Quantas vezes a vítima de Daniel Alves foi violentada?
Mais urgente do que saudar a recente condenação a quatro anos e meio de prisão é identificar o volume de agressões desde o início do caso. Leia no novo artigo da série Entrementes
Em abril, completa um ano a declaração em que Daniel Alves reconheceu com veemência que mentiu sobre o episódio de violência sexual às vésperas da virada para 2023. O caso, publicizado como uma vitória em direção à justiça, é outro indício da sequência de violações a que as vítimas são submetidas em processos como esse, que culminou na condenação pelo aparato judicial da Espanha ainda no início de 2024. A justificativa para a troca de versão: era preciso manter o que aconteceu na boate sob silêncio para não soar infiel à esposa.
A vítima, cujo nome foi mantido sob sigilo, aparecia assim como o foco de uma provocação tamanha capaz de desvirtuar o marido, pai de família, homem responsável que edificou uma vida pública – a ponto de ser considerado ídolo nacional. Daniel Alves morava no México, mas estava na Espanha para o velório da própria sogra quando o caso se desenrolou. Com a reviravolta de 2023, então, à mulher violentada foi reservada a vilania em oposição à constituição familiar, ao lar que o jogador havia composto.
Mais urgente do que saudar a recente condenação a quatro anos e meio de prisão por violência sexual como um marco é identificar a quantas humilhações foi submetida a vítima desde que resolveu revelar o crime cometido. A primeira, imediata, foi se levantar, retornar à pista de dança e se deparar com o que parecia ser uma noite comum para todos: as conversas fluíam, as danças eram parecidas com a dos demais dias na casa noturna, Daniel Alves se comportava como se nada de grave tivesse acontecido.
Em seguida, outra violência – relatar à equipe do estabelecimento que havia sido violentada. Repisar, rememorar, recuperar os detalhes de cada dor, à flor da pele, eram formas de fazer com que o crime fosse repetido. E era só o começo: a partir dali, os relatos seriam repetitivos, cada vez para interlocutores diferentes. Rapidamente, para os seguranças; adiante, para a promotoria; e, pouco antes da decisão judicial, para a própria Corte. As consecutivas humilhações não se restringiriam à esfera da linguagem.
O protocolo estabelecido pelas autoridades espanholas prevê procedimentos para comprovação dos casos de estupro. Numa descrição fria, o exame de corpo de delito é a identificação de indícios que atestem ou não alguma prática criminosa. Para a vítima, é a exposição a legistas, possivelmente homens, que novamente farão vir à tona dos gestos menos aparentes aos mais agressivos do momento do crime. Além disso, novamente se coloca em posição vulnerável a mulher que já havia sido exposta a tudo aquilo.
E então se somam às desconfianças quanto às denúncias da mulher – mal crônico da sociedade – a pressão midiática. Daniel Alves forçou uma repercussão favorável em entrevista, ainda em junho, quando afirmou que a perdoava. As declarações à imprensa manifestam a intenção de sustentar a versão de que o encontro entre ambos foi consensual e que somente os dois sabiam o que tinha acontecido. A despeito das comprovações, o absurdo clima de suspeitas contra a acusação é preservado até hoje por canais no YouTube.
O apoio vem a reboque dos ventos apologéticos a Daniel Alves, que se fortaleceram no fim da carreira profissional. Liderança na seleção brasileira, capitão do São Paulo e reforço chamativo do Pumas do México: o noticiário incensava os seus feitos na contramão dos problemas disciplinares e das quedas de rendimento atlético. Em 2022, foi ainda cabo eleitoral para a reeleição do então presidente da República Jair Bolsonaro, em coro com colegas de modalidade, milicianos e envolvidos em acusações de estupro.
Companheiro de delegação de Daniel Alves no Mundial de 2010, Robinho foi condenado na Itália por violentar coletivamente uma jovem albanesa. Vale destacar: a antiga dupla da seleção fez campanha para o mesmo candidato em 2022. Ainda que a decisão judicial tenha sido anunciada no ano da votação que definiu uma derrota em escala nacional do bolsonarismo, o atacante seguiu em liberdade no Brasil. Somente a pressão de movimentos sociais evitou que sua carreira prosseguisse normalmente após o crime.
Em todos os níveis, o desequilíbrio entre as partes do caso Daniel Alves é nítido. No banco dos réus esteve um homem conhecido, milionário, na lista dos cinco jogadores de futebol que mais atuaram com a camisa da seleção – a maior campeã da história das Copas do Mundo. A acusação se ampara no depoimento de uma mulher, desconhecida, para quem os relatos dificilmente seriam avalizados como legítimos perante o muro de desconfiança que se ergue todas as vezes que novos episódios de assédio vêm a público.
Tornar-se invisível era o último recurso para sobreviver, uma vez que as disparidades eram de tal amplitude. Eis, então, outra violência – a mãe de Daniel divulgou a identidade pelas redes sociais. O fato de uma voz feminina ter descredibilizado o relato é um agravante nessa investida, agora contra a única forma de resistência possível naquelas circunstâncias. As imagens publicadas supostamente registravam instantes de diversão da mulher. Ou seja, a partir do episódio, à vítima apenas caberia um sofrimento sem fim.
Em ritmo de violências consecutivas: os procedimentos jurídicos, de certo modo, realçam essa hipótese de calvário. Entre a defesa e o Ministério Público pairava o desejo de que todo o julgamento fosse às portas fechadas, em tentativa de conter a superexposição. Mesmo a justiça espanhola – cujos protocolos recentes para violência sexual e velocidade para os processos até a punição têm sido elogiados –, rubricou a necessidade de abrir os ritos da Corte e fez com que somente o depoimento da vítima fosse restrito no tribunal.
A cobertura esportiva registrou a aliança com Neymar, que colaborou em dinheiro para que a pena de Daniel Alves fosse reduzida. Seria o mais escandaloso gesto de agressão, se o atacante atualmente no Catar não tivesse sido acusado de diferentes episódios de assédio. O primeiro terminou com o indiciamento por calúnia contra a suposta vítima; o segundo foi amplamente silenciado e culminou no rompimento do astro do futebol com a fornecedora de material esportivo Nike. Um retrospecto que impede qualquer surpresa.
Daniel Alves nasceu em Juazeiro, na Bahia. Uma estátua em homenagem ao jogador foi construída, ainda antes dos seguidos gestos de violência impostos pelo réu e pelas consequências de seus atos, contra a vítima. Várias manifestações foram realizadas diante daquele monumento que, agora, não deixa de ser a expressão de uma agressão permanente à mulher violentada. A prefeitura, contudo, respondeu que a escultura em bronze será mantida. Cumpre mandato, no Executivo municipal, Suzana Ramos.
Helcio Herbert Neto é doutor em História Comparada (UFRJ), mestre em Comunicação (UFF), formado em Jornalismo (UFRJ) e em Filosofia (UERJ).