Democracia é convivência
Uma convivência democrática requer o respeito à diferença e à diversidade; o reconhecimento de que temos direitos iguais e convivemos na mesma sociedade. Renato Janine Ribeiro, filósofo e professor da USP, discute, neste momento particular do Brasil, as razões de um ódio que parece infundadoSilvio Caccia Bava
LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL – Então, Renato, existiu uma dimensão de ódio na campanha eleitoral deste ano?
RENATO JANINE RIBEIRO – O ódio já vem de antes, mas eu acho que na campanha eleitoral ele esteve muito forte, a tal ponto que esta foi uma das piores, se não a pior campanha eleitoral que eu já vi. O nível de discussão esteve muito baixo. Foi a oposição que construiu um discurso de ódio contra o governo, e eu vejo pouca base social, vamos dizer, para esse ódio.
Eu não consigo entender de onde vem esse ódio. Este é um governo que, seja por que razão for, foi benéfico para, praticamente, toda a população brasileira. Ele conseguiu integrar e melhorar a condição de vida de um grande número de pobres e conseguiu reduzir a miséria, reduzir a pobreza. Não retirou coisas da classe média. A rigor, esse não foi um governo de redistribuição de renda no sentido de você tirar de uns para dar a outros. Não foi. Foi um governo que se valeu de um momento de prosperidade para poder dar aos mais pobres sem tirar dos mais ricos e, com isso, alavancar também o desenvolvimento. Então, diante disso, por que tanto ódio contra o governo? Eu acho que esse ódio todo é desmedido. Uma coisa muito fora de proporção e parece que nasceu da imprensa, de uma parte da imprensa, e atingiu muito uma parte da classe média, sobretudo em São Paulo.
DIPLOMATIQUE – É uma aposta na polarização? Porque tem muita gente que diz que PSDB e PT são parecidos do ponto de vista programático… qual é a diferença que demarca o espaço para permitir a vazão desse ódio?
RENATO – Eu acho que o PT é um partido social-democrata. Mas, o PSDB, em que pese o nome, nunca foi um partido social-democrata. Ele é um partido que não tem uma base operária, uma base trabalhista, algo do gênero. As lideranças dos dois partidos se opuseram à ditadura. Então, como explicar que a partir de certo momento o PSDB passe a fazer causa comum com um discurso que não é o dele?
Hoje, se a gente olha politicamente, é engraçado, o antigo PFL virou um braço do PSDB, e o antigo partido do Maluf virou um braço do PT. Quer dizer, os egressos da ditadura, os nostálgicos da ditadura, eles se dividiram entre os dois partidos dos quais a gente está falando. Nós temos, há 16 anos, uma concorrência em que os candidatos favoritos à presidência são pessoas que lutaram contra a ditadura, são pessoas que têm uma preocupação social, são pessoas com certas qualidades.
Agora, por que o ódio? Uma das hipóteses que eu tenho, se a gente pensar no sociólogo Pierre Bourdieu e no que ele diz sobre a disputa pela ocupação de espaços, é a seguinte: até 2002, você tinha relativamente poucos quadros do PT ou da esquerda que pudessem ocupar o aparelho do Estado. Em 1989, não tinha nenhum, tanto que o PT ficou com medo de vencer as eleições. Não teria quem colocar. Em 2002, já tinha. Tinha gente testada em Estados, em prefeituras, mas ainda era pouco. O que nós passamos a ter, de um tempo para cá, é um grande número de quadros, quer dizer, esses milhares de cargos de confiança tendem a formar as pessoas. O pessoal mais ineficiente é substituído, outros se adestram. Uma das hipóteses que eu tenho é a seguinte: para fazer um trabalho de desenvolvimento econômico, de organização do Estado dentro de certos parâmetros que não ofendem o capitalismo, você não tem só uma turma, agora você tem duas turmas. Então, pode ser uma disputa de querer os cargos de volta, algo desse gênero.
DIPLOMATIQUE – Mas não existe a regra de marketing eleitoral que, se você bater, você perde? Esse ódio lançado na campanha não se contrapõe à ideia do “Lulinha Paz e Amor”, que foi uma construção para atender a esse tipo de perfil?
RENATO – Veja, quando o Duda Mendonça formatou essa imagem do “Lulinha Paz e Amor”, disse que não criou essa imagem do vazio, que ele mostrou o Lula verdadeiro por trás daquele barbudo enraivecido. Mostrou uma pessoa de bom humor, alegre, de bem com a vida e, realmente, o Lula parece muito mais ele, desse jeito, que nas campanhas de 20 anos atrás. Ele parece ser um homem realmente feliz na posição dele e uma pessoa que tem bom humor com a vida. Você não pode impor a um candidato que ele seja quem não é.
O que nós tivemos nesta eleição? Tivemos uma candidata da qual a gente sabe relativamente pouco, porque ela nunca se expôs antes numa campanha eleitoral. E tivemos um candidato que tem fama de ser extremamente agressivo. Então, se eles forem quem são, fica complicado. O Serra, quanto mais ele for quem é, mais agressivo vai ser.
Eu escrevi um artigo dizendo que o Fernando Henrique e o Lula, em que pesem as suas diferenças, foram dois líderes, ou seja, duas pessoas capazes de ir além do seu partido. Como um partido, no Brasil, dificilmente tem mais que 20% da Câmara, você tem de ir muito além do seu partido. Muito, muito além. Então, os dois foram capazes de ter liderança, de falar para o cenário brasileiro como um todo, de ter boa comunicação.
Os dois candidatos favoritos à presidência foram apresentados, desde o começo, como gerentes. Quer dizer, a Dilma foi gerente do PAC, a pessoa que exerceu todo esse lado de competência, mas uma competência subordinada. O Serra é uma pessoa que tem fama de ser um bom gestor, não estou discutindo se é ou não. Isso é menos do que se espera de um Presidente da República.
DIPLOMATIQUE – A nossa sociedade está sendo pautada por regras de violência, cultiva-se a noção de que a cidade está insegura, que você está abandonado à própria sorte. Isso combina com o espírito de competitividade. Existe um caldo de cultura que está se formando não só no Brasil, mas também no Brasil, de uma intolerância e de um fundamentalismo que me impressionam. Isso tem alguma coisa a ver com este momento?
RENATO – O que acontece e é visível, para o bem o para o mal, é que a nossa sociedade, o nosso tempo, vive uma perda de regras. Há aspectos que a gente até aplaude, por exemplo, o fato de você não reprimir mais o homossexualismo e comportamentos que eram dissidentes ou penalizados. Mas também tem o fato de que muito da vida se tornou desrespeitoso. A ideia de que você tem maneiras de respeitar o outro foi ficando muito limitada.
Nós temos um grande paradoxo, por um lado uma sociedade que aceita a diferença mais que qualquer outra no passado. Nós temos o convívio de religiões diferentes entre si sem que você vá matar o outro. Você pode ter amigos católicos, protestantes, mulçumanos, judeus, sem estresse; 300, 400 anos atrás, a gente estaria se matando. Por outro lado, o respeito ao outro no dia a dia é muito limitado. Tenho a impressão que as pessoas estão muito na base da clonagem, sabe? As pessoas procuram pessoas parecidas com elas.
Eu esperei muito da internet no sentido de que ela fosse uma ágora. Tinha uma crença fabulosa em liberdade. Hoje, estou decepcionado porque vejo a repetição do mesmo, muita dificuldade com a discussão respeitosa. Onde eu vejo essa discussão é no Facebook. Porque você só lê ali dos “amigos”. E o foco do Facebook não é político. Então, quando você tem alguém defendendo o Serra, e uma pessoa contesta e defende a Dilma, são pessoas que se aceitaram como amigos; se um deles extrapolar, o outro bloqueia e corta. Mas a capacidade de discussão está muito limitada. A minha dúvida é em que medida isso é muito brasileiro, país de cultura política rala, e em que medida isso é mundial.
Há alguns anos, li um artigo interessante sobre a “brazilianization” dos Estados Unidos. Eu achei uma coisa curiosa porque falava que os EUA estavam numa situação em que você tem uma elite cultural mais liberal em termos de valores, o pessoal que vai ver concerto, vai a museu, quer dizer, tem mais tolerância em relação ao diferente; e você tem uma massa que se alimenta de fast-food, que tem uma formação cultural muito limitada. Esse corte na sociedade vem a ser um corte brasileiro que está pegando nos Estados Unidos.
DIPLOMATIQUE – Há um avanço enorme da igreja evangélica, o que isso significa em termos culturais?
RENATO – É, eu vejo uma posição de certa intolerância, certo fanatismo. Esse é um lado. Outro lado é o fato de que as igrejas evangélicas deram a uma parte significativa da população uma sensação de dignidade e incorporaram o valor do trabalho. São duas coisas importantes. O terno e a gravata fazem pessoas que moram em favela se sentir dignas. Serão terno e gravata baratos, assim, ao alcance do bolso deles, mas eles sentem que não estão saindo de casa molambentos. E o outro lado é que são pessoas que passaram a achar que realmente você ganha a vida trabalhando, e não por favor.
Eu tive a impressão que os evangélicos, num certo momento, estavam preocupados basicamente com duas agendas parlamentares. São até engraçadas. Uma, municipal, que era combater leis de limitação de silêncio. Então, eles faziam o possível para poder ter aqueles megafones terríveis. É horrível para quem mora perto. A outra era a questão do imposto de renda, para que não houvesse investigação sobre as lideranças deles. Hoje, parece que a agenda evangélica ou agenda fundamentalista está maior.
DIPLOMATIQUE – Se você acredita em Deus, ou não acredita em Deus, você sacrifica uma vida, ou não sacrifica uma vida, como é que essa agenda pode pautar uma eleição presidencial?
RENATO – Eu não sou fã do aborto, acho que ninguém é, mas eu pergunto se a gente não está dando mais importância ao papel fundamentalista do que ele efetivamente tem. Até porque, rigorosamente, acredito que os dois candidatos na disputa são ateus, ou se não forem ateus, são indiferentes em matéria religiosa. Os dois candidatos, provavelmente, concordam em não colocar na cadeia uma mulher que fez aborto. Os dois certamente acham que é muito importante a educação sexual para reduzir a gravidez indesejada e, portanto, que a maneira de enfrentar o aborto não é proibindo o aborto, mas é, sobretudo, evitando que ocorra uma gravidez indesejada. Os dois acham. Então, a manipulação política disso é totalmente absurda em termos práticos.
Tenho certeza que um plebiscito no Brasil derrotaria o direito ao aborto esmagadoramente. Aí entra a questão da incultura política brasileira, que é muito grande. Então, é muito fácil você introduzir um elemento não político, um elemento externo nisso.
Eu acho que a política no Brasil não é uma coisa que as pessoas gostam, não é uma coisa que as pessoas prezam. Você vê os franceses, os argentinos, os chilenos, os uruguaios, são povos altamente politizados. No Brasil, a política nunca teve esse encanto, esse interesse pela discussão política mais aprofundada. Nunca teve. A política é uma coisa mais confinada em certos grupos. Isso traz o lado ruim, as pessoas acabam tendo reações muito elementares, pouco refletidas.
Entendo que a política no Brasil passa fora da política. O Brasil foi capaz de mudanças comportamentais significativas, a igualdade entre os sexos avançou muito no Brasil sem nunca ter sido uma agenda tão política como foi na Europa. Então, nesse sentido, o fato de o Brasil não ser um país politizado não é necessariamente uma coisa ruim. A questão da igualdade dos negros, que é muito mais difícil porque são socialmente colocados numa posição subalterna, também vai aparecendo mais pelo lado comportamental que pelo lado partidário, político. Quando falo incultura política, quero me referir à educação, à capacidade de pensar, à capacidade de articular um raciocínio, sabe? A política brasileira tem um elemento hipócrita muito forte.
Se for verdade que uma parte tão grande da população passa pelo aborto – eu li outro dia que 20% das mulheres teriam abortado, eu acho que é exagero – é lógico que as pessoas têm familiares que acompanharam isso e que talvez tenham, em muitos casos, dado apoio, compreendido. Então, como é que se entende que o discurso da boca para fora seja outro? Como é que a gente pode ter um discurso tão diferente em público do da vida privada? O fato de um político que faz campanha contra a corrupção ser ele próprio corrupto não é tão raro no Brasil. E isso repercute muito na discussão política. Nesse assunto, o Brasil se dá ao luxo de ser hipócrita.
DIPLOMATIQUE – Você está dizendo que o brasileiro tem duas caras; na vida privada, ele tem uma; na vida pública, tem outra?
RENATO – É mais ou menos isso. Nós, brasileiros, queremos cada vez mais ser uma sociedade justa. Isso é o lado positivo. Se alguém fura a fila, hoje, provavelmente a reclamação será bem maior do que seria 20 anos atrás, quando talvez as pessoas tolerassem mais. Então, nós queremos uma sociedade justa, honesta, pautada por leis. Porém, ao mesmo tempo, se nós pudermos, individualmente, ter alguma vantagem em detrimento dessa regra, isso ainda existe. Existe muito. É como se a lei fosse boa desde que os outros a cumpram. A gente ainda não sente confiança no império da lei, isso não está consolidado no país.
A desigualdade social, hoje, está sendo muito menos aceita, só que a nossa sociedade não tem estrutura para suportar uma situação de igualdade social.
Há na sociedade um desejo muito grande por bens de consumo. Os bens de consumo são um dos pilares da incorporação, da inclusão social. Você tem as pessoas comprando liquidificador, geladeira, televisão, tudo isso conta. As pessoas estão comprando e estão felizes com isso. E o consumo não funciona tão bem junto com os valores éticos fundamentalistas. Não é fácil o contato. Minha esperança é que esse negócio fundamentalista não cresça.
Os Estados Unidos são o único país com alguma semelhança à situação que vivemos. Lá, o aborto é legal por decisão da Corte Suprema, o que é muito mais difícil de reverter que uma lei e, no entanto, é o único país em que, passados quase 40 anos dessa decisão, tem movimentos intensos contra o aborto. Quer dizer, é um país que consegue associar um desenvolvimento econômico espantoso com um atraso na cultura política também realmente espantoso. Que você tenha a extrema direita no governo da Áustria e na Itália, isso não alterou, por exemplo, a legislação sobre aborto ou divórcio nesses países. E nos Estados Unidos você tem essa coisa que é muito paradoxal.
DIPLOMATIQUE – Como você vê a questão da ética no governo Lula?
RENATO – Quanto ao governo Lula, uma das críticas sérias que podem ser feitas é no tocante à ética, o Lula não foi muito exigente. O Lula várias vezes veio a público para defender condutas como a do mensalão, como a do senador Sarney. E uma boa parte da população estava indignada. Eu acho que isso é um problema sério para o futuro do PT. Com o passar dos anos, o PT avançou na questão da justiça social, mas começou a haver certo descaso pela questão ética. Uma parte da classe média que parou de votar no PT passou a ter aversão pelo PT, não porque essa parte da classe média lê a Veja ou concorda com a Veja, ou passou para a direita. É porque ela se decepcionou muito com esse aspecto ético.
DIPLOMATIQUE – A nossa democracia avançou nessa dimensão ética?
RENATO – Eu acho que um dos problemas cruciais no Brasil, mesmo, é essa questão de uma cultura política limitada. Uma base da democracia é que você tem de aceitar a divergência. Por alguma razão, em todo lugar onde há democracia, sempre há dois candidatos para o mesmo posto, ou mais. É quase impossível você ter uma sociedade democrática e haver apenas um candidato a presidente da república ou um candidato a deputado ou a prefeito. É quase impossível.
As nossas instituições foram além, estão além da nossa cultura, estão mais avançadas que a nossa cultura. As nossas instituições estabeleceram todo o princípio que permite esta aceitação da divergência, mas ele não foi assimilado pela sociedade a tal ponto que as pessoas aceitem o seu adversário. A gente pode ficar até um pouco apavorado com a vitória do outro, porque ela pode representar mudanças significativas na nossa vida, no nosso dinheiro, na nossa conduta etc. Mas nós precisaríamos explorar mais a ideia de que temos divergências, mas que essas divergências são administráveis, que um partido pode ascender, e outro sair do poder e depois voltar, sem que isso seja uma tragédia. Na política, eu não posso ter inimigo. Provavelmente, nas especulações políticas que a gente faz, estamos todos errados. Parcialmente, não digo totalmente. Provavelmente, todos nós estamos errando em alguma coisa. Então, um pouco mais de diálogo seria muito bom.
Silvio Caccia Bava é diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil.