Cunha dificilmente perderá o mandato, mas deve deixar comando da Câmara
Para discutir o futuro do deputado federal Eduardo Cunha, o Le Monde Diplomatique Brasil entrevistou o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo, Marcos da Costa. Ele fala sobre corrupção, reforma política e justiça, e constata: “O que se vê hoje é um quadro muito triste da política brasileiraLuís Brasilino
A legislatura atual da Câmara dos Deputados, iniciada em fevereiro, vem sendo marcada pelo avanço de uma série de projetos polêmicos e por uma postura de enfrentamento ao governo federal. Qual é sua leitura deste momento?
Marcos da Costa – O que me parece claro é que o Congresso Nacional, notadamente a Câmara dos Deputados, hoje tem um perfil com prevalência do chamado baixo clero, ou seja, deputados que têm expressão local, foram eleitos, mas não possuem uma visão estadista da função relevantíssima que ocupam. Esse ambiente permite que surja alguém na presidência da Câmara como Eduardo Cunha, que se favorece dessa desestruturação orgânica para se beneficiar. Fundamentalmente é isso. Como ele define a pauta, muitas vezes os temas trazidos são de interesse da parcela de segmentos da Câmara que lhe dá apoio. Por exemplo, quando se discute a redução da maioridade penal ou se deixa de debater questões ligadas a temas mais liberais, como a proteção aos LGBTs, quando ele proíbe isto e autoriza aquilo, claramente o que está fazendo é atender aos interesses, à ideologia daqueles que o cercam e dão sustentação ao seu mandato como presidente da Câmara.
Um desses projetos a avançar dentro da atual legislatura foi o financiamento de campanha por empresas, contrariando inclusive decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de proibir esse tipo de doação por meio de uma ação movida pela OAB Nacional. Como o senhor analisa essa tentativa de restaurar o modelo de financiamento eleitoral?
Isso permite uma primeira análise sobre o poder quase imperial que Eduardo Cunha se autoproclamou em termos de pauta e interesse nacional. É ele, como presidente da Câmara, que na sua visão deve definir o debate na Casa. Foram apresentadas propostas muito importantes de reforma política. A própria OAB de São Paulo apresentou algumas, e ele, por interpretação própria de que tal ou qual proposta não mereceria aprovação, simplesmente pressionou o relator para que elas não entrassem em discussão. Essa questão do financiamento por empresa merece um debate efetivo. Na ausência de uma definição legal, houve uma decisão do Supremo, a pedido da própria OAB, que interpretava que a empresa não é eleitora, no sentido de ter interesse legítimo em eleger ou deixar de eleger alguém; não é um cidadão, é uma ficção jurídica. Como não é eleitora, a empresa não teria interesse legítimo em favorecer ou apoiar determinada candidatura. O que então levaria uma empresa a financiar determinada candidatura? O interesse econômico. E este normalmente não é adequado ao interesse público. Assim, não raras vezes empresas financiam partidos políticos completamente diferentes, procurando acertar aquele que vai ganhar a eleição. E após a votação cobram a fatura do partido político, causando um quadro que permite a ocorrência desse crime tão odioso que é a corrupção. Entretanto, proibir o financiamento das pessoas jurídicas pode trazer uma consequência também nefasta, que é jogarmos essas contribuições exclusivamente para o caixa dois.
Há uma análise corrente segundo a qual a aposta em projetos polêmicos e que contrariam o governo federal é uma tática de Eduardo Cunha para enfrentar as denúncias de corrupção envolvendo seu nome. Qual é sua posição a esse respeito?
Infelizmente, o que se vê hoje é um quadro muito triste da política brasileira, em que claramente se usa o poder em benefício próprio. Um exemplo é tratar a pauta do Congresso, especificamente da Câmara, com temas polêmicos, para pressionar o Executivo e os outros partidos presentes no Congresso a evitar, numa troca de moedas, o avanço de temas que não são de interesse do presidente da Casa. Esse parece ser o que se pretende com as pautas-bomba, que podem gerar um custo econômico gigantesco para o Brasil: fazer que o Executivo, para evitar a aprovação, acabe negociando, não à luz do dia, outros interesses.
Esse toma lá da cá, por mais prejudicial que seja, parece ser uma constante do jogo político. O extraordinário neste momento é a forma escancarada que essas barganhas vêm sendo feitas, como na vez em que Eduardo Cunha convocou uma coletiva de imprensa para anunciar que passaria para a oposição, no mesmo dia em que foi incluído no inquérito da Operação Lava Jato.
Isso para mim é fruto do quadro político. Não temos partidos políticos com ideologias claras, que defendam bandeiras democráticas e republicanas, que não permitiriam que alguém da espécie de Eduardo Cunha pudesse presidir a Câmara. O Congresso é fragmentado, e muitos partidos têm um, dois ou três representantes. Quando algum tema do interesse desses partidos lhes é oferecido, eles acabam se alinhando. Essa é a base que elege Eduardo Cunha, e não alguém que seja de interesse da nação.
Parlamentares entraram no Conselho de Ética com um pedido de cassação de Eduardo Cunha por ele ter mentido sobre a existência de contas secretas no exterior em seu nome. Essa ação procede? A cassação é possível?
A possibilidade maior é de renúncia da presidência da Câmara. O quadro político pode, por pressão da sociedade, fazer os políticos que dão base de sustentação à presidência de Eduardo Cunha terem mais interesse, em determinado momento, em retirar esse apoio e evitar ficar contra as manifestações sociais. Contudo, perder a presidência da Câmara é uma coisa; já perder o mandato de deputado, aí, eu acho muito difícil. Dificilmente ele deixará a presidência sem fazer uma negociação política que lhe dê suporte e tranquilidade para chegar ao final do seu mandato. Infelizmente vejo esse quadro.
E com relação ao Judiciário? A justiça brasileira é muito criticada por sua lentidão. Em sua opinião, o destino de Eduardo Cunha via tribunais pode responder à urgência do tempo político?
O Judiciário de uma democracia tem o papel fundamental de fazer as leis serem observadas. Só que o Judiciário brasileiro, infelizmente, tem padecido com uma estrutura que não lhe permite dar uma resposta a tempo certo, rápida, para a própria sociedade. O processo se arrasta durante muito tempo. Então, não acredito que vamos ver uma resposta do Judiciário antes do término dos mandatos, como presidente e depois como deputado federal, de Eduardo Cunha.
Quais ensinamentos podem ser retirados dessa crise para aperfeiçoar a democracia brasileira?
A crise que vivemos tem um conteúdo político relevantíssimo. Mas também tem um aspecto ético, moral, muito importante. A crise é sempre uma oportunidade de melhoria. Graças a ela, ficou claro para a sociedade que o modelo político adotado pelo Brasil não atende ao interesse público. Precisamos urgentemente da reforma política. Espero que, à medida que se afastem pessoas como Eduardo Cunha de posições de comando do Congresso Nacional, possam surgir lideranças positivas dentro do quadro político atual, que permitam levar a um debate efetivo de uma reforma política para fazer o país avançar em direção à construção de um Estado democrático, que respeite de fato a República brasileira.
Luís Brasilino é jornalista e editor do Le Monde Diplomatique Brasil.