Derrubada de vetos à lei de terras indígenas pode afetar comércio internacional
Com que segurança um investidor aplicará seus recursos em obras de infraestrutura no Brasil se é possível que elas estejam deixando um rastro de desmatamento e violência contra comunidades indígenas?
No Estado da Bahia, no ano de 1627, o Frei Vicente de Salvador já escrevia:[1] “Há no Brasil grandíssimas matas de árvores agrestes, cedros, carvalhos, vinháticos, angelins, e outras não conhecidas em Espanha […] É o Brasil mais abastado de mantimentos que quantas terras há no mundo, porque nele se dão os mantimentos de todas as outras”. Desde seu período colonial, então, o Brasil se estabeleceu como um dos principais produtores mundiais de commodities agrícolas, posição alcançada pela conjunção de diversos fatores: tamanho continental, clima adequado e incorporação massiva de tecnologia na produção, o que nos faz ter ótimas produtividades em diversas culturas.

Dada a quantidade de terras já destinadas à agropecuária, apesar de muitas atualmente subutilizadas – algo como duas vezes o tamanho do Paraná, o segundo maior produtor nacional –, somos dos poucos países que conseguirá seguir expandindo sua produção nas próximas décadas sem a necessidade de novos desmatamentos: basta usar a tecnologia que já existe, atrair investimentos e melhorar a infraestrutura. Essa é uma vantagem competitiva que nos permitirá manter o protagonismo econômico num cenário em que vários países consumidores, preocupados com suas pegadas ecológicas, adotam políticas que restringem a entrada de produtos associados ao desmatamento. Esse é o caso do Reino Unido, da União Europeia e, provavelmente num futuro não tão remoto, a China.
Apesar do cenário teoricamente tranquilo, uma bomba-relógio prestes a ser armada pode mudar tudo. Trata-se da possibilidade de derrubada, pelo Congresso Nacional, dos vetos presidenciais feitos à Lei Federal nº 14.701/23. Conhecida popularmente como a lei do “marco temporal”, ela vai muito além do estabelecimento de limitações à demarcação de novas terras. Na realidade, ela altera profundamente as regras de proteção às mais de 560 terras indígenas já demarcadas no país, as quais guardam, atualmente, 24% do que ainda resta de Floresta Amazônica e são lar para mais de 260 povos com línguas, costumes e visões de mundo diferentes.
Se os vetos caírem, muita coisa vai mudar no sistema legal brasileiro. Por exemplo, passará a ser possível a instalação de grandes obras em terras indígenas sem a necessidade de consulta às comunidades afetadas, desde que sejam qualificadas pelo próprio governo como de “interesse nacional”. Esse é um enorme afrouxamento das regras hoje existentes, o que abrirá o caminho legal para a aprovação de obras mal planejadas e com imenso impacto socioambiental, como já ocorreu num passado não tão remoto. Com que segurança um investidor aplicará seus recursos em obras de infraestrutura no Brasil se é possível que elas estejam deixando um rastro de desmatamento e violência contra comunidades indígenas? Como atrair mais investimentos, numa situação de restrição fiscal, se aprovarmos regras que nos afastam das boas práticas internacionais?
Caso sejam derrubados os vetos, passará a ser autorizada a realização de “parcerias” entre indígenas e fazendeiros vizinhos para a instalação de grandes plantações em terras indígenas, legalizando acordos de arrendamento que hoje são proibidos e colocando nossas áreas mais bem protegidas diretamente na mira da expansão da fronteira agrícola. Se isso ocorrer, estima-se que o desmatamento em territórios indígenas, historicamente muito baixo, venha a explodir: seriam cerca de 55 milhões de hectares de florestas tombadas nos próximos trinta anos, um aumento de mais de 3.000% em relação ao que ocorreu nas últimas três décadas.
Se não conseguirmos manter os vetos, terras já demarcadas há décadas poderão ser simplesmente extintas caso o governo de plantão julgue que as comunidades que lá vivem já não mantêm os mesmos “traços culturais” de antigamente – como é o caso do plantio de soja em grandes extensões, como a própria lei incentiva. Com isso, pela primeira vez nosso ordenamento jurídico passaria a autorizar a redução de terras demarcadas, e ainda que tal retrocesso seja passível de ser questionado no Supremo Tribunal Federal, danos já terão sido consolidados nos territórios. Seria o começo de um retrocesso que ninguém sabe onde e quando vai parar.
Há muito em jogo nessa votação, que pode ocorrer já no dia 9 de novembro, mas pouco se tem falado disso. A possível derrubada dos vetos trará graves consequências de curto, médio e longo prazo. Ao promover um aumento exponencial do desmatamento, empurraremos a Floresta Amazônica para além do seu ponto de não retorno e afetaremos o regime de chuvas de praticamente todo o país, o que criará graves problemas para a produção agrícola, a geração hidrelétrica e o abastecimento de água nos grandes centros urbanos nas próximas décadas. Mais imediatamente, ao nos cristalizarmos como um país que destrói florestas e vidas indígenas para produzir commodities agrícolas, fecharemos, uma a uma, as portas do comércio internacional para nossos produtos. Não devemos seguir nesse caminho.
Raul do Valle é especialista em Políticas Públicas do WWF-Brasil; e Jacielle Neto é analista de Conservação do WWF-Brasil.
[1] SALVADOR, Frei Vicente de. História do Brasil: 1500-1627. Edições do Senado Federal – Vol. 131. Brasília.
O Congresso pode até derrubar os vetos, mas qualquer ação que vá contra o marco temporal será derrubado pelo STF.
Por conta disso, o Congresso está tramitação uma PEC para tirar poderes do STF. A numerosa bancada ruralista é perigosa.