Curitiba pode sediar “Museu da Democracia”
A partir de pesquisas que destacam avanços e retrocessos da democracia brasileira, a capital paranaense ganha destaque como um epicentro de contradições e pode ser compreendida enquanto um laboratório social
Ao longo do tempo, a memória social sofre lacunas, apagamentos, dissimulações que levam a ressignificações dos fatos em um processo de tensão contraditória inerente à inscrição do acontecimento, à passagem do visível ao nomeado, de acordo com Michel Pêcheux (2015) [1]. No Brasil, durante o governo Bolsonaro, em que a ciência foi relativizada em benefício da naturalização do autoritarismo e do obscurantismo, apostou-se na fraqueza da memória humana. Por meio de uma estratégia de enaltecimento da ditadura e de seu modelo de governo com grande participação de militares em ministérios e em diversos aparelhos ideológicos de Estado [2], disseminou-se uma cultura para fragilizar o estado democrático de direito, ameaçado pelo avanço de movimentos de extrema-direita no país, responsáveis pela barbárie de 8 de janeiro em Brasília.
Os esquecimentos sobre a história brasileira, catalisados pela máquina pública a exemplo das ordens do dia da gestão Bolsonaro que comemoravam o golpe militar de 31 de março de 1964, foram aproveitados com o objetivo de amplificar a desinformação na sociedade. A partir de uma conjuntura favorável, desde junho de 2013, grupos políticos autodenominados conservadores, mas que na verdade são extremistas, se avolumaram no país e ameaçam constantemente a democracia. Muitos deles remontam ao Integralismo, movimento fascista brasileiro [3], cujo lema principal “Deus, pátria e família” foi criado por seu líder Plínio Salgado, na década de 1930.

Diante da urgência na defesa de nosso sistema democrático, nasceu, em Curitiba, o projeto Museu da Democracia, de âmbito nacional, concebido pelo iDeclatra (Instituto Defesa da Classe Trabalhadora). O propósito é levar amplo conhecimento à população, especialmente, sobre os últimos quarenta anos, fase de redemocratização do país. Nesse sentido, a partir de pesquisas que destacam avanços e retrocessos da democracia brasileira, a capital paranaense ganha destaque como um epicentro de contradições e pode ser compreendida enquanto um laboratório social. A cidade foi o berço do lançamento do Movimento das Diretas Já em 12 de janeiro de 1984 [4], na Boca Maldita, que se espalhou pelo Brasil e levou ao fim da ditadura militar. “Curitiba foi escolhida como local de primeiro teste porque é a cidade que melhor condensa as características das capitais brasileiras”, justificava a reportagem da revista Veja (18 jan. 1984). Na capa do jornal da Folha de S.Paulo, o destaque foi para 50 mil pessoas que defenderam a eleição direta à presidência da República. Por outro lado, Curitiba aglutina diversos movimentos de enfraquecimento do Estado democrático de direito desde o passado à contemporaneidade.

Em 1955, a capital foi uma das entusiastas do mentor do integralismo, Plínio Salgado, dando-lhe a maioria dos votos, 39,76% do total, quando disputou e perdeu para Juscelino Kubitschek as eleições presidenciais. O resultado gerou diversos questionamentos como mostra a coluna do O Estado do Paraná, de 7 de outubro de 1955, com o título “cidade verde” em alusão aos integralistas: “até o momento se busca uma explicação para o fato de o senhor Plínio Salgado ter obtido em Curitiba a maior votação entre os candidatos à Presidência” [5]. Três anos depois, Salgado conseguiu, pela primeira vez, eleger-se deputado federal pelo Paraná em uma vitória inédita para o integralismo e sua trajetória desde os anos 1930. A mesma inspiração fascista permanece até os dias de hoje com o “Foro de Curitiba”, previsto para ocorrer em 25 de agosto, em que se divulga a participação de mais de 4 mil pessoas para homenagear figuras políticas como Plínio Salgado, Jair Bolsonaro e ressaltar o lava-jatismo e a “República de Curitiba”.
As contradições da capital paranaense e os seus diferentes sentidos para a democracia brasileira alimentam o projeto Museu da Democracia. Este visa implantar uma instituição de amplo espectro político, comprometida com a história e que provoque em seus visitantes reflexões sobre a importância do sistema democrático e de sua preservação em bases sólidas na sociedade. Para tanto, planeja-se um museu no conceito experiência [6] centrado no intercâmbio de ideias de forma interdisciplinar. O intuito é despertar o interesse no conhecimento a partir das interações com os conteúdos apresentados por meio dos recursos tecnológicos, audiovisuais e sinestésicos. A proposta objetiva resgatar os principais fatos ao longo do tempo e destacar a participação dos movimentos sociais pró-democracia e Constituição de 1988, como de mulheres, negros, indígenas, LGBTQIAPN+, de luta por moradia e pelo meio ambiente. Dessa forma, o museu, como um lugar de excelência da memória, deve salvaguardar a trajetória da democracia em sua construção contínua e preservar o seu futuro.

Seguindo esse preceito, o estudo técnico preliminar [7] do Museu da Democracia compreende espaços de convivência como coworking, cafés, restaurante, exposições interativas-digitais. A proposta prevê acessibilidade, transcrições de conteúdos para crianças, pessoas com deficiência visual e auditiva. Além disso, pretende-se promover a participação social por meio de consultas públicas, seminários, rodas de conversas sobre os anseios da população em relação às temáticas das exposições, oficinas, programações culturais em um processo de escuta democrática. Todo o conteúdo do museu e sua programação estará disponível em meio digital de alta qualidade para que seja conectado de qualquer lugar do mundo e em diferentes idiomas de forma acessível.
O local escolhido para a sede é o antigo prédio dos Correios, de 1934, em estilo art déco, situado na Praça Santos Andrade ao lado do edifício histórico da Universidade Federal do Paraná (UFPR) em Curitiba. A região é emblemática para a democracia, pois já abrigou diferentes manifestações políticas, assim como foi o berço do movimento das “Diretas Já” em 12 de janeiro de 1984, na Rua XV de Novembro. Em 2016, o edifício dos Correios passou por uma revitalização em suas fachadas tombadas pelo patrimônio histórico e ainda por reforma interna que compreendeu acessibilidade, elevadores e segurança, em um espaço de 4 mil metros quadrados. Concretizando-se o projeto do Museu da Democracia no edifício dos Correios, o objetivo é adaptá-lo de forma sustentável, com incentivo ao uso de energia limpa, como painéis solares.

O projeto Museu da Democracia de Curitiba se sustenta em ampla rede de parceiros. Idealizado pelo iDeclatra (Instituto Defesa da Classe Trabalhadora) em dezembro de 2022, tem respaldo na sociedade com diferentes apoios [8] da esfera pública, dentre eles, da Prefeitura Municipal de Curitiba, dos Correios, dos ministérios Justiça e Segurança Pública, do Orçamento e Planejamento, da Cultura, das Mulheres, do Conselho Nacional do Sesi, da Universidade Federal do Paraná e de profissionais como especialistas em patrimônio cultural, arquitetos, professores, pesquisadores, advogados, jornalistas, fotógrafos, historiadores. A proposta avança em fase de formalização de parcerias e almeja a data de 12 de janeiro de 2024, quando completam quarenta anos do lançamento do “Movimento das Diretas Já” em Curitiba, como a sua pedra fundamental.
Kelen Vanzin é jornalista e doutoranda em Letras na UFPR. Email: kelenvanzin@uol.com.br.
[1] “Papel da memória”, de Pierre Achard; Jean Davallon; Jean-Louis Durand; Michel Pêcheux; Eni P. Orlandi”, Pontes Editores, 2015.
[2] “Sobre a reprodução”, de Louis Althusser, editora Vozes, 2017.
[3] “O fascismo em camisas verdes: do integralismo ao neointegralismo”, de Leandro Pereira Gonçalves e Odilon Caldeira Neto, FGV editora, 2020. Confira entrevista sobre a obra em: https://diplomatique.org.br/guilhotina/guilhotina-91-leandro-pereira-goncalves-e-odilon-caldeira-neto/.
[4] “Na capital do Paraná, começa a arrancada do movimento pela democracia”, especial 40 anos das Diretas Já, realizado pela Tv Band em junho de 2023.
[5] “1955: o voto verde em Curitiba”, de Décio Roberto Szvarça; Maria Lúcia Cidade, 1989.
[6] Tese de Bianca Manzon Lupo, defendida na USP em 2022, disponível em: https://www.researchgate.net/publication/368358384_O_museu_experiencia_uma_abordagem_brasileira_O_caso_da_Fundacao_Roberto_Marinho_tese_de_doutorado
[7] Estudo preliminar 1, Museu da Democracia, disponível em: https://www.instagram.com/reel/CsWc-rQxqcu/?igshid=MzRlODBiNWFlZA
[8] Diversos apoiadores do projeto Museu da Democracia de Curitiba: https://www.zebeto.com.br/2023/04/29/o-museu/
https://www.instagram.com/p/CuIBotLuzIE/?igshid=MzRlODBiNWFlZA
https://www.instagram.com/p/Cuma5LcMhCA/?igshid=MzRlODBiNWFlZA
https://www.instagram.com/p/Cu6-hNgLSCZ/?igshid=MzRlODBiNWFlZA