Corrupção e a “bopização” brasileira
Ao contrário do que sugere o clima atual, não há oposição alguma entre o fenômeno da corrupção e a tara policialesca generalizada. Em retrospectiva, seria possível discernir certa tendência que remonta ao Congresso eleito no ano passado, às jornadas de 2013 e mesmo à recepção de Tropa de elite (2007/2010)?Fábio Salem Daie
Que horas são?
Gostaríamos de propor uma hipótese: em 2015, quanto mais prementes forem os reclamos legítimos de setores da sociedade brasileira, mais fortemente o tema da corrupção será explorado por políticos e pela mídia corporativa. Fica a pergunta: quanto esse discurso denuncista, atualmente generalizado, fala à verdade do tempo? Quanto a corrupção, por si, tem a dizer sobre o sentido de nossa trajetória contemporânea?
No início de 2014, o historiador inglês Perry Anderson publicou um texto intitulado “O desastre italiano”,1 em que analisou a situação da corrupção no bloco europeu, com ênfase na Itália e na trajetória do empresário (e hoje político) Silvio Berlusconi. Que a União Europeia nada em rios lamacentos de crimes do colarinho branco já há alguns anos, isso não é novidade. O forte da análise de Anderson é a elucidação de quanto, nas chamadas velhas democracias, pôde se formar uma elite político-financeira que se retroalimenta dos jogos de poder, cede os anéis para não perder os dedos, dissimula e negligencia sem pejos to get the job done.
Lendo nas entrelinhas, Anderson atribui as causas da sujeira atual a três fontes principais: a) o esvaziamento de ferramentas de efetiva participação popular na política, bem como na fiscalização de leis aprovadas e de representantes eleitos; b) certa cultura privatista, instalada na política a reboque das reformas neoliberais, que substituiu valores como seguridade social e direitos civis (legados do Welfare State) por valores de mercado (do consumo à exclusividade), inclusive entre servidores públicos; c) o impacto socioeconômico das desregulamentações ocorridas principalmente no setor financeiro, que são resultado, entre outras coisas, da chamada “porta-giratória” existente entre as mesas diretoras dos grandes bancos e os cargos estratégicos nas instituições financeiras de muitos países.
Contudo, parece que, no Brasil, o tipo de leitura de Perry Anderson – que visa articular corrupção e opções históricas da Economia Política – está completamente ausente. E isso a despeito de depoimentos de Augusto Ribeiro de Mendonça,2 dono da Setal Engenharia, e de Ricardo Semler,3 que apontam certa inflexão no caráter da corrupção a partir da onda neoliberal ocorrida no país na década de 1990. Em que pesem tais exemplos, a ênfase no denuncismo da corrupção – que opta por agravos personalistas – continua.
Talvez fosse válido lembrar que algo desse discurso já estava presente nas jornadas de junho de 2013. Recentemente, à causa do Congresso Nacional conservador eleito em 2014,4 muito se falou a respeito daquelas jornadas. Alguns viram aí uma grande contradição entre as manifestações e o perfil dos representantes escolhidos pelo povo.5 Outros observadores usaram conceitos específicos para explicar o que houve: um backlash,6 termo político para definir reação violenta derivada de um fato anterior. As interpretações foram muitas. A essas, quem sabe poderíamos acrescentar uma que nos conecte com o denuncismo da corrupção, onipresente no início de 2015.
Para começar, quando o assunto são os protestos de 2013, é preciso traçar uma linha fundamental, esquecida por alguns comentadores: não houve apenas um junho. Como todo movimento popular de monta, esse também foi complexo e admite, se quisermos, muitos momentos. Ficaremos, por agora, com dois.
O “primeiro junho” (cuja largada teve início meses antes) foi marcado por alguns milhares de manifestantes, unidos ao Movimento Passe Livre (MPL), contra o aumento da tarifa de ônibus em diversas capitais. Com essa pauta central – que levou à derrota política de administrações municipais e estaduais – coexistiam outras duas: o direito à cidade na defesa do transporte gratuito e a defesa do própriodireito de manifestação (alimentada pela truculenta reação, física e ideológica). Como vemos, são pautas pontuais e intrinsecamente conectadas.
Dito isso, muitos dos primeiros manifestantes agredidos pela PM nada tinham a ver com os depois tão afamados Black Blocs, e sua denúncia da repressão ganhou repercussão com as balas de borracha e o gás, também reservados a gente da imprensa. Na televisão, o comentarista da Rede Globo, Arnaldo Jabor, vociferava pedidos de criminalização dos manifestantes, defendendo a truculência policial em clichês antológicos (“justamente, a causa deve ser a ausência de causa”). Vale notar que Jabor propunha – como pauta para tais “protestos sem causa” – a luta contra o Projeto de Emenda Constitucional n. 37 (PEC n. 37), que teria a função de limitar as investigações do Ministério Público Federal. Já existia ali, portanto, o tema latente da corrupção.
Mais integrado e menos apocalíptico, o departamento de jornalismo da Globo punha em prática engenho mais sutil: veiculava cenas dos primeiros cuidados recebidos por policiais feridos nos confrontos, bem como de pacatos moradores intimidados pela turbamulta. Corria a primeira quinzena do mês. Os grandes veículos de comunicação se uniam na condenação geral do movimento. Em 13 de junho, o título do editorial do jornal O Estado de S. Paulo dava o tom da bronca: “Chegou a hora do basta!”. Citando o “vandalismo” dos “baderneiros”, pedia o fim da moderação (sic) na política de segurança pública e a profusão dos castigos.
Tudo deveria correr bem, segundo o script usual da república das bananas, não fosse um contratempo: as manifestações cresceram. É neste ponto que os fatos desafiam a leitura. Caso elas tivessem crescido no sentido do fortalecimento da pauta única – transporte público e direito à cidade –, seria talvez mais fácil reclamar seu triunfo sobre o conservadorismo. Como sabemos, não foi isso o que ocorreu. Os últimos dias de junho registraram um aumento exponencial da participação popular em todo o país, paralelo a uma diversificação das reivindicações. Foram espontâneas? Eis um embrulho difícil de ser denudado. Contudo, a título de sugestão, recobremos certa sequência do chamado “segundo junho”.
Na quarta-feira, 19, após seis manifestações, o governador do estado de São Paulo e o prefeito da capital vieram a público revogar o aumento das tarifas. O mesmo sucedeu no Rio, onde o prefeito, Eduardo Paes, anunciou redução de R$ 2,95 para R$ 2,75. No fim da semana – passados quase quinze dias do início dos protestos –, a capa da revista Vejafez a primeira menção às manifestações: “A Revolta dos Jovens: depois do preço das passagens, a vez da corrupção e da criminalidade?”. A proposta de Jabor fora ouvida e retornava, ao que tudo indicava, amplificada. Na página 84, lia-se: “Os jovens já marcharam pela paz, democracia e liberdade. Os de agora vão às ruas para baixar o preço das passagens. Mas isso é tudo?”. Depois da revogação, a Rede Globo seguiu a mesma trilha e começou a divulgar “novas causas” surgidas nas ruas. No dia 20 de junho, o Jornal da Globolevou ao ar reportagem em que destacava o clima nacionalista e cujo remate foi: “Enquanto marchavam, os manifestantes deixavam claro que o protesto era acima de tudo pelo Brasil”.
Na internet pipocavam ideias de pautas paralelas. O número de manifestantes alcançou a cifra dos milhões, e o rechaço à corrupção assumiu a linha de frente. Em 22 de junho, uma passeata contra a PEC n. 37 saiu do vão do Museu de Arte de São Paulo (Masp) rumo à Praça da Sé. Nas ruas, proliferaram cartazes contra o senador Renan Calheiros (PMDB) e políticos envolvidos em escândalos. O fim do desvio de dinheiro público e da impunidade aos membros da elite política se tornou ponto crítico. Enquanto isso, aumentava a violência nas passeatas contra pessoas identificadas com partidos e sindicatos, o que levou o MPL a publicar nota condenando tais agressões.7 Ou seja, ao mesmo tempo que houve diversificação dos reclamos populares, ocorreu uma ascensão da postura jurídico-policialesca (de tom ufanista) em detrimento de distinções ou filiações políticas.
Por causa da variedade das palavras de ordem alçadas, comentadores chegaram a atribuir (e seguem atribuindo) a esse período pautas como a democratização do sistema político ou mudanças profundas nas instituições da República. Parece um equívoco. Se é correta nossa leitura, esses supostos reclamos são uma construção ex post facto de setores da esquerda e se vinculam na realidade aos “cinco pactos” divulgados pela presidenta Dilma no dia 24 de junho. Entre esses pactos, e não nas ruas, constava a proposta da reforma política.
O “segundo junho” não expressou reclamo algum por reforma política, eleitoral ou tributária, embora isso não as redima como desafios urgentes. Seu significado se aproxima mais da transformação de luta defensiva contra o aumento da tarifa de ônibus (na primeira fase das manifestações) para uma guinada conservadora, perfeitamente compatível com a composição do Congresso Nacional eleito em 2014. Nesse sentido, ao contrário do que viram analistas, não houve contradição ou backlash algum. Mesmo porque seria preciso levar em consideração as distorções proporcionadas pelo atual sistema de coligações partidárias durante o período eleitoral; sistema que, como se sabe, beneficia muitos candidatos com votação inexpressiva.
Tais distorções – mencionemos também as que facultam o patrocínio privado de campanhas políticas – constituem a real contradição existente entre as manifestações de 2013 e as eleições de 2014. Tanto é assim que, na velha tradição da modernização conservadora, uma tímida tentativa de atenuá-las segue em disputa no atual governo (vide a comissão especial liderada no início deste ano por DEM e PMDB para realizar a reforma política sem Constituinte exclusiva, proposta original do PT).
O “segundo junho” deixava o âmbito da ação política e virtualmente ilegal da primeira fase para adentrar o terreno controlado da legalidade e pela legalidade. Expressão disso é a distinção, então difundida largamente, entre “manifestantes” e “vândalos”, entre “defensores do Brasil” e “baderneiros”. Tendo como sintoma a fixação na corrupção, o “segundo junho” de 2013 já dizia algo sobre 2015.
A “bopização” brasileira
O denuncismo da corrupção detém especificidade: é modalidade de discurso aparentemente política e progressista, mas se abriga, no fundo, no lado apolítico e no conservadorismo. Sua força está em passar-se por uma coisa sendo outra. E, tal qual os cartuns de Mickey Mouse da década de 1930 – em que Walter Benjamin viu recompensa às retinas fatigadas de perscrutar uma realidade oblíqua –, o denuncismo também nos oferece uma sedutora recompensa, desenredando as tortuosas conexões da guerra ideológica e dos conflitos de classe para apresentar um problema único, supostamente simples, que exclui as tensões sociais. Antes o contrário: une as classes ao redor de um inimigo interno comum, assim como a Guerra das Malvinas fez, nos anos 1980, no contexto da ditadura argentina.
Sua intensidade atual deveria nos desafiar a reler o passado. Em termos socioeconômicos, falou-se no encerramento de um ciclo encabeçado pelo PT. Em termos culturais, é possível que um dos sentidos profundos da guinada conservadora recente seja o processo de “bopização” (da sigla Bope) que vem ocorrendo desde, pelo menos, a consolidação neoliberal nos anos 1990. Para tentar diagnosticar esse efeito, falemos um pouco do sucesso de Tropa de elite – Missão dada é missão cumprida (2007) e Tropa de elite – O inimigo agora é outro (2010), do diretor José Padilha.
Centradas na ação do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) do Rio de Janeiro, as duas produções receberam grande atenção, e a primeira chegou a ser distinguida com o Urso de Ouro do Festival de Berlim, em 2008. Capitão Nascimento (personagem de Wagner Moura) virou capa da revista Veja como “o primeiro super-herói brasileiro”, alcunhado pela publicação de “o incorruptível”.
A eficiência dos filmes tem muito a ver com a dualidade insuspeita do discurso conservador que se passa por progressista, vinculando-se ao processo de elaboração ficcional. O título de estreia, em 2007, concentra-se na construção idealizada do destacamento do Bope e de seu líder. As simplificações – à la Mickey Mouse – são inúmeras: “Polícias regulares estão simplesmente no caminho, assistentes sociais são irremediavelmente ineficazes e ingênuos, e jovens ricos maconheiros são tão maus quanto traficantes”.8 A lógica do primeiro Tropa de elite poderia ser resumida assim: ou você tem uma caveira bordada no peito, ou você é traficante entocado no alto do morro. Nenhum dos dois? “Não vai subir ninguém.”
Liberando todo mundo da solução do problema da violência – porque seu entendimento como questão social foi, juntamente com os intelectuais de esquerda, ridicularizado –, e liberado ele mesmo pela reputação adquirida no filme de estreia, capitão Nascimento está pronto para alçar voos na continuação (2010). Lotado na Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, agora ele se empenha em combater “o sistema” desde a cúpula. “Se o Bope tratasse político corrupto como trata traficante, o Brasil seria um país melhor.” A frase é perturbadora. Aproximando a natureza dos indivíduos e dos delitos (no caso, políticos corruptos e traficantes), a corrupção se torna nãoum grave sintoma de degradação da República, mas outro crime ordinário. Como tal, demanda, segundo Tropa de elite, ação policial ostensiva (investigação, julgamento, pena), dispensando qualquer exigência de repensar a democracia e seus dispositivos de participação.
A distorção não para aí. Ao pintar a corrupção como crime comum, perde-se de vista sua especificidade – ela não pode ser medida como se medem, por exemplo, furtos e latrocínios – e, por consequência, perde-se também o conhecimento das razões que a retiraram dos porões da sociedade. Menoscabada como questão social, em Tropa de elite não resta interpretação possível à corrupção senão como praga endêmica contra a qual se batem os cavaleiros templários do culto da caveira. O resultado é a decretação da falência do Estado, da própria política e, consequentemente, a legitimação da violência. De qual violência?
Por certo não aquela do monopólio legal estatal, mas outra, realizada por seus agentes especiais para além (e mesmo contra) qualquer direito assegurado. Só isso já seria o suficiente para que o frenesi e a larga aceitação da figura do capitão Nascimento acendessem, à época, um sinal de alerta na torre. Ignorado o primeiro alarme, o segundo emergiu de forma trágica: não há abismo entre as operações de busca e destruição do capitão, no filme, e os atos de justiçamento empreendidos por civis em anos recentes. Em todos eles, na berlinda estava a égide do Estado. Desacreditada, não em favor de um novo projeto coletivo, e sim do isolamento do indivíduo – que procede segundo seus próprios mandamentos –, reaparecia na vida real a contraparte do fenômeno da corrupção elidida em Tropa de elite: a desagregação social. Parte desse problema da desagregação é a acomodação, entre as classes baixas, da ideologia da classe dominante que vê o banditismo como mero caso de polícia.
A relação corrupção e polícia torna-se ainda mais clara à medida que mergulhamos no fosso da brutalidade. Como notou o teórico inglês Raymond Williams, a partir da década de 1970 “há um fluxo […] de uma forma nova e perigosa de legitimação da violência pelas forças da ordem: o detetive racionalmente penetrante tem sido com frequência substituído, nos centros dominantes de produção dramática em massa, pelo policial oficial rígido, indistinguível física e etnicamente dos que ele persegue e pune”.9 Ou seja, a fiar no que nos dizem Anderson e Williams, o agravamento do fenômeno da corrupção e o aparecimento de figuras brutais como o capitão Nascimento são contemporâneos da ascensão neoliberal e estão, ao contrário do que deseja fazer crer Tropa de elite, não em oposição, mas em contiguidade.
No Brasil, a ruína do “detetive racionalmente penetrante”, cujas feições aparecem já no astuto major Vidigal – personagem de Manuel Antônio de Almeida em Memórias de um sargento de milícias (1852/1853) –, é também, por sua vez, a ruína de outra figura cara à cultura nacional: o malandro. Desbancando o detetive, o agente brutal da ordem depara não mais com os desvios do ladino popular, mas com a transgressão “espontânea” do delinquente. A diferença é de âmbito ideológico. Enquanto o malandro impunha à norma um tom satírico, derrisório, fugindo “às esferas sancionadas pela burguesia”,10 o delinquente – pensemos em Laranja mecânica (1971), de Stanley Kubrick – é a objetivação dessa ideologia em sinal negativo. Diríamos: como personagem, a malemolência do malandro expõe o descompasso tão nosso entre o puritanismo da lei e os favorecimentos inerentes à dinâmica social; por sua vez, o delinquente reitera a lei como imagem complementar, só aparentemente oposta e, no fundo, necessária. Portanto, também não há em Tropa de elite alternativa ao ministério da ordem, e, se o malfeitor escapa às garras da morte, não escapa às garras da ideologia de seu perquisidor.
Perdido o malandro, perdeu-se também a contraditória simpatiaque existia entre ele e a sociedade dita “ordeira”. Para o que nos interessa, a perversão do cidadão comum tornado justiceiroé o ponto final desse itinerário de metamorfoses. Vemos outra vez como Tropa de eliteparece a expressão mais atual de um aspecto que remonta ao século XIX e que depois testemunhou a interiorização da práxis policialesca.
No ensaio “A verdade da repressão”, Antonio Candido se preocupa em mostrar como grandes escritores perceberam a instituição policial na sociedade moderna. A partir de Balzac, descobrimos como essa instituição cumpriu “seu grande papel no mundo burguês e constitucional que então se abria: disfarçar o arbítrio da vontade dos dirigentes por meio da simulação da legalidade”. Seu método de ação mais comum, então, era bifurcar-se em “organização dupla”, com uma parte visível e outra invisível. Esta última seria formada por um “exército impressentido de espiões e alcaguetes”, cidadãos comuns recrutados pelas forças da lei. Para tanto, segundo Candido, “a sociedade suscita milhares de indivíduos de alma convenientemente deformada, […] puxa para fora […] a brutalidade, a privação, a frustração, a torpeza, a tara – e os remete à função repressora”. Balzac também teria visto, por meio de seu personagem Vautrin, marginal tornado chefe de polícia, que o transgressor pode não se distinguir, em determinado momento, do repressor.
Interessante notar nessa leitura de Candido o desaparecimento, dos romances de Balzac para Tropa de elite, de duas informações: 1) a polícia (falamos sempre do capitão Nascimento e do Bope) como instrumento “da vontade dos dirigentes” no interior de uma luta de classes; 2) a oposição entre transgressor e repressor. No filme, o conflito de classes cede lugar a uma associação entre polícia e justiça, percebida esta na chave de “bandido bom é bandido morto”. Tal associação, para regressar a Candido, surgirá excelente no universo de um escritor posterior a Balzac: Franz Kafka. No início do século XX, o tcheco já teria visto “a polícia como algo inseparável da justiça, e esta assumindo cada vez mais um aspecto de polícia”. Por sua vez, a oposição transgressor vs. repressor se transmuta com a supressão da transgressão. Como vimos, o discurso suspeito da falência da política e do Estado legitima a violência do batalhão, deixando-lhe apenas a face repressora.
O que resiste com ênfase é justamente a perversão do cidadão à função repressora, ao justiceiro. À ascensão da figura brutal do capitão Nascimento em detrimento do “detetive racionalmente penetrante” (segundo Raymond Williams) equivale, de maneira coerente, a derrocada do “exército impressentido de espiões e alcaguetes” (como escreveu Candido) em favor do exército pressentido de executores, prontos a ministrar a justiça com as próprias mãos.
À sombra de Robespierre
Promovidos a cães de guarda no melhor espírito policialesco, estamos convencidos de que o inimigo público número um da República tem por nome “corrupção”. Política e polícia se fundem em declarações recentes do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, que sentenciou: “Não nos enganemos: vivemos em um mundo injusto. O Brasil […] precisa livrar-se da máquina corrupta”.11 Como dissemos, quanto mais prementes forem as reivindicações de setores da sociedade brasileira, mais forte o denuncismo da corrupção circulará nos meios políticos e midiáticos.
Tropa de elite, antecipando-se ao “segundo junho” de 2013, valeu-se desse tema para expor o que havia de mais pobre no país: uma visão de futuro segundo a qual a resolução da crise não encontra saída em perspectiva político-social, e sim na tara justiceira, que clama pelo endurecimento das penas e pela profusão dos castigos. A “bopização”brasileira separa-nos de uma visão apurada do presente. Qual, então, é a finalidade desse discurso? A dimensão que a prática diária do denuncismo ganhou na estratégia da maioria dos partidos não aponta para outra coisa senão uma temerosa ausência de qualquer projeto nacional, um vazio de propostas políticas, com pautas concretas, que a sequência de escândalos vem encobrir. Moralizar o país se disseminou como medida primaz, tão falsamente atual quanto foi aos militares dos anos de chumbo.
De tudo isso, e com agravantes sérios, a grande mídia é cúmplice. Foi ela quem montou o palco para a farsa de heróis contemporâneos celebrados pelo apanágio de “incorruptíveis”: do capitão Nascimento ao ex-ministro do Superior Tribunal Federal, Joaquim Barbosa. “Incorruptível”, vale lembrar, era a alcunha do líder jacobino francês Maximilien de Robespierre.
Sem a mesma estatura política daquele, entretanto, os nossos “incorruptíveis” pretendem prodigalizar o terror da justiça sem aprofundar (e fundar) República alguma. Isso porque já se tornou claro que a pauta urgente deste início de século – inclusive para bastiões do conservadorismo econômico como o Banco Mundial12 – é justamente aquela deixada em segundo plano durante a Revolução Francesa: a igualdade. Do rol de temas essenciais que tornaram Robespierre a figura central da Revolução, alguns permanecem como desafios imediatos ao Brasil dos próximos anos. A limitação da propriedade privada em favor de sua função social, a tributação progressiva dos rendimentos, a taxação das grandes riquezas, tudo isso – defendido pelo jacobino – vai contra os compromissos da maioria que se intitula, hoje, guardiã da ética republicana, “incorruptíveis”. Com o perdão da frase tomada a Roberto Schwarz, estes “alinham-se com o poder como quem faz uma revolução”.
De fato, dos temas de que se ocupou Robespierre, nossos principais atores políticos carregam apenas um: a ameaça do “inimigo interno”, a corrupção. Com esse lugar-comum (mais um) do golpe militar de 1964, caminhamos em falso passo, em verdadeiras lutas obstaculizadas. Enquanto denuncismo e tara policialesca não avançarem para um debate sobre sua relação com privilégios mantidos no país – para uma narração verdadeiramente política do presente –, estaremos condenados a olhar o relógio, sem ponteiro algum.
Fábio Salem Daie é jornalista e pesquisador no programa de pós-graduação da Universidade de São Paulo e um dos autores de “Thomas Piketty e o Segredo dos Ricos”, ed Venetta.