A política institucional é coisa séria e, por mais que a tratemos com a devida seriedade, não se pode negar o impacto do humor nos processos eleitorais. Não me refiro ao humor cotidiano, ao estado de espírito de boas vibrações, mas ao humor enquanto linguagem que pode ter efeitos nocivos quando não demarca a crítica de forma objetiva.
Lembrem que o racismo, o machismo, a lgbtfobia, o capacitismo, o etarismo, entre outras violências, se apresentaram nas nossas vidas como projeto endossado por piadas que revelaram a ignorância sobre determinados grupos, e que ajudaram a construir um imaginário depreciativo dos mesmos. O mesmo efeito pode ser provocado por uma piada solta que, embora gere empatia para determinados universos, deveriam no mínimo sugerir cuidado.
Em 2018, com um pleito escancaradamente afetado pela criação do meme inspirado na figura tosca de Bolsonaro, alguns veículos de comunicação, ao tentarem satirizar sua figura, acabaram por fortalecê-la. A sátira é um risco enorme em um país onde a interpretação do texto (falado, escrito ou ouvido) ainda é um problema, remontando às questões históricas de acesso à leitura e ao letramento. Neste caso, de quatro anos atrás, o resultado foi que muita gente saiu do armário, na pior das intenções, ao se verem representadas por tanta falta de escrúpulo.
É necessário observar com cautela o papel do humor nos processos eleitorais pós-redemocratização. Voltemos um pouco mais no tempo, a 1988, quando, sob forma de protesto, o eleitorado do Rio de Janeiro destinou cerca de 400 mil votos ao Macaco Tião, o simpático chipanzé do zoológico carioca. Obviamente, tais votos não elegeram o animal para o governo, resultando em um protesto meramente satírico, mas já revelador, haja vista os fenômenos que o sucederam.
Nesta barca os tripulantes são inúmeros e precedem em muito o conceito atual de meme. Do humorista que assumidamente nada sabia de política (e suas estratégias para implantação de melhorias sociais), que, por sua expressiva votação, acabou elegendo outros tantos cujos feitos ou desfeitos até hoje não sabemos, passando por todos os sub-representantes de causas aleatórias, pelas personas beirando o ataque de nervos (vide Enéas e Havanir) e as lendárias propagandas do extinto Prona. Muitos terminaram eleitos, seja pela brincadeira em si, seja pelo teor de descrédito à política. Mas o fato é que ocuparam importantes cargos e com poder de decisão.

Voltemos a 2018 e façamos uma pequena reflexão sobre a figura que hoje é candidata à reeleição. Quanto da sua popularidade acabou impulsionada por programas humorísticos, na TV e no rádio, a partir de aparições baseadas na “tiração de sarro” ou no “escárnio” em cima de um personagem, a princípio, totalmente inadequado?
Por isso, mesmo que o humor aconteça (e há de acontecer), é fundamental uma linguagem pedagógica, ainda mais no infinito da internet. Aqui eu pergunto a quem entende do assunto: como construir imagens que destaquem e orientem a leitura sobre o que efetivamente está se querendo dizer? Será que uma legenda no post resolve? Quantas vezes você já clicou em algo sem ler a legenda?
Digo mais, com esse lance de fanfic, trolagem, pessoas cada vez mais dispostas a fazer de um tudo para aparecer na internet, está cada vez mais difícil perceber o limite da realidade e da fantasia. Imaginem isso com o plus do humor?
Denunciar é importante, rir é importante, mostrar o quão ridículo é algo a ponto de não ter aderência é importante. Mas o caminho trilhado até então, mostrou que o absurdo tem conexão com outros absurdos.
Sugiro uma reflexão sobre esses conteúdos de modo que quando circularem, a tarja da crítica esteja bem demarcada. Funciona assim com qualquer substância ao qual não se sabe o uso que será feito. Talvez este seja um caminho, mas assim proponho essa reflexão, me interesso também em ouvir outras.
Chegamos a 2022 num cenário diferente, cercado de tensão, e não seria para menos. Mas, estariam encerrados os riscos do meme ao pleito eleitoral? Acredito que não, por mais que haja um bom feedback sobre seus efeitos. Muitas vezes o meme é gerado na pura gênese do entretenimento, mas sua ação ultrapassa a percepção de seus criadores. A solução, invariavelmente, repito, passa pela orientação da crítica que está sendo construída, numa ação conjunta entre diversão e conhecimento (sim, é possível).
É necessário que façamos um exercício de comunicação apurada sobre o tema, de forma a afastar possíveis distorções. As eleições de 2022, em especial, não nos permitem quaisquer deslizes.
Lembrem que um meme eleito presidente deixou mais de 50 milhões de brasileiras e brasileiros em situação de insegurança alimentar. Um meme fez o país voltar ao mapa da fome.
Erica Malunguinho é educadora e ativista cultural. Mestra em Estética e História da Arte, tornou-se a primeira deputada estadual trans eleita no Brasil, em 2018, com mais de 55 mil votos no estado de São Paulo.