Desafios para a realidade indígena no atual contexto brasileiro
No novo momento, com maior diálogo e participação indígena, velhas contradições reforçam a importância de se manter vivo o horizonte contra-hegemônico das lutas dos povos
“Não serão os governos de baixa democracia que resolverão os desafios maiores da maioria de nosso povo. E sabemos por experiência que a causa indígena é uma causa que atrapalha. Os povos indígenas são inimigos do sistema”.
Dom Pedro Casaldáliga, em mensagem para a XIX Assembleia Geral do Cimi, em outubro de 2011.
A luta e a resistência dos povos indígenas do Brasil, a partir de seus territórios, exibiu nestes últimos anos uma grande ousadia política diante dos desafios impostos pelo avanço das fronteiras econômicas do capital e pela erosão das instituições do Estado e da própria convivência no país.
O período entre 2019 e 2022, perturbado pela chegada ao governo de um projeto de poder de extrema-direita com apoio de militares, fundamentalistas e setores econômicos como o agronegócio, foi, sem dúvida, o momento de maior ofensiva aos direitos dos povos indígenas e de maior assédio a seus territórios e a suas formas de vida. A determinação do governo federal neste período de paralisar todos os processos de demarcação, abandonar as medidas de proteção territorial e avançar em uma desconstitucionalização dos direitos conquistados teve como resultado evidente o aumento da violência contra os povos indígenas.
É preciso destacar que desde a Constituição Federal de 1988, que reconheceu o direito originário das populações originárias às terras que tradicionalmente ocupam e reconheceu suas formas próprias de organização social, os povos indígenas tiveram que manter uma permanente mobilização para a concretização desses direitos. Os primeiros governos de Lula na década de 2000 e o governo de Dilma Rousseff, se por um lado significaram alguns avanços, por outro lado apresentaram também sérios entraves na garantia dos direitos territoriais indígenas. Isso se deve à intensificação do projeto desenvolvimentista agro-mineiro-exportador, que reforçou a posição subalterna do Brasil como fornecedor de bens primários e retomou a construção de grandes projetos de infraestrutura associados a interesses macroeconômicos.
Entretanto, é preciso fazer um destaque singular na análise do que tem acontecido nos últimos anos para compreender o processo desagregador que foi constituído. A partir de 2016, algo se rompeu no país, com uma deterioração e ataque persistente às instituições da democracia liberal e com rupturas sensíveis nos marcos de convivência. As relações sociais mais próximas – na vizinhança, nos locais de trabalho e até na própria família – fragmentaram-se e a sociedade perdeu capacidade de diálogo, de escuta e de afetos. A velocidade e a superficialidade das redes sociais como novo espaço estratégico de comunicação, informação e socialização foram instrumentalizadas para ofuscar a capacidade de discernir entre a realidade e a falácia, manipulando a subjetividade coletiva. Essa ruptura das ligações entre as pessoas e das pessoas com a realidade, que teve também suas expressões em outros lugares do mundo, não é um fenômeno espontâneo; ele é produzido, é resultado de um projeto que perseguia o avanço dos fundamentalismos, da extrema direita e do neoliberalismo, com retrocessos significativos na percepção de direitos fundamentais e na perspectiva ética da sociedade.
Na semântica da análise política, foi preciso retomar e ressignificar palavras, como golpe, genocídio ou fascismo, para conseguir explicar o que estava acontecendo. Longe da metáfora reducionista e desfocada de uma eventual polarização entre dois projetos políticos extremos, adotada pela grande mídia convencional, estávamos diante de um processo de ruptura e de necropolítica, expressão própria do fascismo, em cumplicidade com uma nova fase de expansão do capital sobre os territórios.
É nesse contexto extremamente desafiador para todo o país nos últimos cinco anos que os povos indígenas mantiveram uma intensa mobilização a partir de seus territórios e até em âmbito nacional e internacional, permeada por uma genuína criatividade política e força ética, configurando-se como o segmento social mais ativo e organizado na defesa dos direitos fundamentais e no enfrentamento do autoritarismo e da violência.
Da noite escura ao novo momento: oportunidades e encruzilhadas
As eleições de outubro de 2022 foram, provavelmente, as mais relevantes desde a redemocratização do país. O Congresso Nacional eleito nas urnas continua tendo uma composição conservadora e reacionária, com ampliação da base da direita e da extrema-direita. Por outro lado, as eleições resultaram na derrubada do fascismo das instituições do governo federal, abrindo-se um novo momento e um novo espaço que gerou muitas expectativas. O “novo”, nesse caso, deve ser entendido com relação à situação de ruptura ética do sentido da política e do Estado que foi vivenciada nos últimos anos; fora disso, o atual momento chega permeado ainda de velhas contradições.
Do ponto de vista da política indigenista, destaca-se a criação do Ministério dos Povos Indígenas (MPI), espaço inédito dentro do poder executivo federal. O MPI trouxe para si as principais atribuições em matéria de garantia de direitos territoriais dos povos indígenas e emerge, inicialmente, como um espaço importante de articulação e promoção dos direitos dos povos indígenas. A Funai, agora chamada Fundação Nacional dos Povos Indígenas e sob presidência indígena, propõe-se a recuperar a missão institucional de promover os direitos dos povos indígenas, tomando como prioridade os direitos a seus territórios; contudo, recebe como legado uma estrutura sucateada e um vasto passivo de demandas.
Junto ao MPI e à Funai, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) também iniciou um novo momento sob coordenação de representantes indígenas, após anos de militarização e desestruturação da saúde indígena e com permanentes recortes de orçamento. Essas mudanças ampliaram as formas de participação direta dos povos indígenas nos âmbitos de decisão e, ao mesmo tempo, modificaram o campo da relação dos povos indígenas com o Estado, o que traz oportunidades e desafios que precisarão ser abordados com lucidez.
Nesse contexto, cabe esperar como resultado um fortalecimento da política indigenista nos próximos anos, garantindo que seja pauta relevante no governo federal. Abre-se uma janela de quatro anos em que será possível avançar significativamente na garantia dos direitos dos povos. Contudo, para que a nova configuração do governo não fique só em uma narrativa simbólica, tão apreciada pela estética do poder, será imprescindível que estas instâncias disponham do apoio político, da autonomia operacional e da musculatura orçamentária necessárias para responder às demandas acumuladas e reprimidas, e este se apresenta como o primeiro grande desafio.
Será fundamental também tomar decisões urgentes sobre normativas inconstitucionais emitidas pela gestão anterior. Dentre estas, ainda aguardamos a revogação da Instrução Normativa nº 09, emitida pela Funai, que continua até hoje possibilitando a titulação por particulares de áreas reivindicadas, identificadas e declaradas como terras indígenas.
A violência contra os povos indígenas e seus territórios persiste desde os primeiros compassos do novo governo. Ameaças, tentativas de assassinato ou mortes aconteceram desde as primeiras semanas de janeiro em regiões dos estados de Maranhão, Bahia ou Mato Grosso do Sul. Essa realidade, junto com a situação na Terra Indígena (TI) Yanomami, amplamente denunciada há pelo menos quatro anos por organizações indígenas e indigenistas, ou a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709 que obriga a União, desde 2021, a retirar os invasores de sete TIs, ajudaram a dimensionar desde o início o tamanho dos desafios que MPI, Funai e Sesai serão obrigados a enfrentar de forma imediata.
Por outro lado, a política indigenista deve ser compreendida como uma política de governo e como uma política de Estado. Isto é: se de um lado a existência de um Ministério de Povos Indígenas possibilita um espaço importante de articulação política, seria um risco pensar que a política indigenista deve ficar isolada da atuação do conjunto do governo e do Estado. E, nesse sentido, os povos indígenas enfrentarão velhos desafios e contradições previsíveis num governo que se autodefine como “de frente ampla”, aglutinador de interesses divergentes.
Se a concentração de atores políticos diversos foi necessária para superar o fascismo no processo eleitoral, agora essa diversidade de perspectivas, às vezes antagônicas, provocará fraturas dentro da atuação do governo. E será nessas encruzilhadas de escolhas divergentes onde veremos a força política que foi pensada para o novo Ministério no conjunto do Executivo. Nestes primeiros meses, já temos alguns exemplos desses dilemas.[1]
Por fim, um terceiro desafio deverá ser enfrentado pelos povos indígenas e pelos representantes indígenas dentro do atual Executivo. O caráter “de frente ampla” do governo tende a buscar consensos sobre as possibilidades de “conciliação de interesses”. Eis aqui uma questão fundamental, pois coloca o Estado mais no papel de pretenso “mediador” de interesses antagônicos e menos como garantidor de direitos.
No que diz respeito aos povos indígenas, deve ficar claro desde o início que seus direitos territoriais não podem ser objeto de negociação ou de “arranjos jurídicos” e que sua efetiva garantia não pode sair do caminho estabelecido pela Constituição Federal de 1988 – a qual, além de caracterizar o direito territorial indígena como originário e suas terras como inalienáveis e intransferíveis, estabeleceu a nulidade dos atos de posse ou de exploração por terceiros e determinou as condições previstas para indenização de benfeitorias nos casos de ocupação de boa fé. Qualquer caminho fora dessa trilha, mais do que acertos conciliatórios ou caminhos de diálogo como às vezes são apresentados, caracterizaria flagrante inconstitucionalidade.
É preciso destacar nesse sentido que as principais demandas no novo contexto político continuam relacionadas com a questão territorial. Segundo dados coletados pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), em 2021 ainda existiam 871 territórios que não haviam concluído as fases do procedimento administrativo previsto para a efetiva demarcação e homologação. Dessas terras, pelo menos 598 eram reivindicações territoriais sobre as quais ainda não existe nenhuma providência administrativa iniciada; 143 territórios estavam aguardando a conclusão dos trabalhos de identificação e delimitação; 44 territórios já estavam identificados, mas aguardavam a portaria declaratória; e 73 TIs já tinham sido declaradas mas aguardavam a homologação por parte da Presidência da República.
Importante registrar o câmbio de atitude e os esforços nestes primeiros meses de governo no âmbito do MPI e da Funai. No dia 28 de abril, o presidente da República homologou seis terras indígenas, o que sinaliza para a possibilidade de uma mudança de ciclo após seis anos de paralisação absoluta nas demarcações, apesar das expectativas criadas previamente sobre um número maior de homologações nesses primeiros momentos do novo governo. A Funai aprovou catorze processos de constituição ou recriação de grupos de trabalho para identificação e delimitação de terras indígenas e encaminhou processos administrativos para assinatura de portaria declaratória. No entanto, esses esforços esbarram, como já foi dito, na necessidade de reconstruir uma instituição que foi arrasada durante os últimos anos e de atualizar a base de dados de que a Funai dispõe sobre os territórios reivindicados. É na solução a essas dificuldades, mais uma vez, que o governo deverá mostrar se efetivamente tem a intenção de responder ou não, com determinação, ao passivo de garantia de direitos que o Estado tem com os povos indígenas.
Para além dessas primeiras medidas, é fundamental compreender que o principal foco, que deverá reunir os esforços de todas as instâncias do governo, do Poder Judiciário e do movimento indígena e seus aliados, continua sendo a superação definitiva da falaciosa tese do marco temporal, que trava de forma estruturante a retomada da política de demarcação das terras indígenas. A retomada do julgamento no STF do Recurso Extraordinário 1.017.365, dotado de caráter de repercussão geral a partir de uma ação do estado de Santa Catarina contra os direitos territoriais do povo Xokleng, está prevista para o próximo dia 7 de junho. Esse julgamento deverá confirmar, definitivamente, a interpretação constitucional do direito dos povos indígenas às terras que tradicionalmente ocupam como um direito originário, conforme está expressamente registrado na Constituição de 1988.
A chamada tese do marco temporal é uma tese inconstitucional e de má fé, que legitima e anistia todo o processo histórico de esbulho dos territórios dos povos indígenas. O julgamento iniciou em junho de 2021, com um voto firme do relator, ministro Edson Fachin, e um voto contrário do ministro indicado pelo ex-presidente Bolsonaro, Kássio Nunes, e aguarda a retomada para que os outros ministros e ministras possam finalmente emitir seu voto. O adiamento do julgamento ocasionou nesses últimos anos a perpetuação da insegurança jurídica e o aumento da violência contra os povos, que mantêm sua plena confiança em que o STF cumprirá sua missão institucional de prezar pela correta interpretação da Constituição.
Entretanto, se por um lado cabe ao STF a retomada e conclusão do julgamento, por outro é responsabilidade do novo governo federal, dentro de suas atribuições, manifestar de forma irrestrita e determinada seu compromisso com o direito originário dos povos indígenas a seus territórios. Isso passa por avançar na política de demarcação e homologação e por revogar o Parecer 001/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU), que determina a adoção da tese do marco temporal por parte das instâncias do governo federal. E passa também, de forma evidente e estratégica, por modificar a posição da AGU no julgamento do marco temporal, uma vez que, na época de sua manifestação nos autos, o órgão defendeu a posição do governo anterior contra os direitos originários dos povos indígenas.
Na perspectiva do Bem Viver
O novo contexto político no país abre, efetivamente, possibilidades para avançar na garantia dos direitos dos povos indígenas. Trata-se de um momento de retomada do diálogo e de ampliação da participação dos povos indígenas na condução das políticas de Estado que lhes dizem respeito. Ao mesmo tempo, é também um momento permeado por contradições antigas, reavivadas em uma composição de governo de frente ampla e diante de um Congresso extremamente conservador. Nessa encruzilhada entre as novas configurações e os velhos gargalos residem os desafios atuais para os povos indígenas e seus aliados neste momento histórico do país.
Será absolutamente necessário que os povos indígenas e suas instâncias de organização, bem como seus aliados, mantenham uma profunda e sábia autonomia que lhes permita não confundir os espaços permanentes e próprios – como movimento – com os espaços transitórios de participação – como governo. A atuação de representantes indígenas dentro das estruturas de decisão do governo gera possibilidades novas e incorpora uma sensibilidade genuína dentro das instituições, desde que não caia na teia da “captura da rebeldia histórica” dos povos por parte da lógica instrumental do Estado.
Para concretizar o avanço na garantia dos direitos territoriais neste momento aparentemente propício, será imprescindível a continuidade da mobilização dos povos a partir de seus territórios, com a criatividade e a força política que sempre demonstraram. A mobilização será mais efetiva na medida em que consigam manter claro o foco e o objetivo estratégico do momento que, agora com maior transparência, passa pela superação definitiva da tese do marco temporal.
Por fim, é indispensável a compreensão de que a perspectiva ética e política da luta dos povos indígenas, desde o enfrentamento do projeto colonial até hoje, transcende a conjuntura breve de um determinado governo em um determinado momento histórico. Ele pode ser mediação importante para avançar, mas o horizonte da luta dos povos indígenas é, e sempre foi, um horizonte alternativo e contra-hegemônico: a perspectiva de uma sociedade plural, de uma democracia radical e de uma lógica do Bem Viver a partir da diversidade das formas de ser e de estar no mundo. Não perder essa perspectiva, principalmente no atual momento histórico aparentemente favorável, continuará sendo o principal motor de resistência dos povos indígenas.
Luis Ventura Fernández é missionário do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
[1] O Ministério de Transportes, por exemplo, já anunciou em janeiro que é obra prioritária para o novo governo a chamada Ferrogrão, quase 1.000 km de ferrovia que ligarão o município de Sinop, no Mato Grosso, com Miritituba, no Pará, a serviço do escoamento de grãos do agronegócio da região centro-oeste. Em viagem recente à China, o ministro mostrou sua satisfação pelos acordos conquistados para tal obra. No entanto o projeto enfrenta resistência de povos indígenas e atualmente está paralisado no STF, porque também pretende reduzir áreas de Unidades de Conservação. Por outro lado, o próprio vice-presidente da República retomou o discurso da importância da exploração de potássio na região do Baixo Rio Madeira, no Amazonas, que afetaria territórios tradicionais reivindicados por comunidades indígenas. Lembremos que esse mesmo discurso foi utilizado pelo ex-presidente Bolsonaro para conseguir no Congresso Nacional, em março de 2022, a aprovação do requerimento de urgência para o PL 191/2020, que pretendia, dentre outros, a regularização da mineração dentro dos territórios indígenas. Essas iniciativas, dentre outras, representam a continuidade de um modelo desenvolvimentista com forte atuação pública que já permeou os primeiros governos de Lula e irão trazer conflitos com os interesses dos povos indígenas. À continuidade desse modelo econômico, une-se agora a perspectiva do governo em avançar em iniciativas de mercantilização dos bens comuns e de fomento de mercados de carbono, que constituem falsas soluções à profunda crise climática provocada pelo modelo extrativo-produtivo do capital.