Lei Aldir Blanc: má distribuição e erros de gestão confirmados pelo TCE-PR
Auditoria realizada pelo Tribunal de Contas do Estado do Paraná (TCE-PR), ao se tornar pública, expõe em detalhes as contradições aqui reveladas pela série A crise da cultura
Conforme revelado nas reportagens anteriores desta série, ocorreram graves erros de gestão pública que resultaram em concentrações e exclusões regionais. Os dados preliminares divulgados pela reportagem eram uma parcial, tomada pelas informações obtidas na época por conselheiros do Conselho Estadual de Cultura do Paraná (Consec) da Superintendência-Geral de Cultura do Paraná (SGC-PR), devido ao órgão ter se recusado a fornecer informações na época. Porém, auditoria realizada pelo Tribunal de Contas do Estado do Paraná (TCE-PR), ao se tornar pública, expõe em detalhes as contradições aqui reveladas anteriormente, confirmando o alto índice de municípios no Paraná que não executaram ou devolveram recursos da Lei Aldir Blanc (LAB). Seguem dados extraídos da auditoria do TCE-PR, com análises da reportagem em colaboração com o Observatório da Cultura do Brasil (OCB) e opiniões de membros do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais – IBDCult.
No primeiro momento já se sabia que os recursos foram precariamente aplicados pelos municípios, que acabaram devolvendo recursos ao estado e ao governo federal, ao menos conforme a regra, demandando no futuro análise dos dados finais referentes aos recursos devolvidos. A auditoria do TCE-PR revelou que praticamente a metade dos municípios que detinham direito de acesso aos recursos utilizou entre 60% e 100% das verbas destinadas, enquanto a outra metade utilizou abaixo de 50% (e destes, 19,92% nada utilizaram). O detalhe é que esses números se revelam ainda piores, posto que dos 399 municípios do estado, apenas 241 solicitaram recursos. O que implica na afirmativa de que mais de dois terços das cidades do Paraná ou não aplicaram recursos, ou aplicaram valores baixos, obtendo maus resultados. Quanto às demais cidades, apenas 42,74% aplicaram os recursos em níveis aceitáveis. Informações que ainda não são claras em todo o Brasil, mas são indicativos para outras pesquisas.
Contradições regionais e sociais na aplicação da Lei Aldir Blanc no Paraná: exclusão das regiões mais pobres do estado
Em síntese, no comparativo com o Produto Interno Bruto (PIB) e o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), o caso revelou a concentração de premiados na capital Curitiba, má distribuição regional pelo Paraná, má execução de recursos, exclusão de povos e comunidades tradicionais, além de abandono das regiões mais pobres do estado. Essas mesmas denúncias coincidem com as de racismo estrutural, conforme apontado nas reportagens, de que as regiões mais pobres do estado têm também a maior concentração de populações negras e indígenas.
O quadro abaixo, elaborado pelo TCE-PR, expõem uma realidade que se repete em muitas regiões brasileiras: as cidades que mais apresentaram projetos na concorrência de editais de cultura estaduais no Paraná entre 2017 e 2019 são no geral as cidades com maior PIB, indiferente às demandas sociais e de desenvolvimento humano.
Segundo membros do Observatório da Cultura do Brasil, o relatório do TCE-PR demonstra no comparativo por IDH evidência da reprodução da desigualdade social também no uso dos recursos da cultura, pois quanto maior o IDH das cidades, maior sua participação nos recursos dos editais e programas culturais do governo do estado.
Na mesma constatação técnica apresentada pelo TCE-PR, a análise comparativa entre distribuição de recursos da cultura e o IDH repete a lógica: quanto mais pobres os municípios, menos recebem recursos da cultura, ainda que sejam justamente estes que necessitem mais desses aportes, já que um dos índices de medição de IDH é justamente o acesso à educação e à cultura (dados do OCB).
A situação teve por agravante a enorme concentração de premiados na capital, de forma absolutamente desproporcional.
Curitiba obteve arrecadação na LAB superior ao dobro de sua representação populacional diante das demais macrorregionais do estado. A capital e região metropolitana representam 31,11% da população do Paraná, mas 77,4% dos proponentes da LAB vieram desta região.
Nos gráficos dos relatórios, o mal-estar é evidente. Não são necessários especialistas para entender o que ocorreu de errado. Curitiba aparece em números supervalorizados, como pode ser constatado.
Concentrações e exclusões
Além de outras questões como concentração de premiados em Curitiba, o estudo com dados oficiais obtidos pelo TCE-PR demonstra a concentração de recursos regionalmente, em poucos municípios, e um vazio imenso na maioria das cidades do Paraná.
“Se considerados, além do PROFICE (edições 2014, 2017 e 2019), os valores repassados pela Lei Aldir Blanc (LAB) em 2020 e pelo Programa Paraná Cultural (edições 2019 e 2020), reforçam-se as conclusões. Do montante total proposto nesses instrumentos, 68,58% direcionou-se a proponentes da capital do estado, seguida por Londrina com 7,74% e Maringá com 2%. Assim, esses três centros urbanos absorveram 80% de todos os proponentes do estado ao longo dos anos.” (TCE-PR auditoria, 2021, p.44)
A concentração ocorre em diversos mecanismos e editais, reforçando segundo o TCE-PR as informações dadas pelo relatório “AUDITORIA OPERACIONAL Pacote de Medidas de Apoio e Fortalecimento do Setor Cultural: Achados de auditoria número 4, página 7, TCE-PR, Concentração intraestadual de recursos seguindo o padrão de dispersão econômica do estado”. Resumidamente, este relatório aponta: mais recursos para as cidades mais ricas de forma desproporcional em relação aos municípios mais pobres.
Os gráficos apontam semelhança entre distribuição das verbas da cultura, dispersão econômica, IDH e PIB, demonstrando a repetição das omissões e ausências das políticas públicas, que deveriam visar justamente o contrário (ampliar a distribuição, diversidade e equalização de infraestrutura regional). Os recursos da LAB e demais modalidades de editais reproduzem as mesmas concentrações e contradições existentes. “Nos mapas, no entorno de três grandes polos culturais e econômicos do Paraná, ocorre a concentração observada e que coincidem com os chamados ‘três paranás’, teoria formulada pelo falecido professor Ruy Wachowski, de que o Paraná não teria unidade histórica cultural, tendo três regiões distintas”, afirma Manoel J de Souza.
No entanto, ainda que existam leves concentrações nos três principais polos do estado, em prejuízos às demais cidades, novamente os dados obtidos pelo OCB revelam que existe prejuízo generalizado das 398 outras cidades do estado em favor da capital. Recentemente, Londrina teve cerca de duzentos inscritos de forma seletiva e específica, que foram desqualificados do edital 001/2022 Prêmio Memorial de Vivências, da UNESPAR, com recursos da LAB. Este favorecimento fica evidente, mais uma vez, no caso do edital 007/2022 do PROFICE (Programa Estadual de Fomento e Incentivo à Cultura do Paraná, que é o principal mecanismo estadual de cultura do Paraná), que incluía na cláusula 1.10 “o montante total de recursos mencionado neste edital será distribuído de forma que 50% dos recursos estejam alocados em projetos de proponentes residentes ou sediados fora da capital, e 50% em projetos de proponentes residentes ou sediados na capital”. A “Regra da Capital”, ignora a relação de proporção populacional, posto que Curitiba não representa mais que 30% da população do estado.
Segundo a auditoria do TCE-PR, no caso do edital Profice de 2014, “a cidade que mais recebeu projetos foi Curitiba com 155, seguida por Londrina e Lapa com 42 cada uma. Por outro lado, 55 cidades não receberam nenhum projeto ao longo das 3 edições do programa e outros 74 municípios recepcionaram apenas 1 projeto”. (TCE-PR, 2021, p. 47).
O que amplia a percepção de que essas políticas não efetivam metas das legislações localizadas, de ampliação da distribuição regional, é que no comparativo de 399 municípios, ao menos a metade sempre está de fora na maioria dos editais, segundo análise do OCB.
Em relação à desconcentração estadual, o Tribunal de Contas do Estado do Paraná, em sua auditoria, lembra que a maior lei de incentivo para o setor cultural do Brasil trata deste assunto: “A questão da desconcentração estadual é presente na Lei de Incentivo à Cultura (Lei Rouanet – Lei nº 8.313), datada de 1991. O cerne do achado é destacar que, não obstante a adoção de medidas pretéritas, o cenário de distribuição de recursos da cultura na última década apresenta-se em conformação de estagnação, o que põe em xeque a efetividade das medidas adotadas”. (TCE-PR, 2021, p. 52)
O relatório do TCE-PR complementa, ainda, que “de forma geral, o que se observa é que regiões já bem equipadas financeiramente tendem a receber mais recursos da cultura, o que por sua vez impõe círculo vicioso entre a capacidade de geração de renda e investimento. Desse modo, fica limitada a capacidade de promoção de emprego e renda pela cultura em locais cuja capacidade de geração já era previamente limitada. […] Em suma, as políticas públicas implementadas demonstram-se, ao longo dos anos, ineficazes na redução das desigualdades, conforme gráficos e indicadores apresentados no corpo do achado que evidenciam a estagnação na distribuição de recursos de 2014 até 2020. Reforça-se a existência de perfil de domicílio dos proponentes e de realização de projetos a que se destinam os recursos, sem que as medidas dispostas em edital tenham conseguido promover alterações desse cenário”. (TCE-PR. Relatório de Auditoria. Pacote de medidas de apoio e fortalecimento do setor cultural Secretaria de Estado da Comunicação Social e da Cultura. TCE-PR, 2021, p. 49)
Como forma de diminuir as distâncias entre o órgão de cultura estadual e os municípios do Paraná, consta na auditoria do TCE-PR a informação de que a SECC (Secretaria da Comunicação Social e da Cultura, da qual faz parte a Superintendência-Geral da Cultura do Paraná), respondeu ter feito audiências públicas em 2019. Porém, essas audiências ocorreram em oito cidades do estado, ampliando as distâncias e concentrações. Apesar de alegações de que 149 municípios estavam presentes, se tratavam em grande maioria de funcionários e gestores de cultura que puderam se locomover até os encontros em outras cidades, segundo informações obtidas com conselheiros de cultura e participantes destes encontros.
Apesar da promessa de diálogo regionalizado, foram justamente as cidades pequenas as que mais sofreram com a má distribuição dos recursos da Lei Aldir Blanc, e mesmo onde existem secretarias de cultura, os erros ficam evidentes. Para Cecilia Rabêlo, presidente do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult), isso começa na origem, em problemas regulatórios das políticas culturais.
“A Lei Aldir Blanc traz esse recurso para os estados e municípios. Nunca tinha acontecido dessa forma. (…) Na gestão de cultura, tem falta de estrutura, falta de pessoal, falta de legislação. Isso foi um grande problema na execução da Lei Aldir Blanc. E por que faltou legislação? É porque não há interesse nas assembleias legislativas, câmaras de vereadores e Congresso Nacional para fazer leis sobre repasses de recursos para a cultura”, afirma.
No comparativo entre oferta de recursos distribuídos para premiados, se considerada a distribuição regional, é revelado o agravamento do caso devido à concentração de premiados em poucos CPFs e CNPJs na capital Curitiba, e nas maiores economias do estado, em detrimento dos demais municípios.
No caso, com o comparativo dos recursos do PROFICE e da Lei Aldir Blanc, foi observada uma enorme concentração de premiados na capital Curitiba. Portanto, além dos recursos estarem concentrados geograficamente, a auditoria do TCE-PR, afirmou que se concentram economicamente, se repetindo nos mesmos contemplados nestes e outros editais (o assunto será esmiuçado nas demais reportagens desta série).
O resultado foi exposto no conjunto de denúncias e na imprensa, e posteriormente confirmado pelo TCE-PR, que informou a ocorrência de concentração de premiações na capital Curitiba e nos mesmos premiados. O agravante dessa situação é que existem dados suficientes para afirmação de que esses mesmos proponentes, que vencem os editais estaduais e são de Curitiba em sua grande maioria, já seriam premiados nos editais da Fundação Cultural de Curitiba (FCC, órgão municipal de cultura), fato que o próprio relatório do TCE-PR indica, ao demonstrar nos prêmios da Lei Aldir Blanc duplicidade de premiações municipal/estadual com projetos idênticos dos mesmos proponentes. Porém, a quantidade de concentração de recursos acumulados nos mesmos proponentes entre prêmios dados pela Fundação Cultural de Curitiba e Superintendência-Geral de Cultura do Paraná nos últimos anos não é possível determinar, pois a FCC se recusa em fornecer dados, em vista de protocolos registrados pela sociedade civil e que não foram respondidos. (Estes protocolos podem ser conferidos no drive das apurações)
Essa concentração dos mesmos premiados entre editais estadual e municipal da capital precisa ser quantificado pelos órgãos competentes, a fim de determinar mudanças legais que melhorem a distribuição de recursos da cultura.
O caso do PROFICE: concentração de benefícios e queda de arrecadação
O PROFICE, um programa da SECC custeado com recursos extra orçamentários, com origem na renúncia fiscal e não descrito no PPA, apresenta indicadores de desempenho que demonstram queda de arrecadação:
Conforme exposto, essa concentração regional na capital, não para de aumentar, subindo de 462 projetos em 2014, para 689 em 2019, mesmo com queda da arrecadação, o que amplia o abismo de investimentos entre capital e interior, segundo análise do OCB. A auditoria do TCE-PR ainda afirma que o acompanhamento adotado pelo órgão de cultura é limitado a dados numéricos absolutos, o que dificulta análises e soluções. (TCE-PR, 2021, p.39-40).
O assunto continua no decorrer das próximas reportagens, voltadas aos achados do Tribunal de Contas do Paraná que tratam da falta de fiscalização, premiação de funcionários públicos, bem como de erros de fiscalização e certificação que geraram acúmulo de premiações nos mesmos CPFs/CNPJs, bem como duplicidade de projetos iguais premiados em editais diferentes, além de problemas de gestão e acompanhamento de políticas públicas de cultura.