Democracia e barbárie
No Brasil pequeno e mesquinho da casa-grande, todos são iguais perante a lei, mas uns são mais iguais do que outros. E num país racista como o nosso, esses outros, com os quais se rompe eticamente e os quais não se reconhece como iguais em humanidade, são mulheres e homens negros das periferias e favelas. É sobre eles que a barbárie é dirigida e legitimada
Dorothy Stang tinha feito seus votos de pobreza havia exatamente uma década quando, em 1966, aos 35 anos, resolveu trocar a Califórnia, nos Estados Unidos, pelo trabalho pastoral com pequenos agricultores em Coroatá, no Maranhão. Na década de 1970, ela foi viver na região do Xingu, no Pará, onde fundou a primeira escola de formação de professores, a Brasil Grande.
O Brasil grande que a missionária vislumbrava era o da justiça no campo, e assim ela se engajou por quase quarenta anos na luta dos trabalhadores por dignidade. História encerrada covardemente em 12 de fevereiro de 2005, quando o Brasil pequeno e mesquinho dos latifundiários, grileiros e madeireiros disparou seis tiros contra o Brasil grande da irmã Dorothy, que tombou brandindo a Bíblia numa erma estrada de barro a 53 quilômetros do município de Anapu.
O Brasil grande de Cícero Guedes, líder do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em Campos dos Goytacazes, no norte do Rio de Janeiro, também sangrou numa estrada de chão. Alto, negro e conhecido pela voz tonitruante de trovão, Cícero vivia no assentamento Zumbi dos Palmares, de onde organizava a luta por terra e liberdade dos trabalhadores que sobrevivem num município de profundas raízes escravocratas. Assim como o líder de Palmares, ele desafiou os novos cativeiros e senhores de engenho: acabou executado por um pistoleiro em 26 de janeiro de 2013.
O Brasil da vereadora Marielle Franco, do Psol, também é grande, e sua força vem dos becos, vielas e correnteza de gente que enche a Maré de vida. Mari era cria da favela e levou a marca da resistência e luta dos seus. Fez pré-vestibular comunitário, formou-se socióloga pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e tornou-se mestre em Administração Pública pela Universidade Federal Fluminense. Menos de um ano e meio após assumir o cargo de vereadora, para o qual se elegeu com mais de 45 mil votos, numa linda campanha calcada na defesa dos direitos humanos e na igualdade de gênero, foi executada com quatro tiros na cabeça na noite do dia 14 de março de 2018.
Essas histórias são emblemáticas. Não somente pelo drama e brutalidade que carregam em si mesmas, narrativa chocante da tragédia, mas pelo que as reações aos assassinatos revelam, tanto as belas como as hediondas. Por que o Brasil só descobre e se encanta por pessoas como Marielle após sua execução? Por que a trajetória de uma mulher negra que cresceu e viveu na Maré e se elegeu vereadora do Rio não chamou a atenção antes? Mari, Dorothy e Cícero precisaram ter negados seus direitos e sua vida para serem reconhecidos. Por quê?
Desde as jornadas de 2013 é comum falarmos sobre a crise de representatividade que expôs os primeiros sinais do definitivo esgotamento da Nova República, inaugurada sob os auspícios da redemocratização. Esse processo de desgaste se acelerou nos últimos anos com o golpe de 2015, a prisão do ex-presidente Lula e a tentativa de impossibilitar sua candidatura, momento agônico que expôs a razão de ser da longa farsa política, jurídica e midiática.
Os governos petistas, iniciados em 2002 com a eleição de Lula, são algozes e vítimas dessa história. Diante da possibilidade de ampliar o diálogo com a população e apostar numa agenda de reformas profundas do sistema democrático, fortalecendo a soberania popular e combatendo as desigualdades a partir das estruturas que a amparam, eles optaram por uma política de conciliação que se mostrou inviável num sistema corrompido. O governo Dilma acabou descartado pelos antigos aliados com os quais construíra uma governabilidade frágil baseada em interesses fisiológicos.
Entretanto, esse processo de deterioração da democracia e crescimento do autoritarismo necessita de uma análise mais profunda, que passa pela reflexão sobre o que representam os assassinatos de tantos defensores de direitos humanos, como Marielle, Dorothy e Cícero, e as reações às suas execuções. Esse cenário nos impõe uma questão central que não é nova nem pode ser explicada somente pela crise da Nova República: a construção do Estado brasileiro, desde o período colonial, e o progressivo estabelecimento de uma linha que divide democracia e barbárie.
Conheço defensores de direitos humanos de todo o mundo. Nos países onde o Estado é baseado nos princípios do bem-estar social, principalmente na Europa, as batalhas que os militantes travam são muito distintas das nossas. Elas são norteadas primordialmente por valores liberais, ligados à defesa de direitos individuais. No Brasil, consolidamos um Estado de controle social por meio da violência. Por isso, ele é o grande violador de direitos humanos, inclusive dos trabalhadores da segurança pública, e a nossa principal preocupação é a letalidade.
O Brasil tem profundas raízes escravocratas; carregamos sobre nossas costas o peso da vida de 11 milhões de africanos sequestrados. Fomos o grande centro da escravidão e o último país da América a aboli-la. Não superamos esse estigma com a redemocratização porque não conseguimos tratar as consequências do cativeiro forçado como um problema central para nossa democracia; aqui, questões de classe e raça não se distinguem.
No Brasil pequeno e mesquinho da casa-grande, todos são iguais perante a lei, mas uns são mais iguais do que outros. E num país racista como o nosso, esses outros, com os quais se rompe eticamente e os quais não se reconhece como iguais em humanidade, são as mulheres e os homens negros das periferias e favelas, as Marielles e os Cíceros. É sobre eles que a barbárie é dirigida e legitimada.
Por exemplo, por que é possível que alguém publique e tantas pessoas compartilhem nas redes sociais uma foto de um casal negro desconhecido afirmando que são Marielle e o traficante Marcinho VP? Simplesmente porque uma sociedade excludente desumaniza aqueles que deseja descartar, suprime sua identidade, individualidade e história. Os outros, no fim das contas, são todos iguais. E assim vemos o absurdo de uma foto de uma mulher que não é Marielle ser usada para difamá-la. Isso é barbárie.
Forjamos não só um Estado, mas um modelo de sociedade extremamente intolerante, violento e autoritário. Somos mais justiceiros do que justos, preferimos linchar a defender o cumprimento da lei. Por isso, a defesa dos direitos humanos é tão ameaçadora: ela contesta de forma contundente o cerne dos privilégios, põe em xeque as relações de poder e questiona os princípios que amparam a organização social. Marielle, Cícero e irmã Dorothy só foram amplamente conhecidos após o martírio. Quando vivos, eram ameaças.
Assim, quem afirma que lutar pelo respeito aos direitos humanos é meramente defender bandidos revela uma perspectiva escravocrata que enxerga no suplício e na coação o único método de mediação das demandas da cidadania. Para essas pessoas, defender direitos humanos é como proteger o escravo fujão, que não aceita as correntes que lhe são impostas.
Lutar pelos direitos humanos significa defender o conjunto da sociedade, a justiça social e o cumprimento das leis sem distinções. O assassinato de defensores de direitos humanos não nos divide entre direita e esquerda, mas entre barbárie e democracia, porque direita e esquerda cabem no regime democrático.
O grande desafio do século XXI é a superação da barbárie, porque não existirá democracia de fato enquanto houver violações de direitos humanos. Só avançaremos quando compreendermos que a luta pela cidadania não é ameaça, mas valor civilizatório essencial e eixo central de qualquer regime democrático.
A barbárie está na rua, nos parlamentos, está armada e baba ódio, mas do sangue derramado germinam as sementes do Brasil grande de Dorothy Stang, Marielle Franco e Cícero Guedes.
*Marcelo Freixo é deputado estadual (Psol-RJ).