Democracia, Princípio 10 e Sustentabilidade
O Brasil sediará, pela primeira vez, na próxima semana uma rodada oficial de negociações deste acordo, que foi lançado em 2012, durante a RIO+20, e é baseado no Principio 10 da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, documento final da Eco92
Um novo impulso à democracia ambiental poderá acontecer a partir da construção de um acordo entre os países da América Latina e do Caribe sobre os direitos à participação, à informação e à justiça em questões ambientais .
O Brasil sediará, pela primeira vez, na próxima semana uma rodada oficial de negociações deste acordo, que foi lançado em 2012, durante a RIO+20, e é baseado no Principio 10 da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, documento final da Eco92.
As negociações, secretariadas pela CEPAL/ONU e que já contam com a participação de 23 países da região, poderão contribuir para a construção de uma nova governança ambiental para enfrentarmos a extensa lista de desafios socioambientais que precisam ser superados para garantirmos a conservação ambiental, a qualidade de vida e os direitos de todos, especialmente das populações mais vulneráveis.
Dentre os desafios da região e do Brasil estão a redução de emissões de gases do efeito estufa, a adaptação às já inevitáveis mudanças climáticas, a conservação das florestas e o combate ao desmatamento, a garantia de água em quantidade e qualidade, a compatibilização entre produção agrícola e conservação ambiental e a criação de sistemas de mobilidade urbana voltados ao transporte público e não motorizado.
As profundas e urgentes mudanças de rumo na forma como vivemos, produzimos, consumimos, nos movemos e utilizamos o solo, demandam pactos, confiança, legitimidade, ampla compreensão dos problemas, bom uso dos recursos públicos e inclusão daqueles que historicamente não estão nas mesas de decisão. Nada disso é integralmente possível sem a intensificação da participação da sociedade e total transparência das ações públicas e privadas que afetam a qualidade ambiental. Ou seja, não existem, nem existirão, avanços em direção à sustentabilidade socioambiental sem a democratização do Estado e dos processos decisórios.
Desde a redemocratização e tendo como marco a Constituição de 1988, o Brasil tem avançado na criação de leis, políticas e práticas voltadas para a garantia dos direitos de participação, de informação e de acesso à justiça.
Diferentes leis que instituem políticas nacionais de meio ambiente criam mecanismos para a participação dos cidadãos e suas organizações nas questões ambientais. Como exemplo, todos os estados e o distrito federal possuem conselhos de meio ambiente e conselhos de recursos hídricos e, na esfera local, 3784 municípios (68% do total) contam com seus conselhos ambientais . Além disso, o país possui 194 comitês de bacia hidrográfica, além de centenas de conselhos de unidades de conservação. A legislação ambiental brasileira determina a realização de audiências e consultas públicas para uma série de processos, incluindo a Elaboração de Planos de Saneamento Básico e de Mudanças Climáticas e a Apresentação e discussão de Estudos de Impacto Ambiental.
Em relação à transparência vale destacar a Lei de Acesso à Informação – LAI (Lei no 12.527/2011), que determina prazos e procedimentos para pedidos de informação e define que a transparência seja a regra e o sigilo a exceção, cabendo aos órgãos públicos divulgarem de forma proativa informações de interesse da sociedade, o que certamente inclui as informações ambientais e aquelas relativas ao uso dos recursos naturais. Em 2016 foi promulgado Decreto da Política de Dados Abertos, que define que os órgãos federais devam criar e implementar planos de abertura de suas bases de dados. Além disso, existe uma lei específica sobre acesso à informações ambientais (Lei no 10.650/2003) e diferentes outras leis ambientais que possuem a transparência e o acesso à informação como objetivos ou diretrizes e que criam obrigações de divulgação para os governos, tais como a criação de Sistemas de Informação (Recursos Hídricos, Saneamento e Florestas Públicas) e a divulgação de documentos específicos.
A existência formal desse conjunto de mecanismos não implica em seu pleno funcionamento ou em uma efetiva democracia ambiental. Apesar dos avanços legais e institucionais, ainda são frequentes os processos decisórios sobre projetos, políticas, obras de infraestrutura, entre outros, sem a devida transparência e participação da sociedade, ou sem contar com o efetivo acesso à justiça e o cumprimento da legislação ambiental. Tais lacunas resultam em processos de tomadas de decisões que causam danos e conflitos ambientais, afetando a qualidade ambiental e a população, em especial, os grupos mais vulneráveis.
Alguns exemplos ilustram esse déficit democrático e merecem destaque :
1) a ausência ou limitações da consulta prévia aos povos indígenas, como determinam a Constituição Federal e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, em grandes obras de infraestrutura, como as hidrelétricas na Amazônia.
2) A existência de uma única vaga para a sociedade civil no o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), órgão composto por catorze membros que têm a responsabilidade de definir as diretrizes da política energética brasileira. Mesmo essa única vaga não é preenchida sem autonomia de escolha da sociedade, mas por indicação do Presidente da República
3) Em 2014 e 2015 a região metropolitana do Estado de São Paulo passou por uma de suas maiores crises hídricas. Se a transparência é necessária em todas as etapas e áreas de políticas públicas, ela é ainda mais relevante em um momento de crise de um bem essencial para a vida para todos. Ao analisar a transparência de quatorze órgãos relacionados ao tema, a ONG Artigo19 conclui que apenas quatro apresentaram grau de transparência satisfatório e que muitos pedidos de informação não foram sequer respondidos .
Além disso, a conjuntura política atual coloca alguns dos avanços duramente conquistados sob forte ameaça, como a recusa do Governo Federal em divulgar a chamada “Lista suja do trabalho escravo”, a tentativa do Congresso Nacional em acabar com a obrigatoriedade de rotulagem de alimentos que contenham ingredientes transgênicos e de promover um desmonte do licenciamento ambiental, instrumento central para que a sociedade conheça em quais condições os órgãos ambientais autorizam atividades econômicas com potencial de causar impacto ambiental e para que possa participar desse processo.
Dessa forma, temos o desafio de aprimorar e consolidar os instrumentos de democracia ambiental no Brasil, evitar e resistir às tentativas de retrocesso, mas temos a chance também de criar novos instrumentos e práticas, especialmente aqueles que utilizam o potencial das tecnologias da informação e da comunicação para criar uma nova dinâmica de interação entre governo e sociedade e de acesso à informação.
Neste contexto, um acordo Latino Americano e Caribenho sobre o Principio 10 tem muito a contribuir. Além de reforçar as leis e os instrumentos já existentes, a versão preliminar do acordo regional que esta em negociação aponta para a exigência de novas normas e práticas que, ou não estão previstas no arcabouço legal dos países da região, ou quando estão, o fazem de forma pouco explicita e /ou fragmentada.
A proposta que esta em discussão prevê também a criação de uma instância regional, para a troca de experiências, de informações e de prestação de contas sobre a sua implementação.
Para que tudo isso aconteça a expectativa é de que a versão final do acordo seja robusta e legalmente vinculante, ou seja, que tenha força de lei para os países que o adotarem.
A rodada de negociações que acontecerá no Brasil é uma grande oportunidade de difundirmos as informações sobre a construção do acordo tanto para a população brasileira, quanto para os próprios órgãos públicos. É também uma oportunidade para que o governo brasileiro assuma uma postura mais ambiciosa em relação ao tema, o que inclui defender que o documento final seja legalmente vinculante.
Renato Pellegrini Morgado é coordenador de políticas públicas do IMAFLORA, mestre em Ciência Ambiental pela Universidade de São Paulo , especialista em democracia participativa, fellow em governo aberto pela OEA.