De Lutero aos neopentecostais: como os evangélicos atraem tanta gente?
No Brasil, a tese mais conhecida sobre o crescimento evangélico é, evidentemente, o neopentecostalismo, categoria sociológica criada para observar a “nova onda” que teria surgido no interior do movimento evangélico ao final do século XX, mas que ganha força sobretudo a partir dos anos 2000. Entre as suas características principais, estariam a “guerra espiritual”, a “teologia da prosperidade” e a forte presença nos meios de comunicação e na política partidária
Há quinhentos anos, o monge agostiniano Martinho Lutero era excomungado pela Igreja Católica. O episódio era a cena final de uma longa série de conflitos entre a hierarquia da igreja romana e um grupo de revoltosos alemães, que culminou na maior cisão do cristianismo ocidental, a chamada Reforma Protestante.
Cinco séculos mais tarde, o movimento iniciado por Lutero ainda é motivo de polêmica. Sobretudo nos países do Hemisfério Sul, região onde o protestantismo tem se expandido de maneira vertiginosa nas últimas décadas. Isso tem feito com que muitos analistas acreditem que o século XXI poderá ser conhecido como a Era Evangélica. Uma pergunta, no entanto, permanece aberta: afinal, o que os evangélicos fazem para atrair tantas pessoas?
Na busca por desvendar esse enigma, muitos estudiosos têm procurado explicar as causas da ascensão desse movimento. No Brasil, a tese mais conhecida sobre o crescimento evangélico é, evidentemente, o neopentecostalismo, categoria sociológica criada para observar a “nova onda” que teria surgido no interior do movimento evangélico ao final do século XX, mas que ganha força sobretudo a partir dos anos 2000. Entre as suas características principais, estariam a “guerra espiritual”, a “teologia da prosperidade” e a forte presença nos meios de comunicação e na política partidária.
Embora essa seja uma percepção compartilhada por muitos pesquisadores, ela ajuda a explicar apenas parcialmente o fenômeno do crescimento evangélico. Isso porque tanto o neopentecostalismo e a chamada “Teologia da Prosperidade” só dão conta de explicar o crescimento de uma fração dos evangélicos, e não o seu todo. Pior: ao focar quase exclusivamente nos elementos midiáticos desse movimento, muitos deram (e dão) pouca atenção para como os evangélicos atuam na prática, perdendo assim de vista alguns aspectos que não só enriquecem o entendimento sobre essa religião como também ajudam a explicar a sua rápida expansão pelo país.
Ativistas, solidários e empreendedores: os evangélicos vistos de perto
Para se compreender como os evangélicos têm encontrado um solo fértil para a sua religiosidade no país, talvez seja preciso um olhar mais profundo sobre eles. Para isso, algumas perguntas se tornam pertinentes: em primeiro lugar, quem são os evangélicos no Brasil?
Em geral, costuma-se tipificar os evangélicos brasileiros a partir de três grandes correntes. O protestantismo histórico, primeira corrente a chegar ao país, conhecida pelas denominações clássicas (como luteranismo, presbiterianismo, batistas etc.), e cuja corrente busca ser aquela que preserva os princípios da Reforma Protestante. O pentecostalismo clássico, corrente popular do protestantismo que se inicia no século XX e que pretende, além de reiterar a importância bíblica no cotidiano, experimentar um contato com o divino por meio de manifestações espirituais como o falar em línguas, curas e outros milagres. E, mais recentemente, o neopentecostalismo, como já citamos, categoria sociológica criada para tipificar o movimento religioso que surge no interior do pentecostalismo clássico, mas que se expande por uma teologia que enfatiza a batalha espiritual, a obediência aos líderes e a prosperidade.
Essas diferenciações são importantes, especialmente quando temos em mente a que grupos sociais essas correntes costumam a estar segmentadas. Por exemplo, os protestantes históricos tendem a se concentrar entre as classes médias e altas, e geralmente entre as camadas mais escolarizadas, o que justifica a priorização da formação intelectual dos seus membros, seja pelos grupos de estudos bíblicos desenvolvidos pelas suas igrejas ou pelos institutos teológicos que formam seus quadros de liderança. Essa penetração fica evidente, também, pelos colégios e universidades protestantes espalhadas Brasil afora, que servem não só para educar bem como para estimular uma dada visão de mundo de inspiração protestante.
Já os pentecostais percorrem um caminho diferente. Por suas próprias origens populares – concentradas sobretudo entre mulheres negras e trabalhadores informais –, o pentecostalismo desenvolveu uma religiosidade menos acadêmica e racionalizada que as correntes do protestantismo clássico. Porém, é muito mais “avivada” no sentido de propiciar uma experiência de fé carismática marcada por uma espiritualidade de cunho místico, profético e emotivo. Dessa forma, o crente pentecostal não apenas “aprende” sobre Deus como também o “experimenta” em seu cotidiano, via dons espirituais.
Sendo o pentecostalismo uma religião majoritariamente popular e periférica, em que o cotidiano é atravessado por múltiplas experiências de privações, o fato da fé pentecostal ressignificar as trajetórias passadas e reorganizar a vida presente e futura dos crentes, a partir da conversão, é fundamental. O sucesso do pentecostalismo e a sua importância moralizadora nas periferias reside no papel dignificador que a igreja atribui para essas pessoas, bem como as embute uma ética que as mantém disciplinadas e resilientes diante da luta pela sobrevivência – uma motivação elementar para todos aqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade.

Além disso, a própria comunidade evangélica torna-se um local estratégico de acolhimento das populações mais pobres, seja do ponto de vista material ou espiritual. Isso porque a igreja não se resume apenas a um ambiente de culto, como também se estende a uma rede de apoio mútuo entre os irmãos – oferecendo ajudas em momentos de necessidade, como ofertas de roupas e cestas básicas, ajuda no cuidado aos filhos, indicações de emprego etc. –, além, é claro, de ser um espaço importante de lazer, cultura e sociabilidade das periferias, já que junto com o culto outras ações são desenvolvidas como as bandas de música, os grupos de teatro, dentre outras.
Por fim, cumpre observar a atuação das igrejas neopentecostais. Embora boa parte delas apresente alguns traços próximos do pentecostalismo, sua grande novidade está em promover uma verdadeira indústria cultural evangélica (o gospel), do mesmo modo em que transforma os seus templos-sede em uma espécie de “tenda dos milagres”, onde os problemas podem ser extirpados pelo poder sobrenatural de um líder, de uma campanha ou de uma denominação em específico.
Outro segmento de inspiração neopentecostal que desperta atenção são as chamadas “igrejas em células”, denominações que adotam como principal estratégia fomentar grupos religiosos nas casas dos fiéis com o intuito tanto de atrair novas pessoas para a igreja como de estimular a criação de novos líderes. Na prática, essas células atuam como uma espécie de pequena paróquia doméstica, cuja meta principal é a multiplicação para outras “células”, numa lógica muito semelhante às estratégias de marketing multinível, a exemplo de Avon, Mary Kay etc.
Como o ambiente doméstico tende a ser mais intimista que uma igreja convencional, as células acabam por incentivar pequenas redes de sociabilidade entre os membros, fortalecendo assim os laços de afinidade dos fiéis. Ao mesmo tempo, os incentiva a desenvolver certas habilidades empreendedoras, como liderança, oratória, persuasão, dentre outros. E, embora essas denominações não figurem entre as maiores do meio evangélico, essas igrejas apresentam um crescimento notável desde meados dos anos 2000, particularmente porque conseguem pulverizar sua atuação em pequenos núcleos pelas cidades, sem a necessidade de alugar grandes espaços de culto, inclusive empoderando os seus membros a fazerem o “pastoreio” daqueles que chegam depois deles. Isso favorece a formação de líderes em escala, que acabam por contribuir para o crescimento evangélico de forma orgânica, mesclando assim técnicas avançadas de marketing e empreendedorismo ao já conhecido proselitismo evangélico.
O que o crescimento evangélico nos ajuda a entender sobre o Brasil atual
Tomando de empréstimo a expressão do antropólogo brasileiro Juliano Spyer, tudo indica que os anos 2020 serão marcados pela “década evangélica”. Há boas razões para se acreditar nisso. Sobretudo quando temos em vista as afinidades que essa religiosidade apresenta com o “espírito” do novo capitalismo – no qual a iniciativa privada e as atitudes empreendedoras individuais são elevadas à solução ideal para todos os problemas sociais, ao mesmo tempo em que os direitos e as garantias promovidos pelo Estado são moralmente atacados e juridicamente desmontados.
Nesse sentido, nada parece mais adequado para essa ideologia que uma teologia que valoriza, de um lado, a meritocracia como um valor espiritual enquanto comprova, de outro, que há melhora de vida sem a necessidade de intermediação do Estado. Soma-se a essa visão o fundamentalismo conservador, que tem dominado a cena política brasileira recente, e atuando com pautas antidemocráticas, voltadas para a intolerância religiosa e para a cristianização do poder público por meio dos costumes.
Mas nem só de ideologia vivem os crentes. Seja pela formação intelectual dos protestantes históricos, seja pela acolhida comunitária dos pentecostais, e até mesmo pelo marketing dos neopentecostais, os evangélicos têm conquistado o seu lugar na cena pública brasileira de forma plural, difusa e não raras vezes conflituosa, o que abre espaço para que novas práticas e narrativas disputem o campo religioso no país. Exemplo disso é a recente eclosão das diversas frentes evangélicas progressistas, que surgiram como alternativa ao fundamentalismo conservador e procuram, a seu modo, estabelecer um diálogo entre os pressupostos do cristianismo e pautas igualitárias de esquerda. São nuances como essas que revelam o crescimento evangélico mais complexo do que pretendem os analistas, mais contraditório do que desejam seus entusiastas e certamente um elemento indispensável para qualquer observador que deseje compreender o Brasil recente.
Rafael Rodrigues da Costa é sociólogo, mestre em Ciências Sociais pela Unifesp e pesquisador visitante da Universidade Federal da Bahia (UFBA).