Cristina e o Brasil
A diplomacia brasileira alimenta a esperança de selar com o novo governo argentino uma estratégia conjunta para a América Latina. Mas a presidenta eleita não abre mão de se situar com independência entre Brasília e Caracas
Em 2003, Luiz Inácio Lula da Silva pouco ou nada sabia a respeito do candidato presidencial Néstor Kirchner. Mas isso não representou obstáculo para que lhe desse respaldo eleitoral ao recebê-lo no Palácio do Planalto. De bom humor, Lula comentou na ocasião que torcia por uma vitória de seu time, o Corinthians, no confronto próximo com o River Plate, time do ex-presidente Carlos Menen, rival de Kirchner nas eleições1.
A ironia futebolística carregava uma mensagem política explícita: o governo brasileiro se opunha sem meias-palavras a Menem, definido por Lula como um dos “meninos de ouro” do neoliberalismo latino-americano dos anos 1990, junto com o peruano Alberto Fujimori e o mexicano Carlos Salinas. Com Menem na presidência argentina, teria sido impensável juntar forças contra a investida da Casa Branca para que a Alca entrasse em vigor em 2005.
Kirchner assumiu em maio e, em outubro de 2003, firmou com Lula o Consenso de Buenos Aires, um contraponto ao de Washington (cujas teses inspiraram, em certa medida, o Mercosul nos idos de março de 1991, na época de Menem e do ex-presidente Fernando Collor de Mello). Genérico, o novo consenso não foi um plano de ação, mas o marco que assinalou o esgotamento de um paradigma: “Kirchner e eu estamos maduros para não permitir que a integração seja apenas comercial […] apostamos fortemente na construção do Mercosul como um bloco destinado a ser não só econômico e institucional, como também político”, prometeu Lula2.
“O problema é que se passaram quatro anos desde o Consenso de Buenos Aires e ainda não contamos com um projeto de integração coerente com suas formulações”, afirma o especialista André Martin3. E acrescenta: “Ter virado a página do Consenso de Washington não é pouca coisa, mas a agenda com a Argentina seguiu pautada por um pragmatismo desnecessário. O Brasil é determinante para a América Latina. Só que ele ainda a está descobrindo, porque continuamos sob o peso herdado do Império, quando dávamos as costas à América hispânica”.
Martin, assim como outros estudiosos, lembra a “histórica alternância brasileira entre o Primeiro e o Terceiro Mundos”. Trata-se de uma tradição diplomática que data de, pelo menos, a segunda etapa da ditadura militar, nos anos 70, sob o governo do general Ernesto Geisel, que oscilou entre o alinhamento com Washington e uma participação ativa no Movimento dos Países Não-Alinhados. Em 1982, durante a Guerra das Malvinas, o presidente João Baptista Figueiredo adotou uma posição eqüidistante do eixo Washington-Londres e da ditadura militar argentina.
Resguardadas as óbvias diferenças e sem ignorar o caráter democrático e progressista do atual governo brasileiro, é possível notar que, em sua política externa, sobrevivem vestígios dessa tendência pendular. Lula impulsionou uma política ativa em favor do eixo Sul-Sul, de que é prova a cúpula Brasil-Índia-África do Sul em Pretória, em meados de outubro. Lá, o presidente brasileiro, o primeiro-ministro indiano Manmohan Singh e o presidente sul-africano Thabo Mbeki consolidaram uma “frente” de potências emergentes contra a “arrogância” do Norte e o fim das barreiras às exportações de produtos primários na Rodada de Doha da Organização Mundial do Comércio. Porém, ao mesmo tempo, Lula procura manter-se em bons termos com a Casa Branca e, durante a visita à África, telefonou para George Bush, reiterando seu interesse de que as negociações na OMC tenham um final auspicioso.
Algo semelhante ocorrera em 2005, quando recebeu Bush na Granja do Torto para um longo diálogo sobre a “revolta” sul-americana contra a Alca, na Cúpula das Américas de Mar del Plata.
Encerrar o capítulo estritamente econômico e abrir caminho para uma etapa de entendimentos políticos no Mercosul foi a marca desses quatro anos de relacionamento entre Brasília e Buenos Aires, que o governo brasileiro pretende prolongar por mais quatro anos com a eleição de Cristina Fernández de Kirchner. Para não dar margem a dúvidas, o chefe de Estado brasileiro recebeu Cristina às vésperas das eleições argentinas, no dia 3 de outubro último, em um gesto semelhante ao protagonizado com seu marido. A diferença é que, dessa vez, Lula sabia muito bem com quem estava falando e sua prioridade já não era mais erguer um muro de contenção contra a Alca — projeto praticamente enterrado, como se admite privadamente nos círculos diplomáticos.
Lula agora pretende estabelecer um novo pacto político com o kirchnerismo, para fazer do Brasil e da Argentina o núcleo político da região, tendo o Mercosul como a referência na qual se deve espelhar a incipiente União das Nações Sul-Americanas (Unasul), constituída em 17 de abril deste ano em Isla Margarita, na Venezuela. O governo brasileiro deu seu respaldo à criação da Unasul, impulsionada por Hugo Chávez, mas sabendo muito bem que ali vão coabitar concepções ideológicas distintas e estilos de trabalho diferentes, visando pelo menos três formas de integração: o Mercosul, a Comunidade Andina de Nações (CAN) e a Alternativa Bolivariana para os Povos da Nossa América (Alba), da qual tomam parte Venezuela, Bolívia e Cuba, podendo vir a integrá-la o Equador.
O namoro entre Lula e o kirchnerismo, que a rigor é resultado de uma política externa com foco na Argentina e na América do Sul, encontra não poucas resistências em determinados setores das classes altas e da grande mídia brasileiras, para as quais a opção significa pôr em segundo plano as relações com os Estados Unidos e atiçar as tensões nas negociações da OMC.
Aceleração do crescimento
As bases materiais em que se sustenta o pacto renovado entre o Planalto e uma Casa Rosada comandada por Cristina Kirchner são, de longe, mais sólidas que as de 2003. Quando Lula recebeu seu marido, o Brasil se encontrava tecnicamente em recessão e as taxas de juros estavam em torno de 20% ao ano. Em outubro de 2007, as expectativas de crescimento anual, embora ainda modestas para um país emergente, giram em torno de 4,8%, segundo dados oficiais, e as taxas já caíram para 11,25%.
Em 2003, Lula comentou com Néstor Kirchner que seu ministro da Fazenda, o petista neoliberal Antonio Palocci, devia cortar gastos para que seu governo ganhasse credibilidade perante a comunidade financeira internacional, garantindo a “estabilidade”. Em 2007, o discurso do presidente brasileiro avalia a estabilidade como uma conquista, mas seus esforços estão concentrados no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que, até dezembro de 2010, prevê investimentos públicos e privados da ordem de 275 bilhões de dólares, a maior parte dos quais destinado a grandes obras de infra-estrutura, construção de moradias populares e saneamento básico nas áreas pobres das grandes metrópoles.
O monetarista Palocci deixou a pasta da Fazenda, para a qual Lula nomeou o desenvolvimentista Guido Mantega, impulsionador de um fundo soberano que aproveite parte das reservas acumuladas ao longo desses anos (cerca de 160 bilhões de dólares) e as destine ao financiamento de investimentos na América do Sul.
A recepção oferecida por Lula a Cristina Kirchner, em 3 de outubro último, foi organizada com o mesmo cuidado de uma visita de chefe de Estado, o que na prática ela realmente já era. O ministro das Relações Exteriores brasileiro, Celso Amorim, conversou sobre a viagem da ainda candidata com seu colega argentino Jorge Taiana, dois meses antes, no dia 3 de agosto, durante uma reunião no Palácio do Itamaraty, que contou com a presença do alto escalão diplomático4.
Ao se concluir o almoço Lula-Cristina, o assessor para Assuntos Internacionais brasileiro, Marco Aurélio Garcia, frisou que “o interessante é que ela acenou com a continuidade das políticas essenciais”. A tônica na continuidade também esteve presente nas declarações da futura presidenta: “As eleições na Argentina sempre foram uma roleta-russa. Ninguém sabia o que o sucessor poderia fazer com as políticas de um governo anterior. Agora, haverá continuidade nas questões básicas”.
Mas o voto de confiança brasileiro em Cristina Kirchner comporta alguma nuanças: fontes da diplomacia e do petismo dão a entender que a expectativa do governo é de que ela seja mais conciliadora que o marido. E que, por seu intermédio, o Planalto e a Casa Rosada articulem um eixo solidário, porém diferenciado do composto pelos presidentes Hugo Chávez, Evo Morales e Rafael Correa, caracterizados como “companheiros” problemáticos.
Uma leitura atenta das declarações e ações do próprio Lula nos últimos meses leva à mesma conclusão.
Desde que iniciou seu segundo mandato, em janeiro último, o presidente não viajou mais a Caracas para reunir-se com Chávez (com quem se encontrou em setembro em Manaus, para abrandar o descontentamento venezuelano com a demora no Gasoduto do Sul), e sim para Buenos Aires e Santiago do Chile, onde participou junto com Michele Bachelet da seção regional do Foro Econômico de Davos. Também não se encontrou com Evo Morales, de quem se distanciou após a estatização do gás, em maio de 2006. E, quando recebeu o equatoriano Rafael Correa em Brasília, foi para transmitir-lhe suas reservas acerca do Banco do Sul.
O acordo para instituir esse banco de fomento, firmado em 8 de outubro no Rio de Janeiro por sete ministros e representantes das pastas econômicas sul-americanas, entre eles o brasileiro Guido Mantega e o argentino Miguel Peirano, foi um nítido revés diplomático para o Brasil, que se viu obrigado a ceder às pressões do grupo “bolivariano”, integrado por Chávez, Morales e Correa, com o decidido apoio de Buenos Aires.
Ainda que no Rio de Janeiro tenham sido traçadas as linhas gerais da ata de fundação do banco, as posições sobre qual será seu perfil e a distribuição do poder em seu quadro diretivo são assuntos em aberto. Existe uma tensão subjacente sobre quais serão os projetos a ganhar prioridade. Brasília defende que a saúde financeira é um pré-requisito para que o banco seja afiançado e repele qualquer fórmula que suponha a liberação de dinheiro a fundo perdido. Caracas, por sua vez, sustenta a necessidade de acentuar o perfil social e propõe financiar projetos mesmo quando não se mostrarem lucrativos em termos contábeis.
Em outro tópico polêmico, o ministro venezuelano do Poder Popular para as Finanças, Rodrigo Cabezas, propôs, no Rio de Janeiro, uma mesa diretiva com representação igualitária, em que cada país conte com um voto. O ministro Mantega defende que o peso de cada país deva ser proporcional a seu aporte de capital.
Mantega teme uma condução colegiada dos fundos, estimados em 7 bilhões de dólares, que na maior parte procederão dos cofres brasileiros. Esse é um dos motivos pelos quais, pouco antes de concordar com a criação do Banco do Sul, ele declarou, em Washington, durante a reunião do Fundo Monetário Internacional, sua intenção de criar um Fundo Soberano. Dotado de cerca de 10 bilhões de dólares, procedentes das formidáveis reservas brasileiras acumuladas ao longo desses anos de superávit comercial, a instituição se destinaria a respaldar investimentos de grupos brasileiros em obras de infra-estrutura, dando continuidade desse modo à expansão de construtoras poderosas, como a Odebrecht e a Camargo Corrêa.
Mantega também comemorou as reformas promovidas pelo novo diretor do FMI, o francês Dominique Strauss-Kahn, que propôs conceder, nas decisões da instituição, maior peso, embora sempre minoritário, para os países em desenvolvimento. Lula, que apesar da aproximação com Néstor Kirchner evitou apoiá-lo em seu confronto com o FMI no ano de 2003, espera que Cristina Kirchner seja mais receptiva aos supostos ventos reformistas que soprariam no órgão.
Com o papel global que tem a desempenhar, e o trunfo de ter saldado a dívida com o FMI em 2005, Brasília considera inaceitável ficar de fora da comunidade financeira internacional. E não pretende fazer do Banco do Sul uma entidade que socorra os países sul-americanos em caso de turbulências, como propôs Hugo Chávez.
Todos esses movimentos simultâneos de diplomacia regional e financeira, executados com singular competência pelos quadros do Itamaraty, acontecem no momento em que o Congresso brasileiro trata do pedido de adesão da Venezuela ao Mercosul.
No dia 24 de outubro, depois de mais de sete meses de polêmicas, a Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados aprovou a iniciativa. Isso aconteceu após um ríspido debate entre os representantes do PT e a oposição conservadora, integrada pelo PSBD e o DEM.
O voto favorável livrou de obstáculos a proposta apoiada pelo Planalto, mas esta ainda terá de se haver com a resistência de boa parte do Senado, em que o PSDB ocupa a segunda minoria. Em todo caso, é de se esperar que Caracas acabe conseguindo uma cadeira como membro de pleno direito no bloco.
Quando isso ocorrer, terá se configurado uma nova relação de forças na mesa do poder regional.
Assim, é provável, embora não certo, que tanto o novo Mercosul como o Banco do Sul se tornem realidade no primeiro semestre de 2008. E que, nesse caso, ocupem boa parte da agenda internacional da presidenta Cristina Kirchner. As posições que vem assumindo, de hábil eqüidistância entre Brasília e Caracas, serão então postas à prova.
Outro capítulo, talvez o mais relevante, no relacionamento entre Cristina e Lula será o da energia. Ainda como candidata, a atual presidenta abordou o tema ao visitar Brasília. E o fez dando ênfase ao fato de que a Bolívia e a Venezuela são atores vitais para uma “integração energética”. Esta é uma questão que se reveste de urgência também para o Brasil, pois suas taxas de crescimento não poderão continuar nos atuais índices sem um incremento de importações do gás boliviano.
O governo brasileiro necessita que Cristina contribua para aplacar os descontentamentos dos países vizinhos, encontrar uma linha intermediária entre os radicalismos de uns e a excessiva parcimônia de outros e, não menos importante, gerar objetivos transformadores mas exeqüíveis e um estilo de trabalho eficaz. Se entre Brasil e Argentina não existir esse tipo de acordo, tempos sombrios rondarão a integração regional.
*Dario Pignotti é jornalista, correspondente da agência italiana Ansa no Brasil.