Da Síria ao Sudão: como contar os mortos?
A verdade é importante. Entretanto, muitas vezes governos ocultam e minimizam mortes. As pessoas precisam saber o que aconteceu para sobreviverem e lidarem com eventos dramáticos, incluindo a enorme perda de vidasRobert Muggah
Pelo menos 122.683 sírios morreram de forma violenta desde o início da guerra civil há quatro anos, de acordo com o Centro de Documentação de Violações na Síria. Ou talvez o número de mortes violentas seja mais próximo de 330 mil, conforme relatado pelo Observatório Sírio de Direitos Humanos. Embora inicialmente relutante em publicar números, recentemente, a ONU se posicionou de forma segura e declarou que 250 mil sérios teriam morrido como resultado do conflito armado. Tal irregularidade estatística é assustadoramente comum quando o assunto é a contagem dos mortos.
Tomemos como exemplo o caso do conflito de Darfur, no Sudão, entre 2003 e 2004. Especialistas alegaram que o conflito resultou em mais de 450 mil mortes, mas o presidente sudanês Omar al-Bashir insiste que o total foi menos do que 9 mil. E o que dizer de alegações conflitantes sobre o massacre de Nanquim no final de 1937, começo de 1938: onde somente algumas centenas de chineses foram mortos, de acordo com alguns acadêmicos japoneses, ou foram pelo menos 300 mil, conforme insistem as autoridades chinesas?
Como é frequentemente o caso em tempos de guerra, a verdade é uma baixa. Sistemas de registro oficial tendem a entrar em colapso, portanto, o registro oficial de mortes de civis não é confiável. Governos e grupos armados exageram ou distorcem de forma rotineira os números. Para complicar ainda mais, acadêmicos e ativistas que estudam o número de mortes nos locais (hot spot) mais violentos do mundo discordam amargamente.
No entanto, uma contagem precisa dos mortos é fundamental. Pois isso pode levar à uma indenização e ao ponto final por parte das famílias e entes queridos daqueles que se foram. O epidemiologista Les Roberts diz: “Não reconhecer a morte de uma pessoa é um ato de desrespeito com aqueles que a amavam”. Além do mais, números altos e críveis podem pressionar doadores a enviar mais ajuda para o desenvolvimento e reparação de locais distantes, enquanto uma estimativa baixa pode dissuadir a ONU de enviar forças de paz.
Uma contagem confiável e verificável também possui implicações para a justiça criminal internacional, e é frequentemente utilizada para estabelecer se crimes de guerra foram cometidos. Evidência de violência letal sustentada, dispensada contra um grupo étnico ou minoritário específico, tem sido utilizada por promotores para comprovar ou refutar a incidência de violações de direitos humanos sistemáticas, atrocidades em massa e até genocídio.
Os contadores de corpos adotam diversas abordagens. Alguns reúnem informações meticulosamente coletadas de valas comuns, cemitérios, necrotérios e pronto socorros. Alguns visitam cidades que foram bombardeadas para registrar o testemunho de sobreviventes, portando pouco menos do que caneta e papel. Outros examinam dados de jornais, organizações de direitos humanos, mídia social e até satélites.
Alguns cientistas sociais insistem que somente casos de assassinato verificados devem ser incluídos. Grupos de advocacy como o Every Casualty e o Iraq Body Count (IBC) tentam restringir suas contagens a incidentes onde há indícios de um corpo e das circunstâncias da morte da pessoa. O ideal seria que cada vítima tivesse um nome. E como eles limitam suas contagens a casos de morte violenta documentados de forma precisa, são muitas vezes criticados por subestimar a escala da violência letal.
A maioria dos especialistas em saúde pública depende de pesquisas populacionais para extrapolar o número de pessoas que morrem por causa da guerra. Organizações como o Centro de Pesquisa em Epidemiologia de Desastres coleta amostras aleatórias de populações para estimar o que é conhecido como “mortes em excesso” – a extensão da mortalidade acima da linha de base pré-guerra. Pesquisadores utilizam o que eles chamam de uma autópsia verbal para entrevistar membros das famílias sobreviventes para determinar quem morreu e como. Como eles dependem de técnicas de estimação e contam todas as mortes, não somente às oriundas da violência, muitas vezes são acusados de superestimar o número de óbitos.
Mesmo que compartilhem uma causa comum, cientistas sociais e especialistas em saúde pública, com frequência geram números de mortos extremamente divergentes. Tomemos o caso do Iraque no início da invasão de 2003, liderada pelos Estados Unidos, onde as estimativas de morte de civis vão de algumas dezenas de milhares para mais de 1 milhão. Um grupo de especialistas em saúde pública publicou dois estudos amplamente divulgados e revisado por pares, sobre a taxa de mortalidade no Iraque em 2004 e 2006. Com base em dados gerados pela pesquisa, o primeiro estudo estimou 98 mil mortes em excesso, enquanto o segundo, mais polêmico, apresentou uma previsão mais próxima de 650 mil mortes, ou seja, 2,5% de toda a população iraquiana.
Enquanto isso, o IBC publicou números muito mais contidos de menos de 24 mil iraquianos mortos de forma violenta entre 2003 e 2004, e pouco mais de 66 mil de 2003 até 2006. Os defensores do IBC desafiaram a veracidade das estimativas apresentadas pelos especialistas de saúde pública, apontando que se fossem precisas, “[aí] meio milhão de atestados de óbitos teriam sido recebidos por famílias, que nunca foram registrados oficialmente como emitidos”. Enquanto ambos conjuntos de números são assustadores, os resultados dos pesquisadores sacudiram o mundo. O ex-presidente George W Bush rejeitou os estudos, alegando que o número de óbitos de civis estava mais perto de 30 mil.
Alguns pesquisadores estão traçando um caminho mais ao meio para contar mortes de civis de forma mais precisa. Patrick Ball é um pioneiro no que é conhecido como estimativa de sistemas múltiplos. A equipe dele combina estatisticamente registros de morte, prova testemunhal, relatórios de direitos humanos e dados de pesquisas populacionais para estabelecer contagens gerais de mortalidade. Sua pesquisa tem sido utilizada em julgamentos criminais na Guatemala, Serra Leoa e na antiga Iugoslávia.
Muitos acreditam que ele chegou o mais próximo possível, dentro do que é atualmente viável, do padrão ouro.
A quantificação de mortes violentas vai muito além de um exercício acadêmico. Contagens de óbito robustas ajudaram a condenar criminosos de guerra e deram apoio a comissões da verdade, em sociedades destruídas por violência e desordem. Conforme estimativas apoiadas por grupos de ajuda e ativistas na República Democrática do Congo (RDC) e no Sudão demonstraram, números altos de morte ajudaram a liberar bilhões em assistência financeira e incentivaram o emprego de dezenas de milhares de tropas de paz da ONU.
No caso da RDC, o Comitê Internacional de Resgate (IRC) contratou uma série de pesquisas de mortalidade entre 2000 e 2007. Recenseadores foram instruídos a documentarem todas as mortes, não somente as resultantes de projéteis ou facas. Seus resultados foram chocantes. Os pesquisadores inicialmente alegaram que 5,4 milhões de congoleses morreram, como resultado do conflito armado entre 1998 e 2006. Os críticos subsequentemente sugeriram que o número fosse revisto para baixo, chegando a 2,8 milhões de mortes, com aproximadamente 10% delas atribuídas a violência.
Os estudos do IRC pressionaram doadores em aumentar seu financiamento para a região em 500%. Eles também ajudaram a justificar o emprego da maior força de paz da ONU na história. Logo depois, as próprias pesquisas sobre a RDC começaram a ser criticadas. Andrew Mack, da Organização One Earth Future, sediada em Denver, determinou que o número de mortes estava mais perto de 900 mil, muito abaixo da estimativa original.
A verdade é importante. Entretanto, muitas vezes governos ocultam e minimizam mortes. Como o ex-general Tommy Franks declarou quando questionado sobre as altas taxas de feridos durante a campanha no Afeganistão: “Nós não contamos os corpos.” Mas descontar a morte não faz parte dos interesses de longo prazo de nenhuma sociedade. As pessoas precisam saber o que aconteceu para sobreviverem e lidarem com eventos dramáticos, incluindo a enorme perda de vidas.
Robert Muggah é diretor de pesquisa do Instituto Igarapé no Rio de Janeiro e na SecDev Foundation. Ele também é membro do Canadian Global Affairs Institute.