Da loja à revista
Em dois séculos, a economia de mercado produziu um novo tipo de humano: o consumidor. Mas como a família autossuficiente do século XVIII, que possuía alguns objetos úteis, transformou-se em um depósito onde milhares de coisas são empilhadas? Foi necessário forjar um imaginário do zero e, nisso, a imprensa desempenhou um papel decisivo
A história da sociedade de consumo pode ser compreendida como a da multiplicação das imagens de mercadorias. Desenvolvendo-se sem parar desde o século XIX, a imagética de massa aniquilou a autossuficiência psicológica das anteriores. Ela permitiu à mercadoria conquistar os imaginários por meio de sua presença virtual cotidiana. Jornais, catálogos, revistas, litografias, cinema: as novas mídias colocaram progressivamente os ocidentais numa atitude de espectadores. Ensinaram às populações o prazer de ver e a vontade de consumir. Educaram as pessoas para a mercadoria, fazendo desta um símbolo universal, uma linguagem comum, um fato natural que parece sempre ter existido.
Ao longo de todo o século XIX, os comerciantes fizeram circular massas crescentes de “papéis”: cartas, litografias, catálogos, que possibilitaram familiarizar as populações com suas marcas e produtos. Mas, além dessa disseminação de imagens, foi a aliança com o mundo da imprensa que proporcionou aos comerciantes um poderoso meio de se instalar nas consciências. Os jornalistas se revelaram formidáveis profissionais da fabricação de públicos, capazes de criar o comum, de impor de modo cotidiano às massas seus assuntos de conversa. Quando os proprietários dos jornais compreenderam que sua prosperidade provinha menos do fato de vender papel aos leitores, e sim público aos anunciantes, a imprensa começou a trocar sua capacidade de mobilizar a sociedade por dinheiro; encontrou seu modelo econômico, a base de sua massificação. Os melhores periódicos do começo do século XIX sobreviveram graças a alguns milhares de assinaturas; os grandes títulos dos anos 1890 e 1900 venderam milhões de exemplares.
O jornal ilustrado aboliu as distâncias por meio da justaposição das imagens do mundo. O presente não era mais somente o aqui e o agora: oferecia a possibilidade de pensar no que os homens de longe viviam e sentiam. Essas visões novas afetaram profundamente as populações, que podiam a partir daquele momento projetar-se em experiências desconhecidas e alimentar sonhos despertos. O que as pessoas compartilhavam então não era mais apenas a terra que habitavam e as palavras que trocavam cara a cara, mas também o que liam e o que viam. Assistimos, assim, a uma nacionalização dos temas de conversa. A atualidade, os folhetins, as amenidades, os catálogos e os livros escolares “sincronizaram” as representações e deram forma a uma consciência e a uma memória coletivas.
Um passeio invertido
Ao mesmo tempo, o impresso retirou os comerciantes das limitações das vitrines para fazê-los penetrar nos lares. Podemos também considerar os catálogos, jornais e coleções de litografias como lojas de papel, suportes de uma captação virtual. Em suas páginas, os catálogos materializam os produtos com ilustrações detalhadas, equivalentes a réplicas das prateleiras do comércio; fazemos compras a todo momento, ficando em casa, e sem gastar nada. É um passeio invertido: não são mais as pessoas que vão à mercadoria, é a imagem da mercadoria que desfila sob seus olhos.
Se a imagem possibilita aos produtos ocupar os olhares e se instalar nos imaginários, é por ser, em si, ao mesmo tempo uma mercadoria e o veículo de outras mercadorias. Essa dupla natureza da imagem teve seu arremate com o surgimento, no fim do século XIX, do magazine (“revista”, em francês), termo derivado de magasin (“loja”), e que significava em sua origem o entreposto de mercadorias. Sua denominação não deixava dúvidas: le magazine, c’est le magasin chez soi [a revista é a loja dentro de casa]. À mobilidade física das mercadorias no entreposto – a loja – correspondia a mobilidade visual e mental das mercadorias e de suas imagens na revista. Essa foi a primeira mídia de massa inteiramente dedicada ao consumo.
Esse tipo de periódico surgiu e se massificou primeiro nos Estados Unidos, no fim do século XIX. Entre 1890 e 1905, as publicações mensais passaram de 18 milhões para 64 milhões de exemplares por edição.1 A Ladies’ Home Journal, título pioneiro e campeão de todas as categorias, passou de uma tiragem de 100 mil exemplares em 1884 para 1 milhão em 1904. Na esteira dos Estados Unidos, diversos países ocidentais adotaram a fórmula da revista feminina com mais ou menos velocidade. Na França, os primeiros periódicos do gênero – Votre Beauté e Marie-Claire – apareceram nos anos 1930. Como em uma grande loja, os leitores das revistas passeavam pelas seções. Edward Bok, redator-chefe da Ladies’ Home Journal, também trabalhou a analogia: “Uma revista [magazine] de sucesso é bastante similar a uma loja [magasin] de sucesso: deve entreter com o frescor e a variedade de suas mercadorias, para atrair o olhar e aproveitar o patrocínio de seus consumidores”.2 Regularmente preenchidas, as seções da revista, bem como as prateleiras das lojas, celebravam a abundância e a variedade dos produtos; atraíam a circulação com uma capa colorida e sedutora – como uma vitrine. Tratava-se de um fluxo: cada nova edição tornava a anterior obsoleta, divulgando novas modas e novos objetos. Lia-se em 1954 na Marie-Claire: “Nossa atualidade é a de sempre, a incansável atualidade da vida que muda a cada mês. Que muda seu chapéu, seu buquê de flores e sua tigela de frutas”.3 O consumidor/leitor acostuma o olhar, faz que este se torne sensível às mudanças de forma, de cores e de disposição. Ele acaba por lamentar a obsolescência de suas compras passadas e desenvolve uma necessidade imperiosa de renovação.

A partir do fim do século XIX, as receitas publicitárias se tornaram essenciais: a imprensa vendeu seus leitores a seus anunciantes. Inscreveu-se de fato em uma relação de subordinação e dependência em relação aos comerciantes. A revista precisava criar em suas páginas uma atmosfera editorial favorável, ou seja, um conteúdo temática e filosoficamente compatível com as mercadorias promovidas pela publicidade. Foi assim que, nas revistas femininas, os artigos passaram a se dedicar sobretudo à alimentação, à moda e aos cosméticos. Encontrávamos, próximo a um artigo ressaltando a importância de uma boa higiene corporal, uma propaganda de sabonete; ao lado de uma reportagem sobre um desfile de moda, o anúncio de uma grande marca de roupas. O conteúdo editorial da revista era um ambiente ideal no qual o anúncio se encaixava para multiplicar o poder persuasivo e simbólico.
A rentabilidade e a perenidade da revista dependiam em grande parte dessa “capacidade de acolhimento”. Esta se degradava se a revista desenvolvia uma proposta contrária às preocupações comerciais. Projetada para o longo prazo, essa submissão da redação ao comercial tomou formas às vezes muito explícitas: a militante feminista Gloria Steinem revelou em 1990, por exemplo, que a fabricante de sabonetes e detergentes Procter & Gamble proibiu as revistas norte-americanas de colocar suas propagandas em todas as edições que falassem mal das religiões ou tratassem de temas como sexualidade, drogas, controle de armas de fogo ou aborto.4
Ao contrário da publicidade televisiva, que interrompe os programas, a das revistas se insere na continuidade visual da mídia. Conteúdos editoriais e propagandas escrevem juntos um discurso que entrega aos leitores um ideal no qual se projetar, de modo a criar ilusões, um sonho desperto. O que chamamos hoje de “publieditorial” apareceu há quase um século e meio: nos anos 1880, a loja Le Bon Marché mandou publicar na L’Illustration artigos laudatórios com esse propósito.5 Outra prática – mais insidiosa – que reforça a confusão editorial/publicidade era o compartilhamento de estilos visuais graças aos artistas que, dos anos 1890 aos 1930, produziam ilustrações ao mesmo tempo para a imprensa e para os anunciantes. Os personagens que povoavam então as capas das grandes revistas eram reaproveitados nas propagandas, de tal modo que, quando a Ladies’ Home Journal perguntou a suas leitoras, em 1902, qual tinha sido em sua opinião a melhor ilustração editorial daquele ano, elas elegeram um desenho que era na verdade uma propaganda.6 Porém, o meio mais seguro de um anunciante converter as massas a seus produtos passou a ser editar ele mesmo as publicações que se encarregariam deles. Uma das primeiras revistas femininas francesas, Votre Beauté, foi criada por Eugène Schueller, fundador e dirigente da L’Oréal, a fim de desenvolver a demanda por seus produtos cosméticos. Nos anos 1920, essa revista, que ainda era apenas um suplemento de uma publicação dedicada aos cabelereiros, divulgou diversos artigos sobre cabelos brancos, descritos como um sinal desagradável de velhice. Esses textos acompanhavam então propagandas para as tinturas capilares.
Por meio de ilustrações, reportagens e artigos, a revista preenchia uma função fundamental de figuração: fazia existir práticas, objetos e corpos que, sem ela, permaneceriam desconhecidos por estarem longe e, portanto, invisíveis. Foi por meio das revistas que as mulheres do campo e das cidades pequenas do fim do século XIX puderam se imaginar fazendo compras, observando as múltiplas gravuras que ilustravam as mulheres da burguesia em suas escapadas urbanas. Esse tipo de representação normalizou a prática das compras antes mesmo que ela se tornasse material e economicamente possível para a maioria das leitoras.
De modo similar, as revistas deram vida, pela imagem, a objetos que eram muito caros e muito novos para existir no cotidiano. Ao aprendizado das formas somava-se a inculcação de um vocabulário específico, vetor de novas normas e preocupações. Por exemplo, nas revistas do começo do século XX, artigos e propagandas começaram a difundir termos oriundos da biologia e da farmacologia, como “antisséptico”, “bactericida”, “microrganismo” e “epiderme”, a fim de melhor convencer ao uso de produtos de higiene e cosméticos.
A bicicleta do diabo
O folhear semanal das páginas nutriu também um imaginário social completamente distante do nível de vida real da população. Analisando o conteúdo das quatro maiores revistas norte-americanas do período – Munsey, Ladies’ Home Journal, Cosmopolitan e McClure –, o professor de Literatura Richard Ohmann destacou uma série de assuntos que jamais foram abordados nelas: os operários, os pobres, os guetos, o trabalho, a imigração, os afro-americanos, os sindicatos, as greves ou ainda “as ideias socialistas e anarquistas, e as ideias do livre mercado propriamente ditas, na qualidade de sistema articulado”.7 O mundo das revistas era um espaço sem fratura, nem material nem ideal. Como constatou com ironia o historiador Roland Marchand: “Um historiador que só confiasse nesses recortes sociais poderia acreditar que todos os norte-americanos de então eram ricos e distintos”. Quando as classes populares apareciam nos “recortes sociais” vendidos pelas revistas, só eram retratadas em um papel secundário e funcional: “Os recortes ilustravam um mundo onde motoristas, empregadas e comerciantes serviam a seus patrões com deferência e felicidade”.8 Os recortes sociais não exibiam a vulgaridade dos novos ricos, mas ofereciam à admiração uma classe superior que tinha tudo da aristocracia: limpeza, bons modos e distinção. Os serviçais eram onipresentes nas imagens publicitárias norte-americanas dos anos 1920 e 1930, em uma época em que a mão de obra doméstica se tornava, no entanto, cada vez mais rara, mesmo nos lares abastados. Em sua análise das propagandas da época, Marchand revela que 85% das domésticas representadas eram “jovens, brancas, magras e com características similares às de suas patroas”. Na verdade, a maioria dos serviçais nos Estados Unidos na época eram mulheres negras, predominantemente mais velhas.
A última função da revista consistia em vencer as resistências à sociedade mercantil. Desse modo, as ficções publicadas nas revistas do fim do século XIX valorizavam comportamentos compatíveis com o mercado e contestavam as normas sociais hostis ao consumo. Por exemplo, nos anos 1890, a bicicleta suscitava reticências quando era proposta às mulheres: segundo os conservadores, ela incitaria a masturbação e comprometeria o equilíbrio familiar. A propaganda sozinha não bastava para conter o pânico moral. Ao longo de toda a década de 1890, as revistas empreenderam um trabalho de normalização, multiplicando as belas histórias sobre duas rodas.9 Nesses textos, a bicicleta possibilitava às jovens de boa família escapadas para encontros, para finalmente se casarem e fundarem uma família. Propagandas vendendo os méritos de marcas específicas acompanhavam as ficções, as quais contribuíram para neutralizar seu caráter transgressivo e tecer no imaginário coletivo uma série de associações positivas. A narrativa acabou quando o objeto encontrou legitimidade. Desse modo, a partir dos anos 1900, as histórias de bicicletas se tornaram mais raras nas revistas.
Anthony Galluzzo é professor de Ciência de Gestão na Universidade de Saint-Étienne, França. Autor de La Fabrique du consommateur. Une histoire de la société marchande [A fábrica do consumidor. Uma história da sociedade mercantil], La Découverte, Paris, 2020.
1 Mary Ellen Waller-Zuckerman, “‘Old Homes, in a City of Perpetual Change’: Women’s Magazines, 1890-1916” [“Velhos lares, em uma cidade em perpétua mudança”: revistas femininas, 1890-1916], The Business History Review, v.63, n.4, Cambridge University Press, 1989; e “Marketing the Women’s Journals, 1873-1900” [Marketing nos diários femininos, 1873-1900], Business and Economic History, v.18, Cambridge University Press, 1989.
2 Edward Bok, The Americanization of Edward Bok. The Autobiography of a Dutch Boy Fifty Years After [A americanização de Edward Bok. A autobiografia de um garoto holandês cinquenta anos depois], Charles Scribner’s Sons, Nova York, 1920.
3 Marie-Claire, n.1, 1954, p.40-41. Citado por Alexie Geers, Le Sourire et le tablier. La construction médiatique du féminin dans “Marie-Claire” de 1937 à nos jours [O sorriso e o avental. A construção midiática do feminino na Marie-Claire de 1937 aos dias de hoje], Éditions de l’EHESS, Paris, 2016.
4 Gloria Steinem, Sex, lies and advertising [Sexo, mentiras e publicidade], Ms. Magazine, Arlington (Virgínia), jul.-ago. 1990.
5 Michael B. Miller, Au Bon Marché, 1869-1920. Le consommateur apprivoisé [No Bon Marché, 1869-1920. O consumidor domesticado], Armand Colin, Paris, 1987.
6 Carolyn L. Kitsch, The Girl on the Magazine Cover. The Origins of Visual Stereotypes in American Mass Media [A garota na capa da revista. As origens dos estereótipos visuais na mídia de massa norte-americana,], The University of North Carolina Press, Chapel Hill, 2001.
7 Richard Ohmann, Selling Culture. Magazines, Markets and Class at the Turn of the Century [Vendendo cultura. Revistas, mercados e classe na virada do século], Verso, Londres/Nova York, 1996.
8 Roland Marchand, Advertising the American Dream. Making Way for Modernity, 1920-1940 [Propaganda do sonho norte-americano. Abrindo caminho para a modernidade, 1920-1940], University of California Press, Berkeley, 1985.
9 Ellen Gruber Garvey, The Adman in the Parlor. Magazines and the Gendering of Consumer Culture, 1880s to 1910s [O publicitário na saleta. Revistas e a criação da cultura consumidora, dos anos 1880 aos 1910], Palgrave Macmillan, Nova York, 1996.