Covid-19 é mais que pneumonia; é uma endotelite
Pesquisadores do Hospital Universitário de Zurique demonstram que o novo coronavírus atinge diretamente o sistema de defesa do corpo através dos receptores ACE2 encontrados no tecido endotelial. Por isso, a Covid-19 se manifesta sobretudo nos pulmões, mas pode atacar qualquer outro órgão: coração, rins, intestinos, cérebro, pele…
Uma equipe interdisciplinar do Hospital Universitário de Zurique (HUZ), na Suíça, descobriu que mais do que uma doença respiratória, a Covid-19 pode ser caracterizada como uma endotelite, uma doença do endotélio. Os pesquisadores publicaram em abril um estudo na revista médica Lancet demonstrando que o novo coronavírus SARS-CoV-2 atinge diretamente o sistema de defesa do corpo através dos receptores ACE2 encontrados no tecido endotelial. Esta é a camada celular que envolve os vasos sanguíneos, presente em todo corpo, nos vasos e microvasos. Por isso, a Covid-19 se manifesta sobretudo nos pulmões, órgãos hiper-vascularizados que servem de porta de entrada para o vírus, mas pode atacar qualquer outro órgão: coração, rins, intestinos, cérebro, pele…
Há três meses, a equipe do HUZ estuda o novo coronavírus por meio dos atendimentos no hospital e pelo intercâmbio de dados. O diretor do Departamento de Cardiologia, Frank Ruschitzka, notou que os pacientes tinham problemas nos pulmões, “o principal campo de batalha”. Mas não o único. “Eles tinham problemas em todos os lugares, em todos os órgãos. Em todo lugar! Todo paciente é diferente, alguns têm nos rins, no intestino, no cérebro… O que está acontecendo aqui? Isso não é apenas pneumonia por vírus!”, recordou em videoconferência com a reportagem.
O próximo passo foi acionar os colegas patologistas. Na ressonância magnética e na angiografia, a equipe analisou as imagens e percebeu que as grandes artérias estavam abertas, mas as micro-artérias sofriam severamente. E o mesmo revelaram as autópsias dos pacientes que faleceram de Covid-19. “Muitos médicos na Europa fogem das autópsias, mas Holger Moch teve a coragem e a visão de dizer: vamos fazer!,” afirmou o Ruschitzka. Moch, patologista do HUZ, tem um mote. “A patologia é a ciência por trás da cura”, destacou à reportagem, na mesma videoconferência.
Através das autópsias, os patologistas confirmaram que os pacientes não sofriam apenas de uma inflamação dos pulmões, mas de uma inflamação de todo o tecido endotelial em diversos órgãos. A patologista Zsuzsanna Varga usou um microscópio eletrônico para verificar pela primeira vez que o novo coronavírus está presente e causa necrose celular do tecido endotelial.
“Vimos o novo coronavírus na célula e as consequências imediatas do dano endotelial, causando hipercoagulabilidade e trombose,” destaca Moch. Ao descrever o dano do endotélio, o trabalho inédito da equipe do HUZ remete aos ensinamentos do patologista alemão Rudolph Virchow (1821-1902). “Provamos seu conceito, antigo e fascinante, de que todas as doenças saem da célula”, afirma o pesquisador.

Analogia: vândalos no nosso metrô
Os médicos pesquisadores sugerem uma nova definição ao termo Covid-19. “Não sendo apenas pneumonia, Covid significa doença inflamatória por coronavírus (coronavirus inflamatory disease)”, destaca Ruschitzka. Mas a equipe faz questão de ressaltar que uma doença não exclui a outra. “Meu pneumologista me perguntou: então você está me dizendo agora que não se trata de problema pulmonar?”, relembra. A importância da pesquisa está em destacar que a doença Covid-19 é também um problema pulmonar, mas não apenas. “Cada terceira célula do pulmão é uma célula do endotélio. O pulmão serve para carregar células sanguíneas com oxigênio. Na verdade, a doença afeta também os vasos pulmonares”, explica.
O novo coronavírus entra pelo nariz ou pela boca, passa para o endotélio dos pulmões, e cai na rede sanguínea. A reportagem pergunta se podemos pensar que os vasos sanguíneos funcionariam como a rede de metrô: o endotélio seria as linhas de metrô e o coronavírus um bando de passageiros indesejados, que saem vandalizando e destruindo as estações por onde passam ou saltam; pulmões, coração, rins…
Os médicos dizem que podemos usar essa analogia do metrô, pois é assim que os vasos funcionam. “O endotélio é o revestimento interno do vaso e o mantém aberto. Seria o que mantém a linha do metrô em funcionamento”, afirma Ruschitzka. “Em uma boa linha de metrô, você tem uma parede lisa, assim que a parede deixa de ser lisa, pela inflamação ou pela infecção do vírus, o ‘metrô’ não pode mais funcionar suficientemente. A parede do túnel do metrô está destruída. O vírus destrói as vias e o tráfego… e você tem uma doença generalizada,” completa Moch.
Na prática, o endotélio é a camada celular que atua como um escudo protetor dos vasos sanguíneos e regula e equilibra vários processos nos microvasos. A interrupção desse processo regulatório pode, por exemplo, causar distúrbios circulatórios nos órgãos e tecidos do corpo humano, resultando na morte de células, tecidos e órgãos. As consequências podem ser graves distúrbios microcirculatórios que danificam o coração, desencadeiam embolias pulmonares, oclusões vasculares no cérebro e no trato intestinal e, inclusive, falência múltipla de órgãos e morte.

Zurique).
Tratamento em análise
Então, como parar as interrupções e o vandalismo do novo coronavírus e manter nosso metrô “endotélico” funcionando? A equipe do HUZ considera que a chave para o tratamento da Covid-19 aborda dois pontos: combater a replicação do vírus e ao mesmo tempo proteger e estabilizar os sistemas vasculares dos pacientes.
“Podemos tratar a disfunção do endotélio em pacientes sem Covid-19 muito bem. Sabemos que estatinas, ACE-inibidores e certos anti-inflamatórios, bloqueadores alfa e beta, anticitocinas em pacientes com insuficiência vascular ajudam,” afirma Ruschitzka. No momento, a equipe do HUZ tenta descobrir como os medicamentos já conhecidos para melhorar a disfunção endotelial em pacientes sem Covid-19 vão reagir nos pacientes com o novo coronavírus. “Interessa-nos saber se eles também podem fornecer benefícios para pacientes com Covid-19”, detalha.
Por enquanto, esse tratamento não significa o fim do uso de unidades de terapia intensiva (UTIs) e de ventiladores. “Precisamos de uma estratégia abrangente: terapias inibitórias eficazes e antivirais seguros, terapias para a prevenção de complicações vasculares, bem como medicina intensiva para pacientes com doença avançada”, diz Ruschitzka. E cada vez mais valorizar o trabalho em equipe. Para citar alguns, cardiologistas, infectologistas, patologistas, médicos intensivistas contribuíram na pesquisa do UHZ. “Temos cada vez mais especialistas que analisam apenas um órgão. Precisamos voltar à visão holística”, avalia Moch.
Fortalecer nosso tecido endotelial no dia a dia também pode ajudar o organismo a enfrentar ataques do novo coronavírus. “Sabemos claramente que o exercício físico melhora a função do endotélio,” avisa Ruschitzka. “E sabemos que o tabagismo a prejudica”, alerta. “Se você vive uma vida saudável, seu endotélio será saudável enquanto você envelhece. Este é o começo das estratégias para a terapia”, indica.