De onde vêm os derivativos?
Estatísticos, doutores em álgebra, programadores, todos esses depositários do gênio humano poderiam ter dedicado seu saber a construir, curar ou descobrir. Entretanto, eles se tornaram banqueiros, atraídos a preço de ouro pelas instituições financeiras
Fabrice Tourre é um dos tantos analistas quantitativos, engenheiros e outros cientistas que as instituições financeiras agarram a preço de ouro para montar “transações complexas, de alto efeito de alavancagem, exóticas, sem necessariamente compreender todas as implicações de tais monstruosidades”, segundo os termos de uma correspondência privada do próprio negociante (trader) da Goldman Sachs. Escrito no início de 2007, às vésperas da crise das hipotecas norte-
-americanas, o documento causou escândalo quando foi revelado, em abril de 2010.
“Todo o edifício poderia desabar”, diz Tourre já de saída. Em seguida, ironiza: “Eu não me sinto muito culpado. O essencial de meu trabalho é tornar os mercados de capitais mais eficientes e, no fim da cadeia, proporcionar ao consumidor norte-americano meios mais eficazes para conseguir crédito e financiamento, portanto, meu trabalho está cheio de modéstia, nobreza e ética. Incrível como sou bom em convencer a mim mesmo!!!”.1
Tudo está lá: a ladainha sobre os benefícios da inovação financeira, o cinismo, o método Coué e, em última instância, a boa consciência dos traders, criadores de monstros que, como Frankenstein, voltam-se contra o criador.
As finanças teóricas nasceram em 1973, com os trabalhos de Fischer Black e Myron Scholes, que estabeleciam uma relação entre o preço implícito de uma opção e as variações do ativo ao qual ela está vinculada. Os aspectos matemáticos do modelo foram desenvolvidos pouco depois por Robert Merton, e a fórmula Black-Scholes – às vezes apresentada como Black-Scholes-Merton (BSM) – e suas diferentes declinações serviram de fundamento para a criação de um número infinito de derivativos.
Esses trabalhos inspiraram-se em uma tese escrita em 1900, sob a direção de Henri Poincaré, pelo matemático francês Louis Bachelier. Duas outras influências também merecem ser mencionadas. Primeiro, Milton Friedman. Esse ardente defensor do liberalismo puro e simples, figura de proa da Escola de Chicago, afirmava não ser necessário que um modelo fosse fundado em dados realistas: bastava que suas previsões fossem consideradas precisas. Depois, no final dos anos 1960, Eugene Fama, também da Universidade de Chicago, formulou a hipótese de que os mercados eram “eficientes”. Essa hipótese, transformada em dogma, impôs a tautologia como modo de raciocínio. Aliás, qualquer intervenção do Estado tornou-se, por definição, um fator de ineficiência.
As finanças teóricas obtiveram a consagração suprema em 1997, quando Scholes e Merton receberam o Prêmio Nobel de Economia (Black, falecido dois anos antes, portanto inelegível, foi citado por sua contribuição). Infelizmente, menos de um ano depois, o fundo especulativo Long Term Capital Management (LTCM), que nascera de seu trabalho e do qual eles eram os mais célebres participantes, afundou, ameaçando levar consigo várias grandes instituições financeiras internacionais. Somente uma intervenção coordenada pelo Federal Reserve de Nova York conseguiu evitar a catástrofe. Quando perguntaram a John Meriwether, trader lendário e fundador do LTCM, se ele achava que os mercados eram eficientes, ele respondeu: “Eu os torno eficientes”.2
Os mercados passaram por muitos outros temores causados pelas invenções de “prodígios” financeiros,3 sem que isso impedisse a “inovação” de começar sempre outra vez. O dogma havia simplesmente invadido as instituições financeiras, as escolas de gestão e os governos.4 Os geniozinhos que afirmavam gerir “cientificamente” o risco lembram “os melhores” e “os mais inteligentes” que atolaram os Estados Unidos no Vietnã.
É bom reler o que dizia o ex-presidente do Federal Reserve, Alan Greenspan, em maio de 2000: “Desenvolvimentos significativos na tecnologia e na determinação dos preços dos ativos levaram a inovações financeiras que permitem discernir os riscos e reatribuí-los àqueles que são mais dispostos e mais capazes de assumi-los […]. Essa transferência de riscos fortalece o sistema financeiro e a economia. Na virada do século XXI, as configurações possíveis de produtos e serviços oferecidos pelas instituições financeiras parecem ilimitadas. Não há dúvida de que as mudanças em curso na paisagem financeira oferecem benefícios claros para a grande maioria do povo norte-americano”.5
Não fazia sentido
Foi preciso esperar pela crise para que as vozes discordantes se fizessem ouvir, como a do grande matemático Benoît Mandelbrot: “As pessoas adotaram uma teoria inaplicável – a de Merton, Black e Scholes, originada dos trabalhos de Bachelier, que datam de 1900 – e que não fazia nenhum sentido. Digo isso desde 1960. Essa teoria não leva em conta as mudanças de preços instantâneas que, contudo, são a regra em economia. Ela coloca informações essenciais debaixo do tapete. […] Era inevitável que coisas muito graves acontecessem. As catástrofes financeiras frequentemente se devem a fenômenos muito visíveis, mas que os especialistas não querem ver”.6
Já o filósofo e estudioso do acaso nas probabilidades Nassim Nicholas Taleb, que trabalhou muito tempo como trader em Nova York, rebela-
-se contra “a maneira como se camufla a canalhice por trás da matemática”.7 Isso porque um dos benefícios do uso imoderado de signos e símbolos é criar uma cortina de fumaça que encobre as pistas e separa os iniciados do conjunto dos simples mortais. Como outrora ocorreu com o latim, a matemática tornou-se um meio de estabelecer a autoridade dos novos cleros.
É vã a busca frenética por leis que, como nas ciências físicas, poderiam explicar o funcionamento do mundo. Andrew Lo, professor da Sloan School of Management do Massachusetts Institute of Technology (MIT) e dissidente do mercado financeiro, tem uma fórmula célebre: nas ciências físicas, três leis explicam 99% do comportamento, enquanto nas finanças 99 leis explicam 3% do comportamento.8
Mas a contrarrevolução não é para amanhã. O sucesso dos analistas advém de uma combinação de dois fatores: o interesse dos agentes financeiros e as promessas de alquimia. Mandelbrot, novamente: “Os financistas são muito ligados a essa teoria maravilhosamente simples, que se pode aprender em poucas semanas e depois viver dela a vida inteira”.9
A alquimia, desde a aurora dos tempos, seduz os espíritos. Por meio de equações e algoritmos ela transmuta o chumbo das dívidas podres em títulos de ouro com classificação AAA. Algumas ficções são úteis: a inovação financeira, como explicou Greenspan, cria valor. E o valor justifica os bônus…