Por um urbanismo de canteiro: projeto, pesquisa e políticas públicas
É mister reconhecer o papel social da pesquisa para que a população entenda que o urbanismo é pertinente à comunidade
Nos últimos anos, verificou-se a retomada do debate sobre alguns pontos básicos ligados à questão urbana: a necessidade de reconstruir vínculos entre projeto, pesquisa e políticas públicas; o valor do diálogo entre as diferentes disciplinas; a disponibilidade de ferramentas que contribuam para a análise e a formação de uma nova polis. Nesse contexto, o livro Direito à cidade[1] do sociólogo francês Henri Lefebvre (1901-1991), publicado no ano de 1968, transformou-se no ponto de partida para discutirmos novas relações entre o direito à cidade e o planejamento criativo, aplicado ao uso e à representação do espaço urbano e, ainda, para pensarmos relações que situem a interlocução com o cidadão no centro do processo, com base na constante conexão entre identidade local e desenvolvimento global, entre memória e planejamento do futuro.
Nos últimos trinta anos, a consolidação de uma nova relação entre projeto urbanístico/planejamento urbano, pesquisa e políticas urbanas, embora com algumas oscilações na Europa e no continente americano (Américas do Norte e do Sul), seguiu a mesma trajetória, tanto nas suas abordagens teóricas e doutrinárias como na prática, para conceber e realizar programas mais ou menos complexos, nos quais a formação do espaço público e a paisagem desempenham o papel principal.
Certamente contribuiu para isso o surgimento de programas de especialização, mestrado, doutorado e de intercâmbio entre pesquisadores da Europa, Estados Unidos e Brasil, pois os novos programas pedagógicos delineados, os procedimentos práticos, as abordagens nas diferentes disciplinas, as reflexões sobre o universo profissional, a criação de eventos e surgimento de periódicos levaram à renovação dos protagonistas que desempenharam papel essencial para “novamente fundamentar” tanto os conteúdos quanto as pedagogias internas dos cursos de arquitetura e urbanismo.
Em vários programas de pós-graduação lato e stricto sensu, algumas ações foram empreendidas para promover, por um lado, projeto urbano como prática específica do arquiteto e, por outro, o diálogo entre as diferentes disciplinas. As transformações atuais dos espaços da cidade contemporânea, mesmo naquelas de reduzidas dimensões – não por nascerem de um dia para o outro, mas pela força com que se impõem – criaram uma série de necessidades derivadas do reconhecimento do fenômeno em si e que exigem o repensar de figuras e imagens recorrentes em um vocabulário mais amplo.
Ações específicas relativas ao ensino do projeto urbano abrindo-se a outros protagonistas nasceram rapidamente visando trocar informações sobre as problemáticas, gerando uma visão mais ampla de projeto urbano como “culturas em interação”, a saber: interação entre teoria e prática, relação com a pesquisa; interdisciplinaridade na complementaridade; integração das competências de profissões próximas (paisagistas, engenheiros etc.); e, enfim, a contribuição de outros saberes como sociologia, história urbana etc, constituindo um campo mais amplo de saberes híbridos com interseção entre as teorias, doutrinas e práticas[2].
Nos anos 1980 e seguintes, surgiu a questão ambiental que, embora tenha amadurecido de forma independente em nosso país, encontrou mais espaço quando a discussão ocorreu em contextos internacionais como na conferência do Rio de Janeiro (Eco-92) que deu origem à chamada Agenda para o século 21, propondo uma série de ferramentas que contribuíram para a análise e, finalmente, para a formação de uma nova polis.
O aspecto singular desses documentos internacionais é que representam o resultado de união de dois tipos de organismos: a) representantes da autoridade ambiental que, recentemente, propuseram aos governos a adoção de desenvolvimento compatível com o meio ambiente e formularam uma definição precisa: “sustentável”; b) representantes das comunidades, as chamadas Autoridades Locais, que se propunham a servir como lugar de prática democrática da comunidade e como responsáveis naturais pela gestão e custódia dos recursos ambientais e territoriais dos contextos de assentamento.
Essas reuniões impulsionaram conteúdos programáticos voltados à adoção de “estratégias” de desenvolvimento (a serem moderadas com a contribuição sustentável), dentro das quais as políticas convergem nos contextos territoriais vastos e locais. Nestes, foram desenvolvidos modelos que continham um desafio de dimensões políticas substanciais como a Agenda 21, que previa confiar, aos processos participativos, a definição dos objetivos e ações do plano para implementá-los.
Entretanto, uma questão ainda não suficientemente investigada, e sobre a qual este texto objetiva abrir linhas de debate, é a relação entre a definição dos cenários estratégicos da cidade (e do território) e a construção social de um conhecimento coletivo e compartilhado da cidade contemporânea, capaz de sustentar a coesão social, de mesclar identidades e de conservar memória para produzir futuro.
Mas como conjugar racionalidade ecológica, de um lado, e “procedimentos democráticos”, de outro? Como avançar no sentido de reavaliar o trabalho pioneiro de nossos mestres que se empenharam na aprovação do Estatuto da Cidade (2001) e na criação e consolidação do Ministério das Cidades (2003), na tentativa de reeducar nossa esperança com referência à participação popular na construção da cidade?
Pesquisadores do urbano respondem, em especial, que o desenvolvimento sustentável é um conceito político entendido de maneiras distintas, de acordo com a abordagem: ecológica, puramente técnica, filosófica, social, cultural etc. Portanto, o desenvolvimento sustentável só pode ser tratado por várias disciplinas e em rede; além disso, é frequentemente entendido como uma questão de participação pública e de envolvimento dos cidadãos no estágio mais inicial possível do processo decisório.
Todavia, essa mudança de rumo traz implicações não somente cognitivas, mas também éticas, políticas e conceituais. Portanto, a atividade de pesquisa nessa área, ainda restrita às universidades, precisa assumir sua aplicabilidade à luz de algumas convicções sobre o caráter distinto do urbanismo em uma dimensão contextual, no sentido de estruturá-la mais intimamente com as práticas e os cenários sociais e territoriais. Por isso, é útil estabelecer de forma clara os tempos da pesquisa no cronograma do plano: o “tempo lógico” e o “tempo histórico” de seu processo.
É útil verificar a aplicabilidade de certos parâmetros e suas adaptações, bem como perceber a sua dimensão projetual, entendendo que o urbanismo termina na ação e traz em si a tensão da mudança para a prefiguração e o funcionamento espacial, mudança para uma aparência física e morfológica dos espaços, e ainda para a organização e gestão dos processos. É mister reconhecer o papel social da pesquisa para que a população entenda que o urbanismo é pertinente à comunidade e, por isso, deve ser desenvolvido com competência técnica, equilíbrio e consciência da dimensão civil do trabalho, inclusive no que tange à participação popular.
Adalberto da Silva Retto Júnior é professor na Universidade Estadual Paulista – Unesp, é doutor (FAU USP e Departamento de História da Arquitetura e Urbanismo do Istituto Universitario di Architettura di Venezia – IAUV, 2003) e pós-doutor (IAUV, 2007). Atual coordenador do curso internacional de especialização lato sensu “Planejamento urbano e políticas públicas: urbanismo, paisagem, território”, foi professor-pesquisador visitante no Master Erasmus Mundus da Universitè Panthéon Sorbonne Paris I (2011-2013).
Ana Maria Lombardi Daibem é coordenadora pedagógica do Curso Internacional de Especialização Lato Sensu em Planejamento Urbano e Políticas Públicas na Unesp Campus de Bauru. Co-fundadora e presidente do Grupo Gestor do Núcleo de Estudos e Práticas Pedagógicas – NEPP / Pró-reitoria de Graduação da Unesp de 05/02/2009 a 04/02/2013. Secretária Municipal da Educação de Bauru de 01/01/2005 a 31/12/2008. Profa Assistente Doutora do Departamento de Educação da Faculdade de Ciências da Unesp Campus de Bauru. Mestre em Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba e Doutora em Educação pela Unesp campus de Marilia.
[1] LEFEBVRE, Henri. Le droit à la ville. Paris, Éditions Anthropos, 1968
[2] JACQUES, Paola Berenstein; PEREIRA, Margareth da Silva (orgs.). Nebulosas do pensamento urbanístico: tomo I – modos de pensar. Salvador, EDUFBA, 2018, p.46-69.