Crime e Estado no Amazonas
A avalanche de informações sobre a “criminalidade” no Amazonas compõe uma grande narrativa que colabora para reproduzir situações de morte. Para escapar disso e elaborar outras narrativas, é preciso situar o pensamento numa gigantesca zona de fronteira entre dispositivos de poder e movimentos do crime
No fim da tarde do primeiro dia de 2017, muitos moradores de Manaus receberam, pelo celular, mensagens informando vagamente que algo de muito preocupante acontecia na cidade. “A rua tá o foda-se. Evitem sair de casa. No presídio tem um monte de gente morta. O PCC tá em guerra com a FDN. Não tem quase polícia rodando na rua.” Era a mensagem de um policial. Imediatamente alimentamos a rede com avisos e perguntas. Cerca de duas horas depois e de dezenas de mensagens trocadas, chegava mais uma: “Fuga, rebelião no Compaj. Pelo menos cem foram mortos. PCC eliminado”.
Era o início de uma avalanche de informações que invadiu rádios, televisores, computadores e celulares nas três primeiras semanas de janeiro. Para além da interminável sequência de notícias e opiniões de especialistas que pareciam ter acabado de “descobrir” o Amazonas e sua realidade prisional e “criminal”, o que houve foi a intensificação e a amplificação, num curtíssimo período de tempo, da circulação de informações sobre a “criminalidade” em Manaus. Coroada com a comercialização de um DVD com vídeos do massacre, essa avalanche ajudou a reproduzir uma narrativa que não nasceu em 1º de janeiro e só nos ajuda a explicar o “massacre do Compaj” se entendermos que ela faz parte da maquinaria que tornou possível esse acontecimento.
“Lombrou!”
Era mais um dia de visita no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj).1 Por volta das 7h10 da manhã ouviu-se um grito no Pavilhão 5: “Lombrou!”. Após o sinal, alguns presos tomaram agentes penitenciários como escudo humano, exibindo-os para a guarda policial no pátio. Outro grupo se dirigiu ao guarda-volumes da unidade e matou um agente com oito tiros. O portão de acesso ao “seguro” foi arrombado e doze presos foram mortos. Quatro conseguiram fugir para o telhado e outros três foram poupados. A cadeia foi tomada e parecia que nada poderia ser feito pelos agentes, que imploravam pela vida. Foi um sábado infernal. O calendário marcava 25 de maio de 2002.
Um jornal informou que havia “pelo menos dois detentos” que eram “parte de organizações criminosas de expressão nacional”, sendo um do Primeiro Comando da Capital (PCC) e outro do Comando Vermelho (CV). A imprensa rival foi mais impactante: “um plano arquitetado pelos membros do PCC ou apenas vingança pela morte de um companheiro. Essas são as duas alternativas investigadas”.
Para outra narrativa, talvez menos glamourosa, o estopim da “lombra” foi mesmo “apenas vingança” à execução de um detento, espancado até a morte um dia antes, após ter feito uma enfermeira refém com uma arma de papelão. O condenado, prestigiado entre a população carcerária, sofria de problemas mentais e sua morte foi considerada uma “covardia”.
A negociação com o sistema foi mediada por um assaltante de banco, recém-transferido para o Amazonas, estado onde nasceu. Identificado como “membro do PCC”, ele negociou a rendição dos “xerifes” e exigiu a própria ida para um quartel da PM. Em 2011, já fora do PCC, foi testemunha de acusação no julgamento que sentenciou a 120 anos de prisão um dos “xerifes” da “lombra” de 2002. Um ano depois, quando ainda cumpria o semiaberto, foi executado a tiros na feira de artesanato mais importante da cidade, onde desmontava o estande da empresa da qual era sócio. Os jornalistas não esqueceram seu “testemunho”, tampouco a identidade do “xerife” delatado, na época preso em Fortaleza. Sua morte, então, virou mais um provável “acerto de contas do tráfico”.
Anos depois, as notícias de sua morte entram na lista das suspeitas que recaem sobre o tal “xerife”, agora identificado como um dos “chefes” da Família do Norte (FDN). Talvez um dia ainda seja posta na conta da “guerra de facções”. Mas pouca ou nenhuma importância foi dada à carreira de “cagueta” do assaltante-empresário. Em 1999, quando cumpria pena em Alagoas, havia denunciado o “envolvimento” de autoridades públicas e de políticos alagoanos com “práticas criminosas” à CPI do Narcotráfico da Câmara Federal.2 Em 2008, foi também testemunha na CPI do Sistema Carcerário da Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas (Aleam). Essas informações ampliam exponencialmente as possibilidades de explicação para sua “eliminação” – e também de narrativas possíveis. Notoriamente, era um homem de muitos inimigos, dentro e fora do Amazonas, dentro e fora dos presídios, no “crime” e no “Estado”.
Como se vê, as linhas traçadas pela trajetória de um único “preso”, que atravessaram a história de uma rebelião, já complicam facilmente a grande narrativa que procura enquadrá-la e expõem sua arbitrariedade. Muito se especulou sobre a morte do delator, e certamente muitas informações não circularam nos jornais ou relatórios das CPIs. Não queremos nos lançar nesse mesmo mar de conjecturas, mas problematizar a insistência de uma mesma e grande narrativa.
A grande narrativa
Nos anos seguintes, as prisões amazonenses seguiram em ritmo de “lombra”. Em junho de 2003, a recém-criada Unidade Penitenciária do Puraquequara (UPP) viveu suas duas primeiras rebeliões. Em janeiro de 2004, mais duas rebeliões, sendo mais uma no Compaj. O que os presos reivindicavam? O “de sempre”: revisão de processos, transferências e condições dignas de cumprimento da pena. Pediam também a demissão de autoridades e o fim da recém-instalada gestão privada.3
Certamente eram tempos difíceis, dentro e fora das prisões. Mas, para presos e não presos, os primeiros anos da década passada eram definitivamente outros tempos. Naquela época, em Manaus, nem o “galeroso” era associado ao “tráfico de drogas”; nem os comerciantes varejistas de drogas ilícitas, ao “crime organizado”; nem as mortes de jovens, a “acertos de contas”; nem as rebeliões, às estratégias de “facções”. As transformações que nos conduziram à situação atual – na qual todas essas associações soam como naturais e os homicídios de jovens são muito mais comuns4 – não são simples de serem analisadas.
O certo é que, entre 2002 e 2016, a população de Manaus cresceu cerca de 40% e o Amazonas tornou-se o território de uma série inédita de políticas de educação, saúde, moradia e transferência de renda, inimagináveis nos anos 1990. Os recursos para a Segurança Pública aumentaram 250%5 e foram investidos em contratação e formação de policiais, sistemas de informação, delegacias de polícia, armas, veículos e programas de policiamento “comunitário”. O sistema penitenciário recebeu mais verbas e ampliou o número de presídios. As fronteiras foram objeto de políticas e “operações” integradas entre agências de segurança pública e defesa.
Foi exatamente – e curiosamente – durante os mesmos anos desses investimentos em políticas públicas que o “crime organizado” se tornou o personagem e o inimigo principal dos discursos da segurança pública amazonense. Com isso, o “narcotraficante” emerge como sujeito poderoso, com grandes recursos para “dominar” as prisões, “recrutar” jovens, “corromper” agentes públicos e atravessar as fronteiras nacionais.
Traçando algumas linhas presentes em histórias contadas pela justiça e pelo jornalismo amazonenses, e agora reproduzidas por especialistas, é possível reconstruir uma narrativa que, com pequenas variações, costura alguns eventos a uma série de alianças feitas e desfeitas entre indivíduos reconhecidos como “chefes” ou “lideranças”. Nela, a FDN surgiria como uma transformação do Primeiro Comando do Norte (PCN), cujas origens remetem a alianças feitas por volta de 2008 entre alguns poucos traficantes. O PCN provavelmente atuou ao lado do PCC por alguns anos. Mas a FDN poderia também ter surgido pela fusão, em 2012, com a Amigos do Amazonas (ADA), uma organização descoberta pela polícia em 2003.6 Essa transformação ou fusão teria decorrido do fim de uma aliança entre os chefes do PCN e do PCC local e criado uma espécie de “consórcio” entre alguns criminosos de Manaus para garantir o monopólio do tráfico de drogas na cidade e das rotas comerciais que permitem levar essas mercadorias dos produtores, na Colômbia e no Peru, ao mercado externo. Curiosamente, a FDN nasceria reivindicando uma aliança com o CV, “organização” que em 2013 iria completar vinte anos de boas relações com o PCC.
Segundo essa mesma narrativa, no interior das prisões, a nova “organização” – como todas as outras de mesmo tipo – seria convertida em “facção” que disputaria, pavilhão a pavilhão, o domínio da população carcerária. Não é, portanto, por acaso que o ano de 2013 foi marcado por uma sequência de rebeliões e fugas que demonstraram justamente que o sistema penitenciário precisaria se adequar ao novo sistema de alianças.
Em 17 de fevereiro, onze presos ligados ao PCC tentaram fugir da UPP; não conseguiram, e um deles foi morto. Três dias depois, na mesma penitenciária, veio a rebelião: os mesmos presos e ainda outros reivindicavam transferência para outra unidade. Em 2 de março, 42 presos de um pavilhão da FDN fugiram do Compaj e causaram a demissão do secretário de Justiça e Direitos Humanos. Três dias depois, na ala feminina do mesmo presídio, mais uma pequena rebelião com duas agentes penitenciárias tomadas como reféns.
Os grandes momentos do ano, porém, ainda estavam por vir. Em 9 de julho de 2013, os presos do Pavilhão C do Instituto Penal Antônio Trindade (Ipat), “dominado” pelo PCC, se rebelaram para reivindicar sua permanência na unidade e a não transferência de alguns para presídios federais, além do deslocamento de outros da mesma “organização” para lá. No meio da rebelião, 172 presos, dessa vez “ligados à FDN”, fugiram pelos fundos do presídio.
Em 24 de agosto, novamente o Pavilhão C, do PCC, voltou a “lombrar”, reivindicando não somente a transferência de presos de outras unidades, como também a retirada dos presos dos demais pavilhões, que seriam da FDN. A rebelião surtiu o efeito contrário: as autoridades transferiram 108 pessoas do Pavilhão C para os “seguros” de outras unidades. Logo após a chegada à UPP, um dos chefes do PCC foi assassinado.
As rebeliões e pequenas fugas continuaram ao longo dos anos seguintes, quando passamos a conviver cada vez mais, no Amazonas, com informações sobre mortes, fugas, prisões, transferências e ações de “membros” e “lideranças” do “crime organizado”, bem como sobre operações policiais, estaduais e federais, nas ruas e nas fronteiras nacionais. Soubemos da presença da FDN no interior e fora do estado.
Nos noticiários de jornal, nas narrativas da justiça e nas análises dos especialistas, os fatos, seus encadeamentos, protagonistas e motivações nem sempre são os mesmos, mas a intriga dessa narrativa permanece. Para quem acredita que ela é a única possível, o massacre no Compaj deveria ser um acontecimento previsível e, portanto, evitável por alguma ação estatal.
Uma gigantesca zona de fronteira
Para além da sequência de informações pouco consistentes e muito variáveis, importa que o modo como essa grande narrativa se faz verdadeira justifica um conjunto já bastante conhecido de soluções de Estado para combater o “crime organizado” e o “tráfico de drogas”. Em geral, essas ações se reduzem à reforma-ampliação do sistema carcerário, ao aumento da “produtividade” policial nas ruas e, quando se trata da região Norte, privilegiam a “ocupação” da gigantesca “faixa de fronteira” que é a Amazônia. Essas estratégias se alimentam de seu próprio fracasso e colaboram, junto a outros processos, para a exposição de presos, agentes penitenciários, policiais e “bandidos” a situações de morte.
Se quisermos construir outro tipo de intervenção política, o primeiro passo é recusar essa grande narrativa. A começar pela recusa de seus termos. Afinal, nem o “crime organizado” dá conta do que é o “crime” em sua amplitude nem “o Estado” oferece uma imagem capaz de descrever a enorme diversidade de agências de poder que são acionadas “em nome do Estado”.
Para escapar desses conceitos e elaborar outras narrativas que não alimentem as velhas soluções autoritárias, é necessário levar a sério o ponto de vista de presos, policiais, agentes penitenciários, comerciantes de mercadorias ilícitas e tantos outros homens e mulheres, imersos nesse universo de relações e que aparecem como “coadjuvantes” sob constante suspeição. E é preciso fazê-lo sem recair na vitimização ou na tentação de determinar a legalidade ou a ilegalidade que supostamente caberia a cada um.7
O que os estudos que realizam esse exercício nos mostram é que o “crime” é um “movimento” feito de outros tantos movimentos nos quais vão sendo tramadas, à base de negociações inconstantes, redes instáveis de relações pessoais. É um movimento que atravessa territórios, define e redefine amizades e inimizades, relações de respeito, razões para vinganças, e interpela, inclusive, pessoas que nunca desejaram “se envolver” nele e vivem tentando contorná-lo. São redes que certamente sofrem processos de hierarquização e agrupamento, forjando “coletivos”. Mas estes são geralmente frágeis e sempre desfeitos, às vezes em função de dinheiro, mas quase sempre em função de “considerações” de uns sobre ações, palavras, ideias e “caminhadas” de outros.
Do mesmo modo, aquilo que é nomeado “Estado” é feito também de/por muitas redes que conformam dispositivos e agências de poder extremamente diversos entre si, com alto grau de independência, muitos conflitos e colaborações imprevistas. São redes feitas de carne e osso, situadas no tempo e no espaço, que operam em um jogo entre as hierarquias dos regulamentos oficiais e outras sobre as quais nenhum texto pode legislar. Enfim, “o Estado” é feito cotidianamente à base de negociações que definem e redefinem a todo momento as fronteiras internas e externas entre o legal e o ilegal, o formal e o informal, o lícito e o ilícito, o moral e o imoral.
Assim, em se tratando das relações entre crime e Estado, se existe uma gigantesca fronteira a ser observada, compreendida e cuidada, é aquela que se situa entre a miríade de agências que fazem o Estado e os mil movimentos que fazem o crime. Na vida social dessa fronteira, indivíduos e coletivos não se definem exclusivamente pelo que é Estado e pelo que não é, nem pelo que é crime e pelo que não é. É nesse lugar que precisamos estar para pensar e enfrentar o que vem por aí.
*Fabio Magalhães Candotti é professor de Sociologia da Universidade Federal do Amazonas; Flávia Melo da Cunha é doutoranda em Antropologia pela Universidade de São Paulo; e Ítalo Barbosa Lima Siqueira é doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará. Os três são pesquisadores do grupo de pesquisa Ilhargas – Cidades, Políticas e Saberes na Amazônia.
{Le Monde Diplomatique Brasil – edição 115 – fevereiro de 2017}