Cortinas de fumaça do Urbanismo
Vivemos uma crise do urbanismo que envolve o conjunto social e político da nação, desleixado às desigualdades extremas entre o lançamento de produtos imobiliários de alto luxo em todas as regiões do país, e as chacinas em periferias urbanas
Já faz alguns anos que a palavra Urbanismo se popularizou nas redes sociais, seja pelo incremento das plataformas de comunicação e do acesso às novas gerações da profissão, seja porque o campo vem sendo disputado por diferentes agentes que se apropriam da palavra e dos seus variados usos mediante interesses econômicos, culturais e políticos.
Por um lado, a palavra significa o estudo do ambiente urbano e suas complexidades entre os temas da moradia, da mobilidade, do transporte, da história urbana, do patrimônio cultural, da recuperação e usufruto dos sistemas ambientais, dos espaços públicos, das dinâmicas imobiliárias, entre outras variáveis. Por outro, o termo se tornou ferramenta do poder privado, sobretudo do setor imobiliário, para disputar seus interesses e possíveis alianças com os interesses públicos. Em vez de sinalizar a qualidade de um futuro empreendimento, agora se fala no quanto ele irá promover em benefícios para a cidade. Das disputas mais calorosas em torno das cidades está a regulação do mercado privado pelo Estado, com diretrizes técnicas que buscam ordenar o crescimento e o desenvolvimento do território como forma de extração de recursos para possibilitar justiça socioespacial e ambiental. Afinal, estamos no país dos Extremos, título do livro do economista Pedro Fernando Nery, lançado recentemente. Se algo que o “Urbanismo” precisa efetivar é a capacidade de resiliência dos territórios e principalmente combater as desigualdades extremas que perpassam renda, classe, raça, gênero e outras várias camadas de cunho sociocultural, político e econômico que dão forma à sociedade.
A regulação ao setor privado da construção, que direciona as possibilidades de formas urbanas a serem produzidas, vem sendo duramente criticada e culpabilizada por “todos” os problemas das cidades brasileiras. Parece cômico, mas realmente existe uma argumentação que trata os afastamentos dos prédios em relação às ruas como os causadores da desigualdade e da violência contra pobres e negros, ou mesmo que a produção de casas em série pelo programa Minha Casa, Minha Vida teria arruinado as cidades brasileiras. Está claro que as leis urbanísticas, como Planos Diretores e Zoneamentos, têm seus pesos e poderes de influência no ordenamento territorial, sobretudo no aspecto das possibilidades de uso e ocupação do solo. Junto com o Código de Obras, direcionam tipologias de edificações e tornam-se basilares aos projetos de arquitetura e engenharia, que inclusive devem ser criticados pelas suas produções. Entretanto, não sejamos ingênuos em relação às práticas ilícitas que também se fazem presentes na sociedade e na produção da urbanidade. Engana-se quem pensa que estão restritas às favelas e loteamentos precários nas bordas metropolitanas: muitos bairros e condomínios fechados voltados às elites são frutos de grilagens de terra e processos ilegais de construção. Sem falar quando esses espaços criam gestões de poder paralelo. Além disso, a participação popular no processo de elaboração dessas leis é bastante desigual, onde setores privados vinculados aos grupos de maior poder econômico e político se fazem presentes em momentos particulares junto ao poder público, em que o restante da população não tem chances de contribuição ou qualquer acesso.
Outra distorção está no sentido de evidência científica, com o objetivo de desmanchar possíveis consensos que acabem por atravancar interesses particulares e números que os beneficiem na produção do espaço. Em outras palavras, andam associando “evidências” àquilo que pode somente ser provado por meio de cálculos do quanto se pode ou não construir, do quanto se pode ou não adensar construtivamente e demograficamente, ou seja, o quanto o mercado pode ou não elevar a altura de um prédio e suas unidades residenciais e comerciais. Adensar é uma ação, um verbo, assim como preservar, construir, verticalizar, tombar, demolir, requalificar, expandir, zonear e planejar. Verbos, não adjetivos. Constituem ação e não qualidade. No imaginário popular, quando pensamos em áreas residenciais dos Estados Unidos, nos remetemos aos subúrbios de grandes casas de classes médias com jardim frontal, ou mesmo aos subúrbios de elite de Los Angeles, como Beverly Hills e Calabasas. Em alguns casos lembramos de Manhattan, mais especificamente do Upper East Side, onde a elite nova iorquina vive e se manifesta socialmente em prédios com vista para o Central Park. São exemplos recorrentes em aulas de urbanismo que buscam demonstrar as diferenças de sociabilidade e infraestrutura entre bairros dispersos e densos, no que é consenso no campo, de que áreas urbanas mais densas costumam ter maior eficiência no aproveitamento das infraestruturas públicas. Em São Paulo, a comparação sugerida seria o Jardim Europa versus Higienópolis, enquanto no Rio de Janeiro estaria entre os bairros da Barra da Tijuca e de Ipanema. Contudo, quando o debate foi importado de contextos muito distintos do Brasil, nossa realidade complexa passou a ser achatada em discussões que se resumem ao formato dos prédios e às oportunidades econômicas voltadas aos interesses privados, ou mesmo a um ringue entre casas e prédios que simplifica os tecidos urbanos e ignora as desigualdades entre as “pessoas”. Me pergunto como uma família pobre que trabalha com entulho e sucata na frente de sua casa autoconstruída e precária poderia acessar e viver em um apartamento produzido pelo mercado imobiliário privado, com seu sistema de vigilância em guaritas e comércio e serviços voltados aos moradores abonados. É esse o mercado que irá promover justiça socioespacial por meio de habitação social aos brasileiros pobres?
Vivemos uma crise do urbanismo que envolve o conjunto social e político da nação, desleixado às desigualdades extremas entre o lançamento de produtos imobiliários de alto luxo em todas as regiões do país, sobretudo nos interiores, e as chacinas em periferias urbanas que desafiam o que deveria ser prioritário nas discussões sobre segurança pública. A crise é também do status quo que sempre dominou a frente das políticas públicas urbanas, em setores acadêmicos pouco populares e acessíveis pelas massas da sociedade. Pior, que são contraditórios ao defender justiça socioespacial e pouco abertos ao enfrentamento dos guetos de mansões parasitados no meio da metrópole paulistana, com apoio da legislação, que chamamos de bairros-jardins. Nesse meio-tempo, sobrados de classes médias em bairros mistos são colocados como inimigos da “boa urbanidade”, como o motivo principal pela existência das periferias enquanto lugares de exclusão e vulnerabilidade social. Além disso, é necessário pensarmos fora do eixo Rio-São Paulo, onde classes médias são bastante reduzidas em termos gerais, como Salvador e Belém, metrópoles onde parte significativa da população vive em assentamentos precários, como favelas, e o abismo entre os mais ricos e os mais pobres tende a ser ainda maior. Se de um lado a crise afeta a hegemonia, por outro lado a crise é de bom senso ao desvirtuar sentidos e significados das políticas públicas e sua importância no desenvolvimento do país, frequentemente reduzidas a um malabarismo cínico do que é ou não fazer urbanismo.
Que as novas gerações sejam capazes de trilhar caminhos mais transparentes, responsáveis e assertivos para o campo e para a sociedade brasileira, disputando de maneira contundente as instituições de classe profissional, as universidades e os espaços de poder dos seus campos disciplinares. Não dá pra defender arranha-céu de 500 metros de altura em Balneário Camboriú como ferramenta fundamental ao país dos Extremos, sobretudo na mesma região que foi assolada por inundações que arrasaram com tantas vidas no Rio Grande do Sul. Dito isso, não poderia deixar de referenciar Joice Berth, arquiteta, urbanista e psicanalista paulistana do Mandaqui, autora do livro Se a cidade fosse nossa, onde lança luz sobre racismos, falocentrismos e opressões nas cidades. Em outras palavras, Berth demonstra como tais violências são centrais nas dinâmicas socioeconômicas dos espaços urbanos e não meras subjetividades como costumam ser tratadas – por não serem apenas evidenciadas por cálculos matemáticos que tentam simplificar as complexidades inerentes às sociedades e às cidades. Aliás, a ideia de uma cidade resumida em um Centro que demanda adensamento populacional e investimentos de cunho privado, a fim de trazer as periferias, por quais é rodeado, é outra simplificação. É uma batalha no campo científico, onde ciências humanas são constantemente colocadas em posição não científica, como se evidências estivessem apenas no campo das ciências exatas, dos dados quantitativos. Muito bem nos lembra a matemática Tatiana Roque, professora da UFRJ, no seu último livro lançado, O dia em que voltamos de Marte: uma história da ciência e do poder com pistas para um novo presente: há uma crise dos experts e das ciências que influenciam em políticas públicas. A professora usa com frequência o exemplo da pandemia de Covid-19 e o negacionismo contra as vacinas no campo da saúde pública, mas o mesmo é válido para o que vem ocorrendo com as políticas públicas urbanas, ambientais e territoriais, onde as influências da arquitetura e do urbanismo, do planejamento territorial, do direito urbanístico, da geografia, da sociologia, da antropologia e outras áreas humanas e das ciências sociais aplicadas são colocadas de modo subjetivo para não atrapalharem os cálculos do “progresso”. Nada mais ideológico do que atribuir qualidade coletiva a uma ação (de interesse) individual ou privado, materializada nos espaços construídos, destruídos ou transformados nas cidades.
Lucas Chiconi Balteiro é arquiteto e urbanista, mestrando em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo na FAU/USP e membro dos grupos de pesquisa “Cultura, Arquitetura e Cidade na América Latina” (CACAL, FAU/USP) e “Cidade, Arquitetura e Preservação em Perspectiva Histórica” (CAPPH, UNIFESP).