomento cultural (inciso III), 6 (seis) tiveram frustrações no seu desempenho, perfazendo execução inferior a 10%.” (TCE-PR, 2021, p.158).
O circo é outro caso semelhante. Os recursos ofertados, no geral, passam por frustração na aplicação, conforme aponta o relatório de auditoria do TCE-PR, 2021, p.19). O que é justificado pelos representantes do setor é a alta burocracia, que não dialoga com a realidade itinerante dos circos, que na maioria dos casos gera impedimentos diante de documentos exigidos, como ocorreu no edital do Selo Circo Amigo do Paraná, de 2021. “A Superintendência-Geral da Cultura do Paraná ouviu muita gente para construir este edital. Mas quando foi lançado, veio muito burocrático para o circo, o que pedimos para não acontecer. Em vista das exigências, houve circos que não puderam cumpri-las e foram inabilitados”, alega Thayse Christo, do Fórum Setorial de Circos do Paraná, eleita para o Consec, mandato 2022-24. Diante desta situação, foi feita uma ação judicial para derrubar a exigência da certidão negativa de débitos [MS 007139-38.2021.8.16.0004]. “Dois circos ainda conseguiram receber os recursos, mas outros três ficaram de fora. Ainda houve o agravante de que a Superintendência alegou na Justiça questões que o edital não exigia. Isso foi injusto”, completa.
Documentos que foram acessados pela reportagem, ofertados pelo Fórum de Circo do Paraná, demonstram a burocratização ampliada pelo órgão durante o processo do edital, gerando uma escalada ainda maior de documentos, violando a própria legislação estadual (Projeto de lei nº 299/2021), que impediria o Estado de exigir previamente certidões negativas nos editais de cultura.
Favorecimento e apanágios para os segmentos do teatro, artes visuais e cinema
Na opinião dos dirigentes setoriais consultados, existe uma sensação de que setores que “gritam mais” recebem editais exclusivos, bem como maiores valores. Segundo Manoel J de Souza Neto, pesquisador do Observatório da Cultura do Brasil, “outros fatores, como maior engajamento político, maior poder de barganha entre favores da classe e interesses do poder público, programas e editais que atendem aos próprios interesses da gestão, podem determinar mais as razões da desproporção dos recursos aplicados em cada área, do que mero desconhecimento e falta de planejamento técnico”.
A origem dessa “desigualdade” de tratamento seria a maior aproximação com salas de exposição, auditórios e teatros públicos, dos setores diretos, dos quais o poder público depende para ocupar suas próprias salas. Segundo Manoel J de Souza Neto, “a origem desse tratamento desigual seria estrutural, envolvendo sistemas de trocas de favores entre setores privilegiados e o poder público, numa relação simbiótica. Onde um ajuda o outro, e por isso os editais de alguns segmentos, digamos assim, ficariam mais recheados, do que a dimensão real daquele setor, comparado a outros. Pois estes projetos destes segmentos acabam, ao final, por ocupar salas públicas, e com isso servem para justificativa e relatórios de uso e aproveitamento de espaços e orçamento, em vantagem dos próprios órgãos públicos e do poder do Estado. Essa situação se notabiliza especialmente, nos casos de artes plásticas, cinema e teatro. Ou seja, o que manda no final, são os gráficos, os relatórios que os gestores apresentam nas prestações de contas. Números que eles produzem, visando suas benesses, e nunca, jamais a execução de políticas públicas de cultura”, afirma.
Além das contradições já verificadas por essa série de reportagens, demonstrando aspectos, como problemas estruturais nos órgãos de cultura (como déficits de pessoal, capacitação, investimento e de normas) e ainda outros na execução (quanto aos critérios na formulação, análise de projetos, julgamento, certificação, distribuição, fiscalização, prestação de contas), se destacam como efeitos resultantes a concentração regional nos grandes centros urbanos, especialmente capitais, além de concentração em classes sociais, faixa etária, gênero, profissões, segmentos culturais e artísticos .
Para além das profissões prejudicadas na LAB, e historicamente no fomento à cultura, existem outras assimetrias sociais e recortes, que não podem ser ignorados segundo o pesquisador Manoel J de Souza Neto, especialmente no que se refere à idade, gênero e raça.
O relatório “Renda Emergencial Mensal e Fomento Paraná 2020”, da Superintendência-Geral de Cultura do Paraná, apesar de incompleto, apresenta alguns apontamentos iniciais:
Inciso I:
Inciso III:
Inciso I:
No Achado 4 da auditoria do TCE-PR, o efeito descrito pela falta de planejamento e de editais que visem verdadeira inclusão, se manifesta mais no aspecto regional, indicando que estaria ocorrendo: “Limitação na promoção de emprego e renda pela cultura em locais cuja capacidade de geração de renda é previamente reduzida; Acentuação, no que se refere à distribuição dos recursos, das desigualdades entre municípios com maiores e menores capacidade de geração de renda, de forma com que não se rompa o ciclo”. (TCE-PR, 2021, p.196). Porém, essas análises ocultam as assimetrias dessas exclusões no sentido social, dos grupos mais atingidos: os periféricos dos territórios já excluídos.
A Superintendência-Geral de Cultura do Paraná não respondeu às solicitações do Fórum de Cultura do Paraná, Centro Cultural Humaitá, Defensoria Pública da União e outros movimentos e lideranças que solicitaram informações mais detalhadas em prêmios e bolsas, sobre quantidades e proporções de premiados em etnias e raças declaradas nas inscrições. Não foi possível, a partir dos dados, verificar o atendimento de transgêneros. Os relatos são de que ocorreu forte presença de contemplados de classe média, urbana, masculina e branca nas premiações, enquanto negros, indígenas, ciganos e demais comunidades e povos tradicionais, relatam racismo estrutural.