Craques: artigos de exportação
Para impedir a “evasão de pés”, precisaria haver estrutura mais sólida, bem gerida e capilarizada, que permitisse a sobrevivência de equipes de diferentes recursos, capacidade e ambições. Caso contrário, como pretender que um aspirante a atleta resista à tentação de viver em outro lugar?
Êxodo (s.m.) – emigração de todo um povo ou saída de pessoas em massa (Dicionário Houaiss).
Curioso como a palavra algo extravagante, antes circunscrita a contextos específicos – êxodo rural, êxodo dos hebreus –, tornou-se corriqueira nos cadernos de esportes dos jornais. Curioso e, para alguns, trágico: característica marcante do futebol brasileiro hoje em dia é o fato de seus maiores talentos permanecerem pouco tempo em território nacional. Ninguém se surpreende com a notícia de um jogador negociado com time estrangeiro; a pergunta “você tem planos de sair do país?” (ou “quando…?”) pode ser feita sem receio a qualquer um deles.
Há ocasiões em que a seleção brasileira não conta com um jogador sequer em atividade no Brasil; nossos atletas, gabou-se a CBF outro dia, estão cada vez mais fluentes em outros idiomas. O país com mais participantes na Copa dos Campeões da Europa, competição entre clubes mais prestigiada no mundo, é o nosso: são 102 brasileiros inscritos.
A palavra “êxodo” tem sido empregada porque não se trata apenas da saída dos craques, inevitavelmente raros e cobiçados, mas sim de intenso fluxo migratório de “pé-de-obra” com todos os graus de experiência, qualificação e prestígio. E não só para as praças mais valorizadas do desejado mercado europeu, como a Espanha, a Inglaterra, a Itália e a Alemanha, mas também para países das bordas do mundo futebolístico.
694 jogadores fora em 2007
Em 2007, segundo os registros oficiais da Confederação Brasileira de Futebol, saíram do Brasil 694 jogadores profissionais (incluindo um ou outro estrangeiro que atuava por aqui, e uma ou outra jogadora). Portugal recebeu o maior contingente: 114 atletas. Outros 52 foram para o Japão, 29 para a Itália, 27 para a Alemanha e 27 para a China. No total, foram 81 destinos, alguns surpreendentes até para quem já se acostumou ao movimento intenso de saída: 21 jogadores foram para a Indonésia, 20 para o Vietnã, 15 para a Áustria, 11 para a Lituânia, 10 para Hong Kong, 7 para a Armênia, 6 para a Finlândia, 4 para a Bósnia-Herzegóvina, 3 para as Ilhas Faroe. Como se sentirá agora o brasileiro que foi para Omam? E os 3 que se mudaram para Estônia, Chipre e Belarus?
Mesmo nos destinos mais ortodoxos há paradeiros pouco familiares: 12 dos 18 clubes alemães que receberam brasileiros este ano não são da primeira nem da segunda divisão. Entre os italianos, há nomes tão misteriosos quanto “A.S.D.Thiene – Calcio A5” – uma equipe de futsal (da Série B). O Prato, penúltimo colocado na C2 B – o equivalente à quarta divisão italiana – é o time atual do atacante Diego Silva Reis, saído daqui tempos atrás.
Um quase xará dele, Diogo Silva, foi este ano para o Orlandina, que disputa a Liga Siciliana: são 32 times divididos em dois grupos; os campeões de cada um ganham acesso à Série D – divisão mais elevada do futebol não profissional, a Lega Nazionale Dilettant.
Quem na Itália tentar descobrir a origem dos jogadores brasileiros pensando em Santos, São Paulo, Grêmio, Cruzeiro também terá surpresas e dificuldades. O Clube Atlético Patrocinense, por exemplo, que consta no site da CBF como sendo o ex-empregador de Diogo Silva, foi o vice-campeão mineiro da terceira divisão em 2004. Seu melhor resultado foi em 1990: vice da segunda divisão. Felizmente, o gosto dos brasileiros pela internet levou a equipe de Patrocínio, fundada em 1954, a ter sua página na Wikipedia – onde também se encontram as informações sobre todas as séries do futebol italiano.
Porém muitas buscas são necessárias para localizar todas as equipes de origem e destino dos futebolistas emigrantes – do Guanabara Esporte Clube/RJ para o Mamelodi Sundowns FC, da África do Sul; do União Esporte Clube/MT para o Tus Ascheberg 1928, da Alemanha; do Ariquemes Futebol Clube/RO para o também alemão Prignitzer Kuckuck Kickers; do Vera Cruz Futebol Clube/PE para o PFC Cherno More, da Bulgária – e olhe que não passei da letra “B” da coluna “destinos”.
Escolha X falta de escolha
Não é difícil entender por que os jogadores saem. Alguns porque, convidados por equipes de muita qualidade e renome, recebem propostas de remuneração e prêmios impossíveis de serem equiparadas aqui pelo mais perdulário dos clubes. Partem em busca de uma estrutura estável, calendário racional, prestígio, dinheiro e uma vida confortável, em países em que há casas sem muros e os carros param antes da faixa de pedestre.
Os que aqui já adquiriram prestígio como “revelações” vislumbram, nesse começo da carreira, a chance de se projetar em escala muito maior, mesmo que saiam para campeonato considerado de menor importância – imaginam a Ucrânia como escala para a Espanha; a Suíça, para a Itália… Os que estão na segunda metade da segunda década de vida querem assegurar uma aposentadoria tranqüila, visto que podem acumular, em poucos meses, valores (em euros) que não ganhariam em anos jogando aqui.
Muitos viajam, porém, não para aproveitar a melhor chance, mas para agarrar a única. E por isso arriscam migrar até para países dos quais nunca ouviram falar, onde enfrentam problemas com o idioma, diferenças culturais, solidão, desacertos de ordem técnica ou a trágica descoberta de que a proposta não passou de uma farsa. Mas se lançam nessa aventura simplesmente porque não seriam profissionais de futebol no Brasil. Estariam, como milhares de ex-aspirantes, lavando carros, servindo balcões, dirigindo ônibus, cuidando da portaria de edifícios…
É natural que a vontade de ser jogador não seja satisfeita para a maioria, na medida em que se pode presumir que todo menino que é louco por futebol já acalentou, ao menos por um instante, o sonho de viver de jogar bola. Esporte de rendimento é excludente por natureza – nem todos têm talento, seja para dominar bem a bola, seja para suportar os rigores do treinamento diário ou o estresse da competição. Mas nós desperdiçamos talentos; meninos muito bons e com a capacidade de resistência fortalecida por anos de vida muito dura não recebem uma oportunidade verdadeira.
Alguns clubes ainda mantêm um sistema de seleção que comporta muito mais distorções do que possibilidades de avaliação correta – as cruéis peneiras. Nervosos, pressionados pelos pais, meninos têm dez minutos para “mostrar o que sabem”. Disputando ferozmente uns com os outros, evitam ao máximo passar a bola para os próprios colegas de time… Em torno deles, predadores de todos os tipos, intermediários prontos a cobrar pedágio para assegurar um lugar na equipe, mesmo para o garoto que já foi escolhido.
Ano com 12 meses
Para agravar o quadro, há o problema da mortandade de clubes e de instabilidade financeira, política e institucional dos que sobrevivem. Até na Série A, a divisão de elite do futebol brasileiro, inúmeros participantes são assolados por dívidas vultosas, calotes nos profissionais, processos por sonegação de impostos, evasão de divisas e outros crimes tão familiares aos aficionados pelo esporte quanto a palavra “êxodo”. Busca-se assim, fora do Brasil, mais do que um emprego, um empregador capaz de assegurar o pagamento de salários em todos os doze meses do ano.
Para cumprir esse dever, clubes europeus – em geral, os mais bem-sucedidos – obtêm recursos com a venda de ingressos avulsos e carnês para a temporada, produtos com a marca do clube, patrocínio (camisa, bola, chuteiras e outros), direitos de transmissão pela TV, espaços publicitários e comerciais nos estádios, eventos, excursões, contribuições societárias e franquias, como a de escolinhas de futebol ou academias de ginástica (é o caso do Sheffield, clube inglês da segunda divisão). No Brasil, há dependência muito grande dos direitos de TV, algum desprezo ao estádio como meio de arrecadação (já ouvi mais de um dirigente dizer: “Investir em conforto para o torcedor para quê? Estádio é 8% da minha renda”), exploração da marca muito abaixo do potencial. É consenso: não há correspondência entre o proverbial talento dos atletas e a capacidade gerencial dos dirigentes – na maioria das vezes, amadores que se dizem aficionados pelo clube, sustentados no comando por um sistema eleitoral construído e manipulado para perpetuá-los no poder.
Incapazes de se manter, alguns clubes funcionam por curto período, apenas para a disputa do campeonato estadual (geralmente restrito aos primeiros meses do ano) e venda de jogadores. Tanto é assim que este texto precisou mudar de rumo na metade. Tentei localizar alguns jogadores emigrados para saber como tinham sido recrutados, se a oferta feita correspondera à realidade, se estavam decepcionados ou satisfeitos, arrependidos ou esperançosos. Descobri clubes que não existem mais, como o já citado Atlético Patrocinense. De
pois de consultas à Prefeitura de Patrocínio, à Liga Municipal e à Federação Estadual, obtive a informação de que está “fechado há uns dois anos”. Vários outros esforços deram o mesmo resultado, e houve descobertas de outro tipo.
O “Brasil Central Esporte Clube Ltda.”, com sede em Cuiabá, tem um site escrito apenas em italiano. Ele se apresenta como “Uma sociedade profissional fundada recentemente, já ativamente presente no mundo do futebol internacional”. Seu objetivo é “preparar e valorizar jovens atletas brasileiros”, de modo que os jogadores possam “apresentar-se com sucesso no mundo futebolístico, sobretudo o europeu”. É, basicamente, uma empresa de exportação de atletas.
Atração e expulsão
O movimento que leva as pessoas a querer se mudar dos lugares mais pobres para os mais ricos é inevitável. Os clubes das capitais, especialmente de São Paulo e do Rio de Janeiro, exercem uma força de sucção comparável ao poder de atração do mercado externo. Dos 19 jogadores mais utilizados pelo líder São Paulo FC nesta edição do Campeonato Brasileiro, nenhum nasceu na capital paulista e apenas 3 começaram a carreira no clube. As procedências são as mais diversas: Maceió (AL), Feira de Santana (BA), Dois Vizinhos (PR), Recife (PE)… Como diz o professor Oliver Seitz, doutorando em Indústria de Futebol pela Universidade de Liverpool¹, não adianta pensar, como pedem alguns, em uma lei que impeça os brasileiros de atuar fora do Brasil. “Em qualquer ramo é assim. Se há uma demanda muito grande de profissionais qualificados, mas não há empresas suficientes para empregá-los, a tendência é que esses profissionais procurem a sorte no exterior”.
Para impedir a “evasão de pés”, precisaria haver estrutura mais sólida, bem gerida e capilarizada, que permitisse a sobrevivência de equipes de diferentes recursos, capacidade e ambições. Na Itália, por exemplo, há mais de 4 mil clubes em 10 divisões – 5 em nível nacional; as 4 primeiras são profissionais. Abaixo delas há categorias regionais/provinciais, com ascenso e descenso. Claro que há problemas e nem tudo é plenamente sustentável, mas ainda assim está léguas acima do que temos. E no esporte mais bem-sucedido no país!
Aqui, a terceira divisão nacional – a Série C – mal se mantém. Para as meninas, não há uma coisa nem outra, base ou elite. Assim o mercado é estreito também para quem ama o futebol e poderia exercer outras atividades relacionadas a ele – técnicos, auxiliares, fisioterapeutas, nutricionistas, assessores de comunicação etc.
Sem chances palpáveis de ser jogador profissional, quase sem perspectiva de alcançar o ensino superior e se qualificar para um bom emprego ligado ou não ao futebol, sem a segurança sequer de contar com ocupação cuja remuneração permita a “extravagância” de desfrutar de uma partida de futebol como espectador, como pretender que um aspirante a atleta resista ao convite para tentar a vida em outro lugar?
Ou o Brasil torna o campo mais fértil e atraente, ou não adianta cercá-lo com arame farpado. Sem motivos para ficar, nossos homens continuarão a sair.
*Soninha é jornalista especializada em futebol, vereadora de São Paulo e integrante do Conselho Editorial de Le Monde Diplomatique Brasil.