Crise do coronavírus e o futuro da mobilidade em São Paulo
Ônibus podem ser protagonistas de uma mobilidade mais democrática e menos poluente
São Paulo, colosso urbano com mais de doze milhões de habitantes, é a mais populosa cidade do hemisfério ocidental. Seus desafios urbanos são igualmente grandiosos. A pesquisa “Viver em São Paulo: Qualidade de Vida (2020)”, da Rede Nossa São Paulo, levantou as principais queixas dos paulistanos, obtendo “trânsito” como um dos itens mais citados, atrás apenas de “violência e criminalidade”. Ainda foram mencionados como problemas a “poluição” e o “tempo de locomoção”.
Congestionamentos, poluição do ar, mortes e morbidades decorrentes do trânsito, além do comprometimento do restrito orçamento das famílias com elevadas despesas de deslocamento, são disfunções decorrentes de um projeto de desenvolvimento urbano rodoviarista e centrado no uso do automóvel particular. Modelo esse historicamente seguido pela maioria dos tomadores de decisão da capital paulista. Há 90 anos, Francisco Prestes Maia, engenheiro-arquiteto que viria a ser prefeito de São Paulo em duas ocasiões futuras, apresentou seu Plano de Avenidas, conhecido documento definidor do funcionamento não só dessa cidade, como do urbanismo brasileiro. O desenho viário de Prestes Maia priorizava o transporte individual e vemos seus estruturais e duradouros resultados no cotidiano atual.
Na capital paulista, os automóveis são os grandes responsáveis pela excessiva ocupação do espaço viário. Eles respondem por 88% de toda quilometragem percorrida no transporte rodoviário de passageiros quando considerado apenas veículos motorizados – o que também inclui motocicletas (9%) e ônibus (3%). Valendo-se desse mesmo recorte, segundo a Pesquisa Origem e Destino (OD) 2017 do Metrô, somente 36% dos trajetos diários de pessoas que acontecem no território paulistano são feitas por meio de carro. Ou seja, uma parcela privilegiada da população toma a maior parte do espaço público e dificulta a circulação dos ônibus. Para os passageiros de ônibus, a péssima sensação de confinamento no trânsito é intensificada pela superlotação nos veículos.
A insalubre condição ambiental da capital também tem a marca desse padrão de mobilidade urbana que polui o ar que respiramos e emite gases de efeito estufa (GEE) em demasia, interferindo no sistema climático global. Em um dia típico de São Paulo, as emissões totais de material particulado (gerado na queima de combustíveis e pelo desgaste de pneus, freios e pistas) oriundas da frota de automóveis são cerca de três vezes maiores do que aquelas provenientes de ônibus. O mesmo acontece com relação às emissões de dióxido de carbono.
A matemática é simples. Os ônibus transportam mais gente a um custo menor, ocupando, proporcionalmente, menos espaço viário e poluindo menos. Futuras gestões municipais que estejam comprometidas com o bem estar da população devem, então, priorizar ações para uma melhoria radical do sistema de transporte público paulistano, bem como para seu aperfeiçoamento contínuo.
Parte desse caminho já tem sido pavimentado. Uma série de políticas e planos foram aprovados em direção a uma mobilidade urbana que dê maior prioridade às pessoas e ao transporte coletivo. Em 2009, por exemplo, foi promulgada a Política Municipal de Mudança do Clima (PMMC), que prevê “ampliação da oferta de transporte público e estímulo ao uso de meios de transporte com menor potencial poluidor e emissor de gases de efeito estufa (…)”. A nível federal, a Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU), de 2012, traz diretrizes como a “prioridade dos modos de transportes não motorizados sobre os motorizados e dos serviços de transporte público coletivo sobre o transporte individual motorizado”. Voltando ao município, foi promulgado em 2014 o mais atual Plano Diretor Estratégico (PDE), lei que regulamenta o uso do solo da cidade, incorporando objetivos de desenvolvimento orientado ao transporte de massa. Já em 2015, São Paulo publicou seu Plano de Mobilidade, elaborado de forma congruente com a PNMU e com o PDE.
Revisada em 2018, a PMMC impõe, em um prazo de 20 anos, a eliminação total das emissões de dióxido de carbono e quase total das emissões de poluentes atmosféricos locais (material particulado e óxidos de nitrogênio) derivadas do transporte por ônibus. Um objetivo tanto desafiador quanto essencial para preservar a saúde dos cidadãos e garantir a modernização do sistema. Para mudar o padrão de mobilidade do munícipe, é necessário atrair usuários do automóvel para o transporte coletivo. Para isso, os ônibus devem ser confiáveis, rápidos, confortáveis, não poluentes e silenciosos.
Buscando contribuir na transformação desses bons ventos regulatórios em mudanças concretas, o Instituto de Energia e Meio Ambiente acaba de lançar o Monitor de Ônibus SP, uma plataforma online onde é possível acompanhar dados sobre a operação dos coletivos paulistanos, com destaque para a frota em circulação, sua tecnologia ambiental, a oferta de lugares, a velocidade de tráfego e as emissões atmosféricas. Uma primeira leitura sobre os dados mostrou o duro impacto ocasionado pela pandemia de Covid-19.
A queda de passageiros nos ônibus foi intensa. Na terça-feira 10 de março, pré-pandemia, o sistema de ônibus registrou o número de 9,1 milhões de passageiros transportados, recorde de 2020. Já a média de passageiros em dias úteis de fevereiro até o meio de março foi de 8,6 milhões. Depois disso, com o aumento das notícias sobre a pandemia e devido às recomendações de distanciamento social, o número de passageiros começou a minguar. No período de maior distanciamento, entre o início oficial da quarentena no estado, dia 24 de março, e o fim do mês de junho, a média de passageiros em dias úteis foi de apenas 2,9 milhões. Esse valor representa uma queda de dois terços em relação à média pré-pandemia, aproximando-se da média de passageiros observada para os domingos de fevereiro (2,8 milhões). Desde junho, o número de passageiros vem timidamente aumentando e, no início de setembro, encontrava-se entre quatro e cinco milhões de passageiros diários, cerca de metade da condição normal. Mesmo com a crise sanitária, milhões de pessoas ainda dependem ou optam pelo transporte público, o que reforça seu papel em assegurar os essenciais direitos ao transporte e à cidade.
Passageiros transportados por dia no sistema de ônibus municipais de SP (01 de janeiro a 08 de setembro de 2020)
O abrupto tombo da demanda gerou queda na arrecadação tarifária. Em um primeiro momento, o sistema, altamente dependente da tarifa, optou pela redução da frota em circulação para equilibrar receitas e custos. Nos dias úteis de fevereiro até 15 de março pré-pandemia, a média de frota foi de 13,1 mil ônibus circulantes. Nos meses de abril e maio, essa média caiu para 8,1 mil veículos. Nessa situação, houve queixas de usuários afirmando que tal corte de frota manteve ou até piorou as condições de aglomeração e lotação dentro dos veículos, nos terminais ou mesmo em pontos de embarque, uma situação temerária no contexto da pandemia.
Quadro semelhante ocorreu em outras cidades brasileiras, expondo a fragilidade de uma questão não equacionada de modo generalizado no país: o custeio do transporte público depende fortemente da tarifa paga pelo usuário. Segundo o documento “Indicadores de efetividade da Política Nacional de Mobilidade Urbana”, publicado em 2016 pelo Ministério das Cidades (hoje incorporado ao Ministério do Desenvolvimento Regional), 94% da receita do transporte por ônibus em 15 municípios com mais de um milhão de habitantes provem do pagamento de tarifas. Tal condição coloca os sistemas de transporte público em posição vulnerável a crises como a atual pandemia, sendo difícil viabilizar respostas que não onerem seus usuários. Além disso, em um sistema custeado pelo pagamento de passagens, é vantajoso para a empresa operadora que um ônibus rode no máximo de sua lotação, uma vez que quanto mais gente se coloca dentro dele, mais se maximiza a receita em relação ao custo fixo da operação do veículo.
São Paulo destoa de outras cidades brasileiras, pois, somando-se à receita tarifária, parte do orçamento público é destinado a subsidiar o transporte coletivo. Isso possibilitou que, percebendo a necessidade de aumentar a frota de ônibus para evitar aglomerações, a cidade decidisse por retornar a oferta de coletivos a níveis mais próximos dos normais. Em junho, a frota já operava em torno do patamar de 12 mil ônibus em circulação.
Frota de ônibus municipais de SP em circulação por dia (01 de janeiro a 08 de setembro de 2020)
Há, entretanto, um outro elemento trazido pelo quadro crítico da pandemia que pode motivar os gestores a aprimorarem o sistema de transporte: houve aumento da velocidade e da eficiência de operação dos ônibus na capital paulista. Com mais pessoas em casa, muitos automóveis deixaram de competir por espaço na via com o transporte público, que pôde, assim, rodar com mais fluidez. Foi como se todas as vias por onde circulam os ônibus tivessem se tornado faixas exclusivas para eles. Em dias úteis normais, no pré-pandemia, a velocidade média oscilava próxima a um patamar de 15 km/h. Na primeira semana de quarentena oficial, a velocidade média dos ônibus no horário de pico (7h às 10h) atingiu 22 km/h, mais de 40% de acréscimo. No início de setembro, esse patamar encontra-se próximo aos 19 km/h. A queda no número de passageiros é outro fator que, muito provavelmente, influenciou o aumento da velocidade: com menos pessoas esperando nos pontos de parada, os ônibus ficam menos tempo aguardando o embarque e desembarque. Esse experimento inesperado, mas de grande escala, aponta o potencial de melhoria da operação de ônibus por meio de medidas como a priorização do ônibus nas ruas, a regularização de intervalos de passagem de ônibus nos pontos de parada e outras formas de dar agilidade ao embarque e desembarque de passageiros.
Velocidade média diária de ônibus municipais de SP entre 7 e 10 da manhã (01 de janeiro a 08 de setembro de 2020)
É com a implantação de medidas como essas que os objetivos das políticas e planos citados parágrafos acima poderão ser concretizados, melhorando não só a vida de quem usa o transporte coletivo, mas também a qualidade ambiental da metrópole. Afinal, circulando com menos interrupções, os ônibus têm seus motores menos exigidos, o que lhes confere economia de combustível e, consequentemente, reduz as emissões de poluentes e gases de efeito estufa (GEE). Entre o começo do ano e o dia 15 de março, a quantidade de material particulado emitido na combustão para cada quilômetro rodado por um ônibus era de, em média, 102 miligramas. Já entre os meses de abril e julho, esse fator de emissão médio foi igual a 87 mg/km. Ou seja, com o aumento da velocidade de operação, os ônibus foram 15% menos poluidores. Em condições pré-pandemia, isso seria equivalente à adoção de quase dois mil ônibus elétricos na cidade.
Cabe destacar que hoje, em São Paulo, circulam menos de 20 ônibus elétricos a bateria e cerca de 200 trólebus (veículos alimentados por linhas elétricas aéreas). Para eliminar as emissões conforme prevê a Política Municipal de Mudança do Clima, a evolução tecnológica com a adoção de ônibus não poluentes é absolutamente necessária. Simultaneamente a essa transformação, a cidade ganhará ao aproveitar a melhoria de condições operacionais para aumentar a eficiência de qualquer tecnologia aplicada.
Material particulado gerado por combustão em ônibus para cada km rodado (01 de janeiro a 30 de julho de 2020)
Considerando que, de forma gradual, poderemos voltar ao dito “normal”, os problemas de mobilidade urbana anteriormente existentes em São Paulo – e em muitas outras cidades do Brasil e do mundo – deverão permanecer, quando não se agravarem. Para que não haja uma deterioração ainda maior das condições de deslocamento da maioria das pessoas, será preciso retomar e fortalecer o caminho da priorização do transporte público conforme já previsto em políticas e planos. O transporte coletivo precisa ser seguro e atrativo, sendo necessário evitar que veículos andem lotados. Caso contrário, a tendência de escolha do automóvel por aqueles que têm condições de bancá-lo poderá se intensificar. É urgente, então, implantar soluções que aumentem a oferta e a priorização dos ônibus no viário, adotar tecnologias veiculares não poluentes e que tragam maior conforto, bem como desenvolver um sistema de mobilidade coletiva conectado com modos ativos de deslocamento. Tudo isso requererá revisitar os modelos de custeio do transporte, permitindo que o modo coletivo evolua positivamente de forma socialmente justa. Serão imperativos, sobretudo, firmes compromissos políticos.
David Tsai e Felipe Barcellos, pesquisadores do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA)