Cortesãos à margem da lei
A divisão de poderes num modelo constitucional republicano e federal de governo foi afetada na Argentina, o Presidente da Nação nomeou por decreto dois novos juízes para a CSJN sem ter poderes para fazê-lo. Portanto, a fragilidade institucional e democrática que isso representa é evidente
A Argentina entrou num processo de desconstitucionalização. O seu presidente, Javier Milei, nomeou dois novos membros para o tribunal máximo argentino. A nova composição da Suprema Corte de Justiça da Nação (CSJN), parafraseando Carlos Nino, estará à margem da lei.

A gravidade da situação é evidente sob todos os ângulos. A divisão de poderes num modelo constitucional republicano e federal de governo foi afetada. O Presidente da Nação nomeou por decreto dois novos juízes para a CSJN sem ter poderes para fazê-lo. É o Senado, por atribuição constitucional, que aprova ou recusa a nomeação do Poder Executivo. A aprovação requer uma maioria qualificada, e não a habitual, precisamente tendo em conta a importância de ser membro do mais alto tribunal de justiça da Argentina. A procura de consensos múltiplos para alcançar essa maioria qualificada é uma consequência direta deste fato. O procedimento de nomeação de juízes para a CSJN é, neste sentido, um dos descritos como complexos. Envolve mais do que um Poder. A participação obrigatória e essencial do Senado traduz, ademais, o caráter federal da nossa Nação (os senadores representam as autonomias provinciais).
A independência e a imparcialidade são profundamente afetadas. Os novos membros da CSJN, ao aceitarem ingressar de forma inconstitucional, estão conscientes de estar à margem da lei. Com quais critérios éticos, institucionais e constitucionais irão desempenhar a tarefa de julgar e assumir a liderança do Poder Judiciário na Argentina? Que tipo de independência e imparcialidade irão demonstrar ao exercer o controle judicial dos atos do Poder Executivo que os nomeou de maneira inconstitucional? Que grau de autonomia terá um Poder Judiciário cujas decisões jurisdicionais serão proferidas por membros assim nomeados? A fragilidade institucional e democrática que isso representa é evidente.
Há, também, a dimensão democrática. A Constituição argentina, no seu texto reformado de 1994, reforçou a obrigação de respeitar a ordem democrática e os direitos humanos como a base do sistema de direitos, liberdades e garantias e também da própria organização territorial e orgânica do poder. A constitucionalização de alguns tratados de direitos humanos ampliou este núcleo duro e central da ordem jurídica interna. A jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos tem dado sua contribuição nesse sentido: para serem válidas, as restrições a direitos e liberdades, entre outros aspectos, devem ser necessárias a uma sociedade democrática. Se tal padrão é exigido para validar decisões estatais de interferência na área dos direitos, é ainda mais necessário que tal padrão seja aplicado às decisões de nomeação daqueles que julgarão tais restrições. Deste ponto de vista, a nova composição da CSJN é francamente antidemocrática.
Para concluir, já há algum tempo temos alertado para a existência de mecanismos que, com uma certa aparência de legalidade, resultam em graves ilegalidades. É assim que se dá o que chamamos de esvaziamento democrático através de cancelamentos estruturais de zonas de legalidade. Detectar sintomas, encontrar antídotos e, sobretudo, testar mecanismos de prevenção é a nossa obrigação ética e democrática enquanto professores de Direito. O desbordamento dos limites constitucionais produz processos de desconstitucionalização e estes esvaziam as nossas próprias democracias.
Pablo Ángel Gutiérrez Colantuono é professor de Direito Administrativo da Universidade de Comahue (Argentina). Doutor em Direito pela Universidade de A Coruña (Espanha), foi Acadêmico Visitante na Universidad de Oxford e presidente da Associação Argentina de Direito Administrativo (AADA). No Brasil, publicou a obra “Controle de convencionalidade na Administração Pública” (Editora Contracorrente, 2024).