Covid-19, economia política e a esperança à la brasileira
É certo que há caminhos a serem discutidos, mas nenhum deles passa por austeridade – obsessão ideológica do ministro da Economia, Paulo Guedes. A saída passa por um ataque agressivo à preferência por liquidez. A apresentação do Pró-Brasil, programa voltado à ampliação dos gastos públicos como catalizador para retomada pós-pandemia, exageradamente apelidado de Plano Marshall à la brasileira, decepcionou e gerou mal-estar em Brasília.
As perdas humanas, sociais e econômicas provocadas pela pandemia da Covid-19 desnudaram o atual sistema econômico, evidenciando mais uma vez sua incapacidade em lidar com situações de crise. As incertezas causadas pela Covid-19 empurram, cada vez mais, o mundo de forma contundente ao que de pior o atual sistema produtivo oferece. Tal cenário fomenta forças sociais capazes de cobrar soluções institucionais, tal como fizeram os europeus no pós-guerra, impulsionando a instituição do Plano Marshall.
Já não é cedo para falar em “crise global profunda”. O Fundo Monetário Internacional (FMI) prevê uma queda da economia global em 3%. Para se ter uma ideia da intensidade da crise na que a Covid-19 jogará o mundo todo, em 2009 durante a crise financeira internacional, a economia global encolheu 0.1%. Ao final da pandemia, se é que é possível dizer quando ela chegará ao fim, a situação econômica de muitos países estará objetivamente pior. Do ponto de vista financeiro, setores públicos, empresas e famílias estarão mais endividados. Com o aumento desse endividamento, a saída proposta pelas livres forças do mercado passa pelo esforço de seu pagamento.
Apesar de ser intuitivamente correto aceitar que quem tenha se endividado deva se esforçar para solver sua dívida, existe uma falácia envolvida nesse raciocínio. Trata-se da falácia da composição: o que parece ser correto para um indivíduo, não necessariamente é bom para o conjunto deles. Nesse caso, mais pagamento de dívidas leva a menos consumo, o que, no agregado gera o paradoxo da poupança proposta por Keynes em sua Teoria Geral. Se todos poupam, portanto, não haverá consumo capaz de estimular o investimento privado. Assim, sendo mantida o dogma nas instituições de mercado, não há dúvida de que se caminha rumo a uma profunda depressão, com redução de empregos e renda. É o colapso.
A saída global passa por reconfigurações do sistema na intensidade de Bretton Woods de 1944, tal como defende o Nobel em Economia Joseph Stiglitz. Isso dependerá de uma convergência em torno de uma configuração institucional que seja capaz de atender demandas distintas de forças sociais que emergirão da crise, mas também dos interesses produtivos e financeiros e de certa acomodação do poder geopolítico, o que passa pela possível queda do poder do dólar americano como moeda de referência global.
Para tal convergência internacional, é preciso que líderes políticos tenham capacidade e disposição para se empreenderem em um esforço intelectual autêntico, consistente e humilde, o que costuma permitir a lucidez impessoal, que poderá gerar alternativas críveis para uma nova fase do capitalismo, com um sistema produtivo distinto.
Saídas
Não se trata de uma saída simples. Impossível sob a liderança de Donald Trump e similares. O Brasil, que atualmente possui participação coadjuvante e amadora nas discussões internacionais, além de contar com opiniões questionáveis do ministro das Relações Internacionais do governo Bolsonaro que servem como chacota, está realmente fora do jogo.
Se a busca pela convergência internacional não envolve lideranças brasileiras, é possível, ao menos, refletir sobre possibilidades de convergência interna.
É certo que há caminhos a serem discutidos, mas nenhum deles passa por austeridade, (obsessão ideológica do ministro da Economia, Paulo Guedes). A saída passa por um ataque agressivo à preferência por liquidez. A apresentação do Pró-Brasil, programa voltado à ampliação dos gastos públicos como catalizador para retomada pós-pandemia, exageradamente apelidado de Plano Marshall à la brasileira, decepcionou e gerou mal-estar em Brasília. Mais uma vez Bolsonaro não conseguiu lidar com pressões políticas e, para manter seu Ministro da Economia, propôs a revisão para baixo do programa.
Por escolha de sua população, o Brasil é liderado por um dos presidentes mais incapazes, se não o mais incapaz de toda a história da república. Sua absoluta insipiência de entendimento não permite dar-lhe qualquer voto de confiança em torno de um nível consistente de estabilidade institucional por mais de… quantos? Dez? Cinco? Dois dias? Qualquer um que tenha o mínimo de sensatez reconhece a elevada instabilidade política representada pela atuação diária do presidente. Os investidores não são exceção.
Enfim, os males que a Covid-19 seguem desnudando sobre o pior que o capitalismo pode gerar já permitiram que muitos economistas e líderes globais, inclusive liberais, passassem a reconhecer no Estado o ator central para sair da crise no curto prazo, enquanto que uma reconfiguração institucional internacional é a esperança de longo prazo. Porém, nós brasileiros, liderados por mentes confusas e desacostumadas à reflexão, como a de Bolsonaro, e por outras, dogmáticas e presas às teorias econômicas abstratas e irreais, como a de Paulo Guedes, não devemos esperar muito. Basta que Bolsonaro dê continuidade, sendo Bolsonaro, errando com a mesma intensidade, que o impeachment é questão de tempo. Cabe então a sociedade pressionar para que o Brasil pós-pandemia seja outro, mais inclusivo, mais tolerante, mais sustentável. A luta por esse “outro Brasil” já está em disputa.
Pablo F. Bittencourt é Doutor em Economia e professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Tulio Chiarini é Doutor em Economia e analista do Instituto Nacional de Tecnologia (INT).