Days Gone e a representação anarquista no mundo dos games
Podemos conceber os games, não somente como um produto da indústria cultural (o que realmente são), mas como uma arte interativa que produz narrativas capazes de nos fornecer ferramentas interpretativas que ajudam a entender melhor o mundo em que vivemos. Parece o conto de Alice, no qual a menina precisou ir para um mundo imaginário e fantasioso, que possui regras completamente distintas do mundo real, para poder tirar dali uma lição útil para a vida
Como afirma a professora Lucia Leão “alguns jogos parecem ser criados como propostas subversivas e funcionam como elementos desestabilizadores”. Em seguida, a professora da PUC-SP, especialista em mídia e tecnologia, em um texto que analisa a lógica subversiva dos games, salienta que “a game art se desvela como uma intervenção lúdica de alto poder político. Em geral, as peças de game art se apropriam de jogos conhecidos ou videogames comerciais e dão a eles caráter crítico e questionador”1. É por esta perspectiva que iremos analisar os games aqui abordados.
Bakunin crítica o reformismo cooperativo proposto pelos socialistas, afirmando que este sistema não deu certo onde foi testado (Alemanha, Inglaterra e França), pois o sistema capitalista ainda era predominante. Contudo, propõe o alargamento da Associação de Trabalhadores “para que a nossa solidariedade, que é toda a nossa força, se torne de dia para dia mais real […] Associemo-nos nos empreendimentos comuns para nos tornar a existência um pouco mais suportável e menos difícil; formemos em todo o lado e tanto quanto nos for possível as sociedades de consumo, de crédito mútuo e de produção, que sendo completamente incapazes de nos emancipar dum modo suficiente e sério nas condições econômicas atuais, habituam os operários a resolver dificuldades e a prepararem germes preciosos para a organização do futuro”2. Muitos acreditam que isso seja o anarco coletivismo.
Nós podemos encontrar a representação desse modelo em um tipo de arte que vem se expandindo cada vez mais neste século, atraindo jovens de várias partes do mundo: os videogames.
Em Gears of War 4, jogo exclusivo do XBOX One, que ganhará uma sequência este ano, um dos personagens, ao ser abordado por robôs policiais, atira na cabeça de uma das máquinas que o chamou de cidadão. Em seguida, explica sua atitude: “Ser ‘cidadão’ implica em obedecer uma autoridade centralizadora de poder. Me identifico com o sistema anarco coletivo”. De fato, naquela realidade virtual, um ciberespaço futurista, no qual o jogador controla um esquadrão que vive sendo perseguido pela autoridade local, muitos moravam em uma espécie de acampamento paralelo ao mundo “civilizado”, bem a maneira que Bakunin descreve como deveria ser a associação de trabalhadores.
Quando o capitalismo entrar em colapso, viveremos na barbárie? Bakunin parece querer nos alertar para isso quando fala de nos preparar para o “futuro”. Os socialistas também têm essa perspectiva. Falam que a doutrina política que defendem serve para preparar a sociedade e, quando ocorrer a catástrofe do capitalismo, seria necessário haver uma alternativa, para que não voltemos à selvageria. Isso é comum em ambas as ideias políticas.
Contudo, o jogo eletrônico, que mostra a alternativa anarco coletiva com mais destreza, é o exclusivo do PlayStation 4, Days Gone. Lançado em abril deste ano, o game mostra um mundo em que o apocalipse foi causado por um vírus que transformou diversas pessoas em criaturas conhecidas como “frenéticos”, zumbis extremamente ágeis que se organizam em bandos e hordas.
O jogador controla Deacon Saint John, que se torna um viajante caçador de recompensas. E aqui chegamos à grande questão: ele prefere viver nas estradas, com sua moto, a se instalar em um acampamento. Esses acampamentos possuem líderes, contudo, não há uma produção capitalista em nenhum deles, isto é, uma produção que explora a força de trabalho com finalidade lucrativa. São pequenas comunidades que vivem do trabalho coletivo e cada indivíduo recebe de acordo com o que produz. Há a figura do líder, todavia, está muito longe de se parecer com um capitalista ou com um presidente que comanda um exército.
Aqui, é importante lembrar do que dizia Malatesta sobre o fato de o trabalhador ter passado a “acreditar que seu senhor era aquele que lhe dava o pão, e perguntava ingenuamente como viveria se não tivesse um patrão”3. Nessa sociedade anarquista, não existe a figura do patrão, mas apenas a ideia de se receber uma recompensa pelo trabalho realizado.
Ao avançar a campanha do game, encontramos os remanescentes de um exército, que, por meio de uma mistura de militarismo e religião, tentam controlar todos os outros acampamentos para impor um único modelo de gestão controlado por um general que, convenientemente, se aproxima da imagem da organização dos Estados atuais. E esse é o ponto que leva nosso avatar a optar por uma realidade anarquista.
O anarquismo é construído pela cooperação entre trabalhadores sob nenhuma autoridade ou punhado de leis. Bakunin, ao criticar Karl Marx, demonstra que a Internacional deveria ser composta pela solidariedade entre os trabalhadores e não uma reunião que propunha uma forma de governo: “Porque a unidade real e viva da Internacional consiste na organização verdadeira desta solidariedade mediante as ações espontâneas das massas operárias e da federação livre – quanto mais livre, mais poderosa – das massas trabalhadoras de todos os idiomas e nações e não mediante a unificação obtida por decretos e sob o tacão de algum governo”4.
Deacon, depois que reencontrou sua esposa (o que parecia ser o objetivo principal do game), embarca em uma empreitada que visa impedir o desígnio do líder militar lunático de “reestruturar a civilização” (leia-se sistema capitalista) como ele mesmo, diversas vezes, afirmava.
Sendo escolhido pelo próprio acampamento para liderar a resistência, Deacon recusa tal título (mais uma característica anarquista do personagem), mas traça um plano para invadir o forte militar ao lado dos integrantes dos três acampamentos (que formam um exército de trabalhadores) espalhados pelo mundo aberto do game. Essa atitude representa a ação direta anarquista contra a dominação militar, religiosa e autoritária.
A visão anarquista acredita menos na guerra, na luta voraz de uns contra os outros, que na solidariedade, como força motriz da evolução humana. Nos afirma Kropotikin, famoso anarquista russo: “Considerando os incontáveis fatos que podem ser apresentados para corroborar essa visão (darwinismo social), podemos dizer com segurança que tanto a ajuda mútua quanto a luta de todos contra todos são uma lei da vida animal; mas, enquanto fator de evolução, a primeira tem provavelmente uma importância muito maior, na medida em que favorece o desenvolvimento dos hábitos e características que asseguram a manutenção e a evolução da espécie, além de maior bem-estar e melhor qualidade de vida para o indivíduo com o menor dispêndio de energia”5. O game representa a vitória de um grupo que optou por viver adotando a ajuda mútua negando, por seu turno, a lógica perversa (militar e religiosa) que coloca uns contra os outros, o que pode claramente ilustrar a perspectiva anarquista de Kropotikin.
A sobrevivência da sociedade estaria nas mãos da ciência (a esposa de Deacon era uma cientista) e do trabalho coletivo, um cenário que mais parece ter saído de um dos escritos de Bakunin: “Apenas o concurso da inteligência e do trabalho coletivo puderam forçar o homem a sair do estado de selvagem e de bruto que constituía sua natureza primária, ou bem seu ponto inicial de desenvolvimento posterior”6.
Desta maneira, podemos conceber os games, não somente como um produto da indústria cultural (o que realmente são), mas como uma arte interativa que produz narrativas capazes de nos fornecer ferramentas interpretativas que ajudam a entender melhor o mundo em que vivemos. Parece o conto de Alice, no qual a menina precisou ir para um mundo imaginário e fantasioso, que possui regras completamente distintas do mundo real, para poder tirar dali uma lição útil para a vida.
1 LEÃO, L. O jogo ideal de Alice: o videogame como arte. In: Lucia Santaella e Mirna Feitoza (orgs.), Mapa do jogo: a diversidade cultural dos games, Cangage Learning, São Paulo, 2009, p. 115.
2 BAKUNIN, M. O conceito de liberdade. Porto: RES Limitada, 1975, pp. 156-157.
3 MALATESTA, E. Definição de anarquista. In: WOODCOCK, G. Os grandes escritos anarquistas. Porto Alegre: L&PM, 1998. p. 59.
4 Apud. NORTE, Sergio Augusto Queiroz. Bakunin: sangue, suor e barricadas. São Paulo: Papirus, 1988, p. 103.
5 KROPOTIKIN, P. Ajuda Mútua: um fator de evolução. São Sebastião: A Senhora Editora, 2009, p. 22. Disponível em: https://www.anarquista.net/ajuda-mutua-um-fator-de-evolucao-de-piotr-kropotkin-livro/. Acesso em: 26 de jul. 2019.
6 BAKUNIN, M. A Comuna de Paris e a noção de Estado. In: Verve, n. 10, pp. 75-100, 2006, p. 91. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/verve/article/view/5433/3880. Acesso em: 23 de jul. 2019