Coronelismo, clientelismo e a política de direita
Conhecido mecanismo de controle do eleitorado, o voto de clientela, via barganha em torno de vantagens materiais, é consequência inevitável do capitalismo e caracteriza-se hoje pelo clientelismo estatal, onde cabos eleitorais distribuem favores ligados a instituições governamentais
A perpetuação de uma determinada ordem social requer um modo específico de aparelhamento institucional. Nesse sentido, podemos falar numa democracia capitalista, ou seja, um conjunto de procedimentos políticos – sistema do voto, competição partidária, representação parlamentar – regido pelo princípio da soberania popular, o qual contribui para a manutenção do sistema capitalista.1
Os limites de abrangência (voto feminino, de analfabetos, racial etc.) da democracia capitalista diferem segundo os estágios do conflito de classes. Em geral, a classe dominante procura estreitar o raio de inclusão das classes subalternas no processo político, enquanto estas lutam para ampliar a sua participação.2
A competição partidária peculiar à democracia capitalista, limitada quanto ao seu conteúdo e à sua abrangência, sofre novas restrições no plano do seu funcionamento, pois, embora esteja orientada pelos princípios de universalidade, legalidade e liberdade, na prática tendem a prevalecer vários mecanismos particularísticos de controle do eleitorado, como o coronelismo e o clientelismo.
O voto coronelício define-se pela manifestação de fidelidade pessoaldo eleitor a um chefe político – o coronel.3 Esse tipo de legitimidade do ato eleitoral, como uma obrigação moral, se concretiza fundamentalmente na doação pura e simples do voto ao candidato do coronel. A condição socioeconômica da prática coronelista é a existência, no campo, de uma estrutura pré-capitalista. A forma da relação política encontra-se aí implícita: “a dependência pessoal, cujo fundamento é a cessão da posse da terra, exprime-se ideologicamente como obrigação subjetiva de lealdade para com o senhor da terra, ou, num nível mais diretamente político, como fidelidade ao chefe político local”.4
O voto de clientela, por sua vez, define-se como uma relação de barganha em torno de vantagens materiais entre o eleitor e o agente político, denominado cabo eleitoral. Este é uma espécie de líder local que cuida dos interesses de seus representados, principalmente junto às “autoridades públicas”, fazendo as vezes de um “advogado administrativo” da sua comunidade. Controlando uma centena ou dezena de votos, o cabo eleitoral os vende ao “político de clientela”.5
A condição socioeconômica para a proliferação do voto de clientela é a predominância das relações de produção capitalista, basicamente a conversão da força de trabalho, através do assalariamento, em mercadoria, o que pressupõe a existência do trabalhador livre, isto é, despojado dos meios de subsistência, em particular do vínculo à terra. Trata-se do trabalhador que abandona a condição de dependência pessoal frente a um dono de terras para se submeter àdependência impessoal em relação às coisas (o mercado).
A prática da compra e venda do voto, quando confrontada com uma visão da democracia como forma de governo pautada em princípios universalistas é considerada “corrupção eleitoral”. No entanto, no sistema capitalista, “tudo o que tem equivalência econômica tende a transformar-se em mercadoria (…). Os cargos eletivos são cada vez mais suscetíveis de proporcionar rendimento econômico. Isso faz que, de modo crescente, o voto se torne mercadoria. O processo corruptor é consequência inevitável do próprio capitalismo”.6
Transformação política
No Brasil, após o golpe civil-militar de 1964, a passagem do coronelismo para o clientelismo correspondeu, fundamentalmente, às transformações da estrutura agrária, as quais dizem respeito à substituição da grande propriedade pré-capitalista, absorvedora de um enorme contingente de trabalhadores dependentes, pelas formas de propriedade capitalista, assentadas em relações de trabalho mercantis. A burocracia estatal, através dos instrumentos de política econômica e dos projetos especiais governamentais, converteu-se num dos principais agentes desencadeadores do desenvolvimento capitalista no campo.
Vários elementos mostraram a transformação política.7 O primeiro foi a mudança no sentido de a maioria dos eleitores ter passado do sistema do voto de cabresto para o de voto livre. O fenômeno da dissociação do voto confirma essa constatação. Nas últimas eleições, pôde-se observar que os eleitores tendem a desvincular o voto no candidato a prefeito das opções partidárias desse candidato em outros níveis da eleição.
Com efeito, os candidatos do PT, partido de esquerda, aos cargos majoritários federais têm recebido uma votação bem acima da candidatura a prefeito. Inversamente, os partidos de direita têm tido uma votação mais elevada para o candidato municipal. Essa prática de mistura das opções partidárias torna-se possível em decorrência do desencabrestamento do voto, uma vez que a fidelidade ao coronel implicava a vinculação das escolhas nos vários níveis da eleição.
O voto livre se traduz, na maioria dos casos, no voto de barganha, que assume uma forma mais sofisticada por meio do associativismo. A tendência é a de haver uma associação em toda localidade rural ou urbana, normalmente criada com o apoio da prefeitura. A maioria dos líderes comunitários dá vida ao cabo eleitoral estatal, especializado não mais em prestar serviços individuais, mas, sim, em intermediar benefícios governamentais de consumo coletivo, sob a forma de programas assistenciais.
O segundo elemento se refere ao perfil do quadro partidário nas últimas décadas. As eleições municipais foram disputadas com mais competitividade, tendo crescido a votação dos pequenos partidos, bem como o espectro político ampliou-se, passando da situação dicotômica governo/oposição, típica do coronelismo, para o campo tripartido oposição de esquerda/governo/oposição de direita, mais em sintonia com o pressuposto da liberdade eleitoral.
O terceiro indicador se relaciona ao quadro das políticas sociais. Um fator de reforço à responsabilidade social das prefeituras – que vem sofrendo forte pressão em torno das demandas por equipamentos sociais – foi a mudança constitucional de 1988. A nova Carta propiciou uma injeção de recursos aos municípios: mais ricas, as prefeituras têm uma lista de obras a exibir e a barganhar votos. A Constituição imprimiu também um teor descentralizante às políticas sociais. As prefeituras devem não só aumentar a proporção em gastos sociais, mas também alterar a gestão das políticas, propiciando uma abertura de espaços à participação popular, que, sob a aparência de controlar o Estado, pode converter-se em mecanismo de controle das próprias classes populares.
O quarto elemento é a acentuação da modernização das administrações municipais, incorporando-se critérios de eficiência técnica, necessários a uma gestão que enfrenta um quadro mais complexo de demandas. A contraface da modernização administrativa foi o fim do controle monopolista do aparelho municipal do Estado pela propriedade agrária, estabelecendo-se, a partir de então, a distinção ideológica entre as esferas pública e privada.
Um último dado a ser apontado vincula-se ao crescimento dos partidos de esquerda. Somente em um quadro de ascensão da política clientelista torna-se plausível a crítica ao favoritismo político, abrindo espaço para a proposta dos partidos de esquerda de gestão honesta (isto é, universalizante) da coisa “pública”. No domínio coronelício, a crítica ao favoritismo era sem eficácia, pois ali vigorava o sentimento de que os recursos estatais eram propriedade da facção governante.
Esse conjunto de mudanças políticas se sintetiza no fato de que a maioria das prefeituras passou ao domínio de cabos eleitorais, identificados com a política comunitária. Buscamos caracterizar essa relação entre o Estado capitalista e as classes populares, na fase da modernização agrária, através do conceito de clientelismo estatal: os cabos eleitorais distribuem recursos e favores ligados às instituições governamentais em troca do apoio político. Essa é uma das faces modernas da política no Brasil atual.
Francisco Pereira de Farias é professor na UFPI e doutorando em Ciência Política na UNICAMP.
1 Cf. Décio Saes, Democracia. Ed. Ática, São Paulo, 1987.
2 Cf. Goran Therborn, “The rule of capital and the rise of democracy”, in New left review, 103, 1977.
3 Cf. Victor N. Leal, Coronelismo, enxada e voto. Alfa-Omega, São Paulo, 5a. ed., 1986.
4 D. Saes, Estado e democracia: ensaios teóricos. IFCH-Unicamp, Campinas, 1994, p. 90.
5 Paul Singer, “A política das classes dominantes”, in Octávio Ianni (org.); Política e revolução social no Brasil. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1965, p. 77.
6 P. Singer, op. cit., p. 80.
7 Cf. Francisco P. de Farias, Do coronelismo ao clientelismo: a transição política capitalista no Piauí (1982-1996). Dissertação de mestrado, Unicamp, 1999.