Cultura: uma necessidade básica
Para Juca Ferreira a “população brasileira é praticamente prisioneira da TV aberta”: pouquíssimas pessoas têm acesso a museus, cinemas e teatros. Segundo o ministro da Cultura, mudar essa “realidade muito dura” significa, em primeiro lugar, entender a complexidade do país e suas diversas manifestações culturais
Conversar com representantes do governo em 2010 pode dar margens para um “acerto de contas” ou um “balanço de gestão”. Nessa entrevista com Juca Ferreria, porém, as polêmicas que possam ter permeado a gestão do Ministério da Cultura ficaram secundarizadas, dando espaço para um debate de fundo sobre a visão de cultura no país. “A construção ideológica do Brasil é toda estruturada em cima de poucos”, resume. Para ele, é preciso ampliar não só o acesso como a produção cultural. E alerta: se não valorizarmos a arte nacional, perderemos nossos novos “craques”, da mesma forma que ocorre com o futebol.
Le Monde Diplomatique Brasil – Qual é o panorama da cultura brasileira hoje?
Juca Ferreira – Quando assumimos a pasta, sabíamos que o nível de acesso à cultura no país era pequeno. Porém, não tínhamos informações detalhadas porque o Ministério da Cultura era o único sem convênio com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) à época do Censo. No momento em que passamos a tratar cultura como política pública, demandamos ao IBGE, ao IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas) e demais institutos de pesquisa e processamento de dados para incluir essa questão nos seus trabalhos. Descobrimos, assim, que 20% da população brasileira não está incorporada a nenhuma atividade, bem ou serviço cultural a não ser a TV aberta. Só 8% já entraram alguma vez na vida em um museu. Apenas 13% vão ao cinema com certa frequência – em torno de uma vez por mês – e 92% dos municípios brasileiros não têm um cinema ou um teatro sequer. Só 17% dos brasileiros compram livro. É uma realidade muito dura.
Diplomatique – O desenvolvimento da cultura está relacionado a uma determinada visão de Estado?
JF – Sim. Cultura é uma necessidade básica de qualquer ser humano. O que nos distingue dos outros animais é esse imperativo de simbolização. Tem uma cena de um filme do Jean-Luc Godard em que a filha pergunta para a mãe o que é linguagem. Esta, sem parar a tarefa, olha para a criança e diz: “Linguagem é a casa onde a gente mora”. Quer dizer, não há possibilidade de se pensar o ser humano sem isso. A linguagem intermedia todas as nossas relações com o mundo, com as outras pessoas, conosco. E esse processo pode ser estendido para a produção simbólica e de significado, a todas as possibilidades de formulação, compreensão e reconstrução do mundo. Partimos desse ponto de vista, que o projeto neoliberal não trata.
Diplomatique – Pelo contrário…
JF – Pelo contrário, não interessa. Estamos vivendo um processo de esvaziamento do conceito de nação e de solidariedade humana. É um: “cada qual se vire segundo suas condições”. Numa sociedade desenvolvida, como as europeias, o impacto de uma proposta dessas é menor, porque a base de direitos e oportunidades iguais está dada. Mas no Brasil, com o grau de desigualdade que temos, o projeto neoliberal é a inviabilização do país. Tanto é que se a economia nacional reage positivamente diante da crise, não é pelo comércio internacional, pela tradicional relação de oferta de commodities para o mercado, mas por conta da inclusão de quase 40 milhões de brasileiros, mesmo que precariamente, na economia. Ou seja, até sobre o ponto de vista capitalista da reprodução das mercadorias, é preciso incorporar as pessoas. Basta olhar as estatísticas brasileiras para ver que registramos algumas das maiores taxas de desigualdades do mundo. É, portanto, fundamental constituir a base da República, estabelecer uma nova inserção do Estado com políticas de inclusão das pessoas. E há pelo menos duas questões em aberto nessa perspectiva: educação de qualidade para todos – que é uma tarefa que o Brasil não conseguiu cumprir até hoje – e acesso pleno à cultura.
Diplomatique – O desenvolvimento da cultura hoje não passa muito mais pelo mercado do que pelo Estado?
JF – E vai passar. Nossa ideia não é estatizar a cultura, isso significaria inviabilizar todos os procedimentos. O Estado não concorre com o mercado, pelo contrário. Ele tem um papel que é intransferível. porque a iniciativa privada busca as atividades que são lucrativas a curto, médio e, no máximo, a um longo prazo visível. O Estado não. Ele dá infraestrutura para que as pessoas tenham possibilidade de desenvolver seu potencial humano. A escolaridade, a qualificação e o acesso pleno às linguagens artísticas são construções complexas que cabem ao Estado e que estamos exercitando. Somos um dos ministérios mais bem avaliados pela população, apesar de pequenino.
Diplomatique – Mas o Ministério da Cultura tem encontrado alguns limites. Por exemplo, a maioria da população brasileira tem acesso à televisão aberta, mas, quando na proposta de criação da Ancinav (Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual), discutiu-se a possibilidade de regulamentação dessa programação, o empresariado reclamou.
JF – A população brasileira é praticamente prisioneira da TV aberta. O Brasil não aparenta, mas é um país conservador. Foi o último Estado do mundo a abolir a escravidão e até hoje ainda tem traços dela no campo. A sociedade brasileira resiste a qualquer mudança. Por exemplo, os empresários ainda resistem a essa ideia, que está implícita na estratégia de desenvolvimento do presidente Lula, de trocar uma economia de poucos para uma economia de muitos. E incluir pessoas é algo que interessa ao capitalismo porque amplia o mercado consumidor. Mas a construção ideológica do Brasil é toda estruturada em cima de poucos. Não é só a esquerda que tem ideologia, a direita também tem. E a ideologia sempre é uma camisa de força para você realizar plenamente a sua missão, seja enquanto capital, seja enquanto trabalho. Por isso, há uma resistência enorme a qualquer movimento de abertura no Brasil. Mas há um esforço que está sendo o de associar desenvolvimento à acessibilidade, à incorporação de milhões de brasileiros na sociedade, seja em que dimensão for.
Mesmo assim, eu não generalizaria a questão do empresariado. Por exemplo, a diretoria da Abert (Associação Brasileira de Rádio e Televisão) apoia incondicionalmente nosso projeto de modernização do direito autoral no Brasil. Outra questão é a Lei Rouanet, que começou com muita gente contra, porque seria uma forma de dar dinheiro
público de graça para fazer marketing de empresa e com o caráter perverso de aparentar que é um mercenato privado. Mas, na verdade, em 18 anos, só 5% foi dinheiro privado e 95% foi público. Ou seja, é uma maneira de transferir para a cultura um montante que corresponde a 80% da verba do Ministério. Claro, isso se dá de uma forma cruel porque não há critérios para definir onde colocar o quê. No governo passado houve até investimentos em festas privadas, financiáveis pela Lei Rouanet. Dentro dessa perspectiva, era aprovado tudo o que tinha possibilidade de dar retorno de imagem para a empresa. Isso gerou um grau de concentração enorme: 3% dos proponentes ficaram com mais da metade desse dinheiro, 80% do investimento estava em duas cidades e as ações eram mais voltadas para eventos do que iniciativas estruturantes, no sentido de desenvolvimento cultural, de ampliação de acesso ou de fortalecimento de uma economia da cultura. A mudança desse cenário gerou um impacto. Inicialmente houve grande resistência, mas isso já foi revertido.
Coincidiu que, na época que isso estava entrando em pauta, eu virei ministro. Lembro-me de ter pensado: “é vencer ou vencer, vou para a estrada”. Rodei o Brasil, fui a 20 estados. Cerca de 20 mil pessoas estiveram nos eventos que participei, entre artistas, produtores, empresários da cultura, financiadores, instituições e gestores. O esforço valeu a pena porque conseguimos reverter uma tendência inicial, meio “pavloviana”, de ser contra qualquer coisa que racionalize, que democratize.
Diplomatique – Isso não gera críticas a uma ingerência muito forte do Estado? Uma espécie de “dirigismo”?
JF – Não. Isso não acontece com a política de cultura. Vale para outras histórias, como para a ação que o presidente do Senado moveu contra o Estadão. Aqui o debate nunca chegou até a censura, porque nunca se viveu com tanta liberdade quanto no período do governo Lula. Ninguém foi molestado por sua opinião, ninguém deixa de captar recursos no Estado por seu posicionamento. A única pessoa que foi molestada fui eu, como ministro, quando advoguei a favor da liberdade daquela jovem que pichou umas das salas da Bienal internacional. O governador de São Paulo era a favor da prisão, o secretário de Cultura, todo mundo, e eu disse que não. A Bienal convidou as pessoas para se manifestarem e deixou uma sala vazia para isso, sem indicar o meio… Eles podiam ter posto ali uns lápis de cera, umas coisinhas civilizadas. Se a intenção era estimular a expressão, eles tinham obrigação de lidar com o que viesse da sociedade. E a pichação hoje está sendo incorporada como uma linguagem artística.
Agora, a cada dia soa mais falso essa discussão de dirigismo. São pessoas que foram formadas na época da Guerra Fria e mantém uma mentalidade B-52. Nós não representamos aquele período, estamos lidando com o século XXI e corrigindo o passado. Quando da queda do muro de Berlim, houve uma expectativa de que o Estado se tornaria rapidamente um ente obsoleto em relação ao mercado. Isso ocorreu no mundo inteiro, com graus diferenciados a depender das estruturas que cada sociedade vivia. Mas essa perspectiva não se realizou. O mundo ficou mais violento, as disputas pelos recursos naturais e pela riqueza estão muito mais evidentes, o unilateralismo se constituiu. Hoje há um esforço grande, inclusive do presidente francês Nicolas Sarkozy e de Lula, na defesa de uma ordem mundial que assuma essa complexidade. Para isso, é preciso constituir novas bases das relações internacionais. Essa crise econômica abriu a possibilidade de revisão quase que global da subestimação do papel do Estado. Dentro dessa perspectiva, nós representamos uma redefinição do Estado na sociedade – e particularmente na cultura. É uma gestão democrática, sob o controle social. Tanto que a formulação de todas as políticas públicas no Ministério é feita à luz do dia. Geramos muito debate e confusão, mas é exatamente daí que se constituem as propostas que fazemos. Isso tem nos permitido avançar na área cultural, superando as desconfianças.
Diplomatique – Quais são as prioridades?
JF – Nós lidamos com um conjunto complexo da cultura brasileira. Eu me lembro de ter acompanhado uma entrevista de um veículo de comunicação com o Gilberto Gil no início de sua gestão. Fiquei com pena da jornalista porque ela perguntou qual seria a “marca” daquela pasta. E Gil respondeu: “eu não me preocupo com o negócio de marca. Eu não vim aqui para criar marca, eu já tenho as minhas razoavelmente sólidas na sociedade. A questão central é a abrangência”. A jornalista me olhou pedindo socorro, mas é isso mesmo: olhar para a abrangência, para essa complexidade que é a cultura brasileira. Muita gente sugeriu: “façam duas ou três coisas bem feitas e deixem o resto que vocês vão ganhar notoriedade”. Mas como podemos trabalhar o teatro e abandonar a dança ou a manifestação tradicional e vice-versa? Assumir essa estrutura complexa é o que estamos deixando para as próximas gerações e os governos seguintes. É um modelo de relação do Estado que beneficia primeiro o desenvolvimento cultural, das linguagens, de todo esse corpo simbólico brasileiro que está assentado em uma diversidade magnífica. Depois, amplia o acesso, outro objetivo muito importante. Por exemplo: nós estamos produzindo 100 filmes por ano no Brasil. Quem assiste? Pouquíssimas pessoas, 13% da população. E em terceiro lugar, uma condução da política que desenvolva uma economia forte da cultura. Hoje ela já responsável por 5% do PIB (Produto Interno Bruto) e quase 6% dos empregos formais no Brasil e o IBGE reconhece que nesses dados ainda não foram incorporadas as repercussões em outras cadeias econômicas, que certamente vão nos levar para perto de 10%.
Diplomatique – A produção é para disputar hegemonia, dentro dessa perspectiva de Estado colocada?
JF – Em governos de direita, a disputa é pela produção. Eles tratam a cultura como redoma, algo isolado, porque têm a perfeita noção da importância dessa dimensão, que acaba tendo a médio e longo prazo mais relevância que a disputa política. Para a esquerda, a acessibilidade e a democratização são mais pautadas. Nós trabalhamos nesses dois âmbitos e também numa economia da cultura, que já é potente, mas para a qual o Estado nunca teve lucidez de gestão. Há áreas que tendem a um crescimento relevante, como a audiovisual. Nós estamos fechando com o IBGE um plano de desenvolver a animação no Brasil. É preciso investimento, porque espontaneamente não se chega a um patamar de qualidade. Nesse campo existe uma infraestrutura tecnológica pesada. Além disso, é necess&aa
cute;rio dar formação aos artistas, desenhistas, pessoas que vão desenvolver os programas. Nada disso a área privada fará. A animação, dentro do audiovisual em geral, tem articulação clara com a publicidade, o cinema, a televisão, os games. Isso faz dela um modelo de negócio diferenciado. É uma coisa complexa e o Estado tem um papel para acelerar esses processos, para garantir que entremos com capacidade competitiva nesse mercado. Outra questão que vale citar é o Projeto de Lei 29, que não é da nossa autoria, mas tem inspiração no Ministério e estamos defendendo sua aprovação. Ele trata da regulação das TVs a cabo. Desde o começo, as empresas privadas tiveram toda liberdade de montar um negócio medíocre. O serviço é caro e de baixa qualidade, reproduzindo uma programação que vem de fora e com pouca abertura ao cinema nacional. Por isso nós estamos reformatando-o, tanto sobre o ponto de vista da economia como do conteúdo. Na democracia, a resultante é fruto de todos os interesses, pressões e demandas. Estamos avançando bastante agora, entrando nos processos fundamentais da cultura. E todo o empresariado está vindo, percebendo que o Estado não é o lobo mau da história, que vai atacar na última cena na casa da vovozinha. Estamos contrariando essa fala e esse papel que nos deram.
Diplomatique – Qual é o futuro da cultura no país?
JF – Há um interesse mundial crescente pela arte brasileira. As artes visuais são hoje mais reconhecidas no exterior do que no Brasil. O medo que eu tenho é que, por incompetência, a gente reproduza a experiência do futebol. Nós temos os melhores jogadores, a melhor técnica futebolística, mas estamos limitados a exportá-los para fazerem o espetáculo em outros lugares do mundo. Não só na Europa, que é até compreensível, porque são países mais ricos e têm a possibilidade de atrair esses esportistas, mas Rússia, Turquia, alguns Estados africanos… E é plausível que isso aconteça na arte também. Precisamos nos preparar, pois os artistas já dialogam diretamente com esse mercado globalizado. Alguns moram aqui e produzem para fora ou já estão morando no exterior e isso está gerando um problema. Temos que nos adiantar e preparar essa estrutura nacional de consumo, de mercado e de produção. Estamos trabalhando em programas de exportação, mas principalmente em iniciativas para abrir a sociedade brasileira para se relacionar com uma produção de qualidade. Isso implica, inclusive, em não aceitar os padrões de lucro imediato do mercado. Por exemplo, a música erudita no Brasil é de boa qualidade. Eu ouvi de um maestro alemão que nosso país tem o maior acervo de obras sinfônicas fora da Europa, muito mais do que a Austrália e os Estados Unidos. E isso está disperso desde o século XVII. Completou-se agora 50 anos da morte de Heitor Villa-Lobos e a comemoração foi reduzida no Brasil. São áreas da cultura que não encontram ressonância no mercado.
Diplomatique – Não seria preciso proteger a arte nacional do bombardeio externo?
JF – Não. Precisamos valorizar o nacional, sem muita proteção porque nossa produção é de boa qualidade. Este é um país muito internacionalizado desde que nós nos constituímos como Brasil. Somos fruto do empreendimento colonial e toda a cultura brasileira aprendeu a disputar espaço. Não precisamos ter medo da globalização. Ela vem e a gente digere, absorve, assimila e fica com o que achar que deve ficar. Eu não penso muito em restrições de acesso, pelo contrário. No Ano da França no Brasil eu chamei a atenção que há muito tempo os brasileiros tinham perdido o contato com a cultura francesa. Era como se a França tivesse parado no tempo. Os argentinos também: há mais de 10 anos eles vivem um boom cinematográfico, mas os poucos filmes que assistimos são que vieram pelas distribuidoras americanas. Por isso, ao invés de pensar em fechar, eu quero abrir. Abrir para a África, para América Latina, para a Europa, multiplicar o acesso e, ao mesmo tempo, garantir a possibilidade de ampliar a produção brasileira. Isso também precisa envolver a escola. Desde que foi criado o Ministério da Cultura, houve um divórcio radical com o da Educação. A arte e a cultura saíram de dentro da sala de aula porque foi exatamente o período em que se acreditava que a escola era lugar de capacitação para o mercado. Agora, está na hora de voltar a ter uma formação mais humanista, mais completa. Até o desenvolvimento tecnológico está exigindo que as pessoas sejam capazes de se deslocar de uma profissão para outra. Não se trata mais de ser o apertador de botão do taylorismo.
*Maíra Kubík Mano é jornalista, foi editora de Le Monde Diplomatique Brasil e atualmente é docente do Bacharelado em Gênero e Diversidade da Universidade Federal da Bahia (UFBA).