Crimes (econômicos) sem castigo
Ao deslocarem sua produção para os países mais pobres, as transnacionais não procuram apenas mão de obra barata. A fragilidade das leis sociais e ambientais as protege das perseguições judiciais. Essa impunidade prospera também em razão da falta de instâncias internacionais e de tribunais competentes nesses assuntosAurélien Bernier
dias 29 de maio e 1o de junho de 2014, a cidade de Montreal acolheu a primeira sessão canadense do Tribunal Permanente dos Povos (TPP) relativa à indústria da mineração. Durante um processo fictício, militantes e personalidades da sociedade civil “julgaram” grandes empresas acusadas de violar os direitos humanos e destruir o meio ambiente. Esse procedimento ao mesmo tempo teatral e sério visa não apenas evidenciar os danos ligados à extração de matérias-primas, mas também denunciar a impunidade que beneficia as transnacionais instaladas nos países pobres.
Em direito internacional, a noção de crime econômico contra os povos ou contra o meio ambiente não existe. A “comunidade internacional” não é desprovida de instrumentos jurídicos, tais como a Corte Internacional de Justiça ou a Corte Penal Internacional, mas ambas não se aplicam às atividades econômicas que as empresas desenvolvem no exterior. As marés negras, os acidentes industriais e a corrupção de funcionários locais não merecem, ao que parece, uma jurisdição competente. Ou melhor, os países ocidentais não consideram judicioso dotar seus tribunais de meios para julgar as ações de suas transnacionais no exterior: seria uma forma de violação da soberania nacional dos países que acolhem as ditas empresas.
A lei francesa, por exemplo, determina que um crime ou um delito cometido fora do território será julgado na França se, e somente se, “o crime ou o delito for punido ao mesmo tempo pela lei francesa e pela lei estrangeira, e se foi constatado por uma decisão definitiva da jurisdição estrangeira”. Em suma, para que os dirigentes da Total sejam sancionados na França por seu apoio à junta militar da Birmânia, é preciso que eles tenham sido previamente condenados, pelos mesmos fatos, pelo tribunal de Naypyidaw, a capital da… Birmânia. Tal perspectiva, até agora, não tirou o sono dos “criadores de riqueza” franceses, e com razão: graças à chantagem de se mudarem para outro lugar e aos meios gigantescos de que dispõem as transnacionais, uma condenação em um país tão pobre e corrompido se revela na maioria das vezes algo utópico.
“As empresas deveriam respeitar os direitos humanos”
No entanto, as ONGs ainda esperam encontrar uma falha nesse sistema de impunidade. É o caso da Sherpa, uma associação de juristas fundada em 2001 em Paris, da Povos Solidários e do coletivo Ética na Etiqueta. Essas três entidades deram queixa contra a rede Auchan no caso do desmoronamento da fábrica têxtil de Rana Plaza, em 24 de abril de 2013, em Bangladesh.1 “A Auchan inscreve sua ação nos princípios do direito vindos da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, da declaração relativa aos princípios e direitos fundamentais da OIT [Organização Internacional do Trabalho], de 1998, e dos princípios diretores da OCDE [Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico]”, explica a empresa em seu site. “Esses textos formam um corpus de direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais que a Auchan aplica a seus parceiros.” Será que os 1.135 mortos do Rana Plaza concordariam com essa análise? Etiquetas da In Extenso, uma marca da Auchan, foram encontradas nas ruínas da confecção, mas o grupo se recusou a indenizar as vítimas, contestando qualquer ligação direta ou indireta com o estabelecimento. Alegando “prática comercial enganosa”, as ONGs conseguiram obter a abertura de uma investigação preliminar. Para Gérard Mulliez, fundador do grupo Auchan e terceira maior fortuna da França, as algemas ainda estão distantes, mas, ainda assim, trata-se de uma advertência.
No seio das Nações Unidas, alguns Estados tentam modificar o direito internacional. Em junho de 2014, o Conselho dos Direitos do Homem examinou um projeto de resolução apresentado pelo Equador e pela África do Sul, a respeito da responsabilidade social e ambiental das transnacionais. O texto propunha a criação de um grupo de trabalho encarregado de elaborar um “instrumento internacional de regras jurídicas para regulamentar, dentro do direito internacional dos direitos humanos, as atividades de empresas transnacionais e outras empresas”. Submetida ao voto, essa resolução foi adotada a despeito da oposição das nações mais ricas: o conjunto de países da União Europeia, o Japão e os Estados Unidos se manifestaram contra. “A França preferiu uma abordagem progressiva, que se baseia nos trabalhos iniciados em 2011, de maneira a poder aplicar concretamente essas medidas mais rapidamente”, tentou justificar Annick Girardin, secretária de Estado encarregada do Desenvolvimento e da Francofonia.2 Se os grandes patrões do CAC 40 (as quarenta maiores empresas francesas cotadas na Bolsa) tivessem desfilado no banco dos réus, os poderes públicos apoiariam os queixosos?
A via “mais concreta e rápida” desejada pelo governo se chama “princípios diretores das Nações Unidas relativos às empresas e aos direitos humanos”. Redigidos em estreito acordo com as empresas privadas, eles são não reguladores e completamente inofensivos. O 11o princípio indica inclusive que “as empresas deveriam respeitar os direitos humanos”, um condicional que diz muito sobre a motivação política dos redatores.
Empurrando esses ataques contra a impunidade das transnacionais para a responsabilidade da ONU, François Hollande, Manuel Valls e suas equipes devem também responder aos ataques internos. Em novembro de 2013, deputados ecologistas e socialistas apresentaram um projeto de lei relativo ao “dever de vigilância das empresas-mães e das empresas que dão ordens”. O texto, que está demorando a ser examinado, introduziria um dever de prevenção de danos ecológicos e ataques aos direitos fundamentais, assim como um regime de responsabilidade das empresas-mães francesas. Será que um dia ele será votado? É pouco provável. O Movimento das Empresas da França (Medef) já se opõe com vigor, assim como o Ministério da Economia. Ao que parece, o assunto será encaminhado para o nível europeu, do qual se conhece a grande firmeza – para não dizer crueldade – em relação aos lobbies econômicos…
Aurélien Bernier é autor de Les OGM en guerre contre la societé (Paris, Attac/Mille et Une Nuits, 2005) e co-autor de Transgénial! (Paris, Attac/Mille et Une Nuits, 2006).