Convulsões sociais
Com o corte nas políticas sociais praticado pelo governo federal e o ajuste imposto aos governos estaduais e municipais obrigados a cortar salários e previdência dos servidores públicos o conflito está aberto. A insensibilidade do governo sem voto pode levar o País para um período de convulsões sociais
Estamos na primeira quinzena de fevereiro. As ruas estão desertas, as pessoas se refugiam em casa com medo da violência generalizada. As escolas, os postos de saúde, as repartições públicas e os bancos não funcionam. Depois que ônibus foram incendiados, as empresas decidem recolhê-los nas garagens. A cidade fica sem transportes coletivos. Até a ferrovia da Vale suspende seus trens de passageiros.
O atraso no pagamento dos servidores e o congelamento de seus salários levaram as PMs e os bombeiros a permanecer em seus quartéis. É uma greve que deixa o estado sem ter o policiamento nas ruas.
Supermercados e mais de duzentas lojas são saqueados pela população na região metropolitana. No estado, outros cem saques são registrados. O comércio fecha as portas. Mais de 170 veículos são roubados no período.
A insatisfação é geral entre os servidores públicos, pois a orientação do governo federal, imposta ao governo estadual, é reduzir o número de funcionários, congelar salários, promover a elevação da alíquota de contribuição previdenciária e limitar benefícios, progressões e vantagens.
O medo impera. Não é para menos: de 4 a 13 de fevereiro foram assassinadas 144 pessoas, metade desse número concentrada nos municípios de Serra, Vila Velha e Cariacica, na região metropolitana de Vitória. Em alguns casos que se tornaram mais conhecidos, homens mascarados saem de repente de um carro e fuzilam pessoas paradas na rua. A maioria das vítimas tinha de 17 a 22 anos; 67% eram pardos, 18% negros, 15% brancos. Os absurdos índices de violência levantam suspeitas. Soam como retaliação policial pela morte do soldado André dos Santos, de 22 anos, assassinado poucos dias antes no município de Serra numa tentativa de assalto, é também uma tentativa de disseminar o terror na sociedade.
O governador Paulo Hartung, do PMDB, investiga a participação de PMs na queima de ônibus, nos assassinatos praticados por homens encapuzados, no assalto ao Convento da Penha. Há mais de trinta denúncias feitas na Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos de que PMs estão implicados nos assassinatos registrados no período da paralisação. Essas denúncias envolvem a existência de grupos de extermínio, que no Espírito Santo existem de longa data e contam com a participação de PMs. Ao que parece, a PM lança mão do terror para forçar uma negociação com o governo que lhe seja favorável.
O governo reage com força bruta. O Exército e a Força Nacional passam a patrulhar as ruas. Segundo o ministro da Defesa, Raul Jungmann, são empregados no controle da situação nada menos que sete blindados, três helicópteros, 180 veículos e 3.130 homens.
Um acordo com as associações que representam os policiais termina com o movimento, que não consegue o reajuste dos salários (o pior do Brasil, R$ 2.646) e recebe a promessa do governo de que este vai lutar por uma anistia aos integrantes do movimento grevista que foram indiciados pelo crime militar de revolta. Mesmo assim, dos 10 mil PMs que compõem essa força no Espírito Santo, 1.151 são indiciados pelo crime militar de motim e revolta.
A situação no Rio de Janeiro
Os 46 mil PMs do Rio de Janeiro também estão com os salários atrasados; o 13º e as bonificações ainda não foram pagos; as más condições de trabalho geram uma insatisfação que se acumula. De maneira geral, a situação dos servidores públicos não é diferente da dos policiais.
As manifestações das mulheres dos PMs na porta dos quartéis já ocorreram em 27 dos 39 batalhões da PM no estado. Os jornais abafam as notícias, mas até confrontos entre forças policiais já são relatados. Os protestos, porém, envolvem mais servidores públicos: os servidores da educação também estão com salários atrasados, e as universidades públicas estão paralisando suas atividades. A Uerj está fechada. Seus funcionários não recebem salários há meses, e as aulas não recomeçaram por falta de condições de funcionamento da universidade. Há protestos também contra a privatização da Companhia Estadual de Águas e Esgoto.
Para enfrentar a situação, o governo estadual contraria a orientação do governo federal e promete um aumento de 10,22%, que era para ser praticado em 2014, sem o pagamento dos atrasados. O governo federal manda 9 mil homens do Exército para patrulhar as ruas do Rio de Janeiro, mas a PM, assim mesmo, ameaça com a paralisação no período do Carnaval. A situação continua crítica, com desdobramentos imprevisíveis.
A situação em Curitiba
É importante lembrar que esses mesmos ajustes foram praticados pelo governador do Paraná, Beto Richa (PSDB), e levaram 100 mil professores do ensino público a marchar pelas ruas de Curitiba e ocupar a Assembleia Legislativa, em 2015, para buscar impedir a apresentação de um projeto de lei que respaldava um corte profundo que, apenas na educação, reduzia em R$ 400 milhões seu orçamento anual.
Richa seguiu à risca o receituário federal e deixou 250 mil servidores estaduais sem reajuste de salário, cortou verbas para as políticas sociais e as universidades estaduais, atrasou o pagamento dos fornecedores, entre outros atos de arbitrariedade.
O resultado dessas medidas foi que professores do ensino público, professores universitários, servidores da saúde e do Tribunal de Contas, agentes penitenciários e polícia civil se colocaram contra as medidas do governo estadual.
A resposta foi novamente a repressão e a mão forte do governo. Três mil policiais reprimiram violentamente uma manifestação dos professores, deixando duzentas pessoas feridas. E, em dezembro de 2015, Richa demitiu 30 mil professores do ensino público (um terço do professorado) que trabalhavam com contratos precários. Foi a resposta do governo à greve e aos protestos.
A esse clima de insatisfação somou-se a ocupação de mais de mil escolas por seus estudantes, em protesto contra a reforma do ensino imposta de cima para baixo, sem consulta aos estudantes, aos professores e à sociedade de maneira geral. Também aí não houve negociação: os estudantes foram expulsos à força das escolas, sem nenhum tipo de negociação. Os mandados de reintegração de posse dados pela justiça ampararam a violência policial.
Insatisfação geral
A insatisfação é geral e os protestos se espalham pelo Brasil. No Pará há protestos da PM em Belém, Altamira e Paraopeba, nos mesmos moldes dos que ocorrem no Rio de Janeiro e no Espírito Santo. A principal reivindicação é a equiparação do salário-base do policial com o salário mínimo.
O exemplo do Espírito Santo propaga a mobilização para outros estados. Na Paraíba e no Rio Grande do Norte já se faz presente a mobilização das mulheres dos PMs contra o atraso nos salários, as más condições de trabalho e o atraso no pagamento do auxílio-fardamento; elas pedem também reajuste nos salários e melhor atendimento em saúde. A PM de Minas Gerais e Pernambuco demonstra sua insatisfação e sinaliza com greve durante o Carnaval. Alguns governos estaduais, como o de São Paulo, se antecipam e buscam uma negociação com os PMs. Em manifestações públicas, esse movimento paredista ameaça uma paralisação nacional da PM.
Os estados que melhor cumpriram as ordens do governo central e realizaram seus ajustes no primeiro momento foram o Paraná, o Espírito Santo e Santa Catarina. Em dois deles se assistem a convulsões sociais e grandes movimentos de defesa de direitos perante os efeitos perversos desse ajuste que sacrifica os servidores públicos, além de encolher o cobertor de proteção social para os mais pobres.
A lógica perversa do ajuste
A situação financeira dos governos municipais e estaduais é crítica, sendo a do Rio Grande do Sul e a do Rio de Janeiro as mais graves no momento.
Esses governos aumentaram suas despesas durante o período das vacas gordas (2009-2014) tanto realizando investimentos quanto aumentando a folha de salários. E foram pegos pela queda dos preços das commodities, as isenções de impostos promovidas pelo governo Dilma e a recessão imposta pelo governo golpista, que reduziram também o recolhimento de impostos. A perda de receita decorrente das isenções tributárias chega a 25% da receita total dos impostos.
A queda na receita de estados e municípios é significativa e é preciso fazer algo para equilibrar novamente os orçamentos. No pagamento dos juros da dívida pública não se mexe. É no orçamento público das políticas sociais que incidem os cortes.
Se considerarmos o orçamento público federal de 2015, veremos que 47% dele foi destinado ao pagamento de juros e a amortizações da dívida pública, a forma como o rentismo se apropria da receita dos impostos. Para a educação, em 2014, foram destinados 3,73%; para a saúde, 3,98%; para a cultura 0,04%.
O ajuste fiscal de 2015 cortou R$ 70 bilhões das áreas sociais. A estratégia é transferir o custo do ajuste das contas públicas para o funcionalismo, ainda que o peso dos servidores públicos no orçamento seja de apenas 4% do PIB, como sinaliza Renato Rincon, primeiro vice-presidente do Sindicato dos Policiais Civis do Distrito Federal.
O governo federal amplia a sangria que impõe a estados e municípios para garantir recursos para pagar o serviço da dívida pública. Somente no primeiro semestre de 2016, os estados perderam 11% de sua receita, se comparado a 2015. A falta de recursos chamou também a atenção para os altos juros pagos pelos estados ao governo federal, para a rolagem e o pagamento da dívida pública.
As pressões do governo federal sobre os demais entes da federação se materializam na redução dos recursos para as políticas sociais e na espoliação dos servidores públicos. Entre as medidas que atacam os direitos dos servidores estão o congelamento dos salários; o aumento da alíquota previdenciária dos servidores de 11% para 14%; a supressão de biênios, quinquênios, progressão na carreira; a reforma do regime jurídico do funcionalismo com sua flexibilização (terceirização) e precarização; o cancelamento de concursos e a proibição de convocação dos já aprovados; os programas de demissão voluntária; a privatização das empresas públicas.
O Plano de Auxílio aos estados e Distrito Federal só vem se os governos estaduais entregarem ao governo federal sua participação acionária em empresas públicas para a privatização. A precarização dos serviços públicos abre espaço para sua privatização.
O risco das convulsões sociais
A concentração de renda e propriedade está na origem da desigualdade na sociedade brasileira e é o pano de fundo de toda discussão sobre políticas sociais.
Se é verdade que a crise econômica mundial e os erros do governo Dilma provocaram a necessidade de um ajuste na economia, o governo Temer optou por apresentar a conta do ajuste apenas para os mais pobres dos assalariados. Não se tocou em nenhum dos privilégios das classes dominantes. Nem mesmo aqueles privilégios que transbordam a legalidade, como a sonegação fiscal, que corresponde a um quarto do orçamento público. Ou a dívida ativa, que se fosse cobrada das grandes empresas muito da crise atual teria sido sanada. E não estamos falando de tributações progressivas que incidam sobre o grande capital. Aqui, os lucros das empresas não são tributados; nos Estados Unidos, cobram-se 35%.
Apoiados na doutrina do Estado mínimo, os governantes atuais sacrificam os serviços públicos, especialmente os servidores, desejando a privatização de tudo e a precarização das relações de trabalho.
As mudanças constitucionais, como o congelamento dos gastos sociais por vinte anos, aprovado por um Congresso, em dezembro de 2016, que tem 70% de seus parlamentares financiados na campanha eleitoral de 2014 por dez grandes grupos econômicos, dão o sentido estratégico do ajuste. São uma declaração aberta de guerra aos direitos dos brasileiros. Não é por outra razão que professores e policiais militares, entre outros, estão dispostos a desafiar a ordem e rebelar-se.
A questão dos policiais militares tem um agravante. Sua estrutura e autonomia remontam à ditadura e não foram tocadas até hoje, dando margem à proteção de grupos de extermínio e à licença para matar, já que os tribunais militares invariavelmente libertam os policiais incriminados. Os defensores da democracia propõem o fim da PM. Existe até uma PEC para isso.
O impressionante autismo do governo federal, isolado em Brasília, desconhecendo a situação do povo brasileiro, voltado a atender apenas aos interesses do grande capital, não considera sequer a necessidade de políticas que ampliem sua governabilidade pela aceitação popular. Nem mesmo seu índice de aceitação de 10,3% pela população brasileira abala sua ideologia em defesa do neoliberalismo e suas políticas de aumento da pobreza e da exclusão social. As reformas da Previdência e trabalhista irão acentuar a crise social, e o que temos pela frente são novas convulsões sociais, mais repressão e, provavelmente, um governo em crise.
Silvio Caccia Bava, diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil
{Le Monde Diplomatique Brasil – edição 116 – março de 2017}