Desaparecidos políticos e o dever de não repetição

MEMÓRIA E JUSTIÇA

Desaparecidos políticos e o dever de não repetição

por Bruno Andreoli Vargas de Almeida Braga
1 de fevereiro de 2022
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A falta de medidas apropriadas para assegurar que perpetradores de violações de direitos humanos sejam julgados e devidamente punidos produz efeitos indesejáveis para o futuro, eis que chancela a incapacidade do Estado de prevenir tais que violações – como as que insistem em torturar a memória de um sem-número de brasileiros vitimados pela Ditadura Militar -, venham a se repetir no país

O exame completo e irrestrito da verdade constitui o único instrumento capaz de efetivar o direito à memória coletiva de um povo, em cuja fundação ético-jurídica reside o interesse na preservação da história de opressão do qual foi alvo como parte inquebrantável de seu patrimônio cultural.

O direito à verdade comporta duas dimensões, sendo a primeira, de cunho individual — e, pois, pertencente a cada brasileiro — de conhecer as circunstâncias em que circundaram graves violações de direitos humanos das quais foram vítimas pelas mãos de agentes do Estado ou de pessoas ou grupos políticos agindo sob autorização, apoio ou aquiescência.

Ao tempo da conclusão dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (2014), 82 milhões de brasileiros já haviam nascido sob o regime democrático e a eles, tanto quanto aos que viveram sob o regime militar (1964-1985), interessa o direito humano e o dever cívico de conhecer a história de seu país.

A segunda dimensão, portanto, alocada em sentido complementar, porém oposto ao plano individual do direito à verdade, difunde-se coletivamente, fortalecendo “as instituições democráticas em benefício, em um primeiro plano, [de] toda a sociedade” para que se preserve do esquecimento a memória popular sobre acontecimentos passados relativos ao seu ativo social, político e cultural.

Essas são as colocações introdutórias que demarcam a apresentação do Relatório da Comissão Nacional da Verdade, a qual, instalada por aproximadamente três anos (2012-2014), produziu extenso material elucidativo sobre as circunstâncias que levaram ao cometimento de tão graves violações a direitos nos ininterruptos anos de repressão militar.

Oferecido ao povo brasileiro com o firme propósito de que sua máquina de violência sistemática nunca mais se restitua ao poder na condição de política estatal, o trabalho realizado denodadamente pela Comissão constitui premissa fundante para a completa transição brasileira à plena democracia. Todavia, ao caminhar para o 34º ano do restabelecimento do Estado Democrático de Direito, o Brasil ainda conta com um passivo ético incomensurável e preocupante na luta pela reparação das sequelas sociais experimentadas por seus cidadãos.

Conforme levantamento realizado pela Comissão, dentre os 243 desaparecidos políticos do período ditatorial, apenas 33 tiveram seus restos mortais competentemente identificados. Inserem-se nessa cifra os casos de desaparecidos cujos locais de sepultamento foram descobertos por exclusiva iniciativa de particulares após anos, por vezes décadas, de sua abdução. De pouca serventia ao aclaramento dos fatos, a participação do Estado serviu, em realidade, para embaraçar investigações, sendo notório o esforço narrativo de agentes envolvidos nos desaparecimentos forçados para ocultar a verdade em torno de suas atrocidades.

A intransigente obstrução estatal forçou familiares a empregarem recursos próprios na incansável busca pelos restos mortais de seus entes. Embora precárias e extraoficiais, as investigações particulares ajudaram a revelar casos de exumações e reinumações de corpos, em valas clandestinas de diferentes regiões do país. É o caso, por exemplo, do Cemitério Dom Bosco, no bairro paulistano de Perus, que se tornou destino de, ao menos, 29 militantes políticos a partir de 1971. Em sua terceira parte, o relatório enumera ao menos seis unidades federativas que, além de São Paulo, aparelharam serviços funerários para receber corpos de militantes mortos sob a custódia ilegal do Estado (Goiás, Minas Gerais, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro e Tocantins).

Inauguração de placa de memória em homenagem às 31 vítimas da ditadura militar sepultadas no Cemitério Dom Bosco, em Perus (Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)

Além de orientarem o sepultamento de vítimas como indigentes, os tentáculos da repressão também alcançaram o sistema de justiça. Enquanto funcionários do Instituto Médico Legal eram cooptados a liberar corpos mais rapidamente para dificultar a procura de familiares, médicos legistas davam sua cota de contribuição ao regime, adulterando laudos de necrópsia para omitir as marcas de tortura que deram causa ao óbito de muitos opositores. Por sua vez, serviços cartorários, caminhando pari passu com agentes de segurança, lavravam atestados de óbito com nomes falsos, ao que serventuários da justiça voluntariamente respondiam negando a instauração de inquéritos para investigação de denúncias de desaparecimento que as falsificações sedimentavam, com vistas a obstruir a elucidação da verdade.

Considerando que o regime militar não possuía capital político suficiente para efetivar, às claras, a pena capital disposta no artigo 1º do Ato Institucional nº 14, fez-se necessário recorrer a diversas pirotecnias para justificar a morte de cativos. Discursos iniciais de atropelamento, casualidades em confrontos armados e suicídios deram lugar a protocolares notas oficiais negando o conhecimento sobre o paradeiro de desaparecidos. Às lacônicas recusas em admitir a abdução de oponentes políticos seguiram-se métodos cruéis para sua ocultação, tais como incineração de corpos e seu lançamento em rios após descaracterizações físicas de toda sorte, além dos expedientes fraudulentos acima narrados.

Consoante a definição constante da Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado (2010) e da Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas (1994), ambas ratificadas pelo Brasil, desaparecimento forçado caracteriza-se pela privação de liberdade da vítima, com a subsequente recusa em informar a si ou a seus familiares a causa de sua abdução ou destino, de maneira a privar-lhe da proteção da lei.

A parentes, a admissão de sua abdução e, em caso de execução, a informação sobre o destino de seus restos mortais, eram negados sob a forma de fabulações, tais como a de que o suspeito havia se autoexilado ou estava foragido. Tal modo de conduta tinha por objetivo precípuo tanto atemorizar as vítimas detidas quanto ocultar seu assassinato (em cativeiro e sob tortura) e desorientar lideranças políticas, desincentivando mobilizações contra o regime vigente.

Das vítimas de desaparecimento forçado, apenas 8% não tinham militância conhecida, dentro de um espectro em que se dispersavam ao menos 16 grupos de oposição política, tais como os mais célebres Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e Partido Comunista Brasileiro (PCB), Aliança Libertadora Nacional (ALN), Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e Movimento de Libertação Popular (Molipo).

A letargia judicial em concluir processos instaurados para o esclarecimento dos malfeitos do regime militar suscitou a provocação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, cujo relatório, exarado em 2009, recomendava ao Brasil o ajuste de condutas para progredir nas investigações sobre as circunstâncias envolvendo as maciças detenções ilegais, prisões arbitrárias, torturas, execuções extrajudiciais e desaparecimentos forçados sub-repticiamente praticados no período.

Não tendo sido acatada, em sua integralidade, a referida recomendação gerou automática remessa do caso à Corte Interamericana, a qual, por força de sua jurisdição contenciosa, lavrou sentença de cunho meritório, em Gomes Lund v. Brasil (2010), condenando o Brasil pelo assassinato de opositores políticos, dentre os quais o estudante Guilherme Gomes Lund que dá nome ao caso, e pela subsequente demora na investigação dos fatos que envolveram seu desaparecimento. O caso firmou ordem vinculante ao Estado para que concretizasse aparatos investigativos efetivos e céleres para esclarecimento dos crimes e localização dos restos mortais de suas vítimas. Dentre as obrigações de fazer e condenações de natureza pecuniária impostas, destacam-se os comandos para instauração de comissão específica para a apuração de violações a direitos humanos e a tipificação penal do delito de desaparecimento forçado.

Atendida com a promulgação da Lei Federal nº 12.528/2011, a criação da Comissão Nacional da Verdade veio a reboque de um esforço legislativo para contornar a anistia política em vigor. Ao tempo de sua instauração, encontravam-se vigente no País duas peças legislativas voltadas a atender a demanda individual por reparação: (i) o Decreto nº 2.081/1996, que fixou valores de indenização às famílias de indivíduos arrolados em seu único anexo como desaparecidos sob a custódia estatal e (ii) a Lei Federal nº 9.140/1995, que oficializou a morte de “pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades” tidas como subversivas à ordem política vigente. Tal lei ainda foi objeto de reforma legislativa em 2002, com a promulgação da Lei Federal nº 10.536/2002 que renovou o prazo prescricional para reclamar a inclusão de pessoas que, mesmo desaparecidas durante a Ditadura, ainda não figuravam na relação nominal da lei. Não obstante o conjunto de regras instituídas por referidas normatizações, a reparação pelos danos causados às vítimas do regime militar remanesce incompleta.

Desaparecidos políticos
Memorial da Resistência, em São Paulo (Foto: Divulgação)

Em primeiro lugar, o mero reconhecimento formal da morte de opositores políticos desaparecidos por força de lei não basta para fazer cessar o crime de desaparecimento forçado, cujos efeitos protraem-se no tempo até que os corpos sejam encontrados e seu assassinato seja esclarecido à família. Enquanto isto não ocorrer, estima-se que a frustração e indignação inerente ao desconhecimento da verdade viola continuamente a integridade pessoal de parentes, gerando-lhes sofrimento e angústia equivalentes à tortura psicológica pela impotência em fazer com que autoridades tragam à justiça as pessoas que, com autorização, apoio ou consentimento do Estado, atuaram com unidade de desígnios para ocultar o destino de seus entes queridos.

Nas precisas colocações do relatório, “o desaparecimento forçado de pessoas […] começa no momento em que se dá a privação da liberdade da vítima, […] e não cessa enquanto não se conhecer o verdadeiro paradeiro da pessoa desaparecida e efetivamente se certificar de sua identidade”.

Em segundo lugar, a concessão de indenização pecuniária a familiares de desaparecidos não basta para ressarcir a integralidade dos danos provocados por sua detenção clandestina e execução extrajudicial. Ao impedir a imputação criminal de autoridades envolvidas no cometimento de crimes atrozes, como sequestro e tortura, seguidos de execução extrajudicial e ocultação de cadáver, o Estado perpetua a impunidade em detrimento do direito de parentes m valerem-se da prestação jurisdicional para perseguir a condenação criminal dos responsáveis. Portanto, não obstante seu inegável serviço à luta pela verdade sobre as atrocidades ocorridas a partir de 1964, a reparação extrapatrimonial consistente no direito à verdade em sua dimensão individual não se exaure pela criação da Comissão, eis que o Artigo 3º da Lei 12.528 exclui do seu rol taxativo de competências a instrução de inquéritos para persecução penal dos criminosos envolvidos nos episódios de desaparecimento.

O embate em favor da anistia irrestrita resultou na edição da Lei Federal nº 6.683/1979, a qual impede agentes públicos de responderem judicialmente pelas graves violações de direitos humanos que cometeram. Segundo a Corte, em Gomes Lund, a Lei da Anistia é incompatível com os tratados internacionais ratificados pelo Brasil, posto que viola o direito à proteção judicial de vítimas e seus familiares contra desaparecimentos forçados “precisamente pela falta de investigação, persecução, captura, julgamento e punição dos responsáveis [por suas] violações continuadas e permanentes”.

Como dito, o crime de desaparecimento forçado é contínuo, imprescritível e inanistiável. Todavia, a sua tipificação como delito penal ainda se encontra pendente de cumprimento. Embora tenha ratificado tratados internacionais relativos ao tema,  o Brasil permanece em mora legislativa perante a comunidade internacional, desde o advento de sua condenação perante o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, tardando a adequar seu Direito interno para, tornando sem efeito o anistiamento dos autores de crimes cometidos sob os auspícios do regime militar e tipificando o crime de desaparecimento forçado, permitir a investigação criminal e a condenação de seus perpetradores.

A articulação nacional deflagrada pela Comissão foi seguida da instituição de órgãos temporários de função semelhante em nível estadual, aos quais compete, atualmente, continuar a elucidar as violações a direitos humanos cometidas em seus territórios federados. Tal esforço pela busca da verdade é acompanhado de dois Projetos de Lei (6.240/2013 e 5.215/2020), que propõem a alteração do Código Penal para que nele seja incluído o artigo 149-A, que tipifica o crime de desaparecimento forçado de pessoa. Embora em tramitação conjunta remetida ao Plenário da Câmara dos Deputados em 2020, tais projetos legislativos ainda não possuem previsão de julgamento.

Por seu turno, o debate para tornar imprescritíveis graves violações de direitos humanos cometidos de parte a parte durante o regime militar não possui qualquer indício de que será levado adiante, haja vista a rejeição, em 2018, pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, do Projeto de Lei nº 237/2013 que versava sobre o tema.

Enquanto este conjunto de peças legislativas não for promulgado, a fissura que representa a falta de elucidação sobre muitas das atrocidades cometidas no período militar permanecerá exposta como uma chaga social que, por quanto mais tempo restar exposta, mais prejudicial será para a memória de toda a nação brasileira. Isso porque o decurso do tempo não faz esmaecerem as obrigações a que se comprometeu o Estado Brasileiro na esfera internacional, o qual o vincula ao dever de promover o direito à memória coletiva de seus cidadãos e salvaguardar-lhes da ameaça que representa a impunidade de agentes de Estado. Ainda que sirva à reparação ética de ver reveladas as circunstâncias em torno de graves violações a liberdades fundamentais, a instituição per se de comissões para a busca da verdade não basta para a reparação histórica do povo brasileiro. É preciso que nos livremos dos arreios que impedem a completa prestação da atividade jurisdicional em relação a tema.

Se, por um lado, a concessão judicial de indenizações pecuniárias garante a reparação de privações econômicas causadas pelo regime militar, por outro, somente a apuração judicial de crimes cometidos por militares será capaz de franquear aos brasileiros o consolo, ainda que tardio, de ter alcançado justiça em nome de seus entes queridos. Portanto, a falta de medidas apropriadas para assegurar que perpetradores sejam julgados e devidamente punidos produz efeitos indesejáveis para o futuro, eis que chancela a incapacidade do Estado de prevenir que violações a direitos humanos, como as que insistem em torturar a memória de um sem-número de brasileiros vitimados pela Ditadura Militar, venham a se repetir no país.

 

Bruno Andreoli Vargas de Almeida Braga é advogado e mestrando em Direitos Humanos pela Queen Mary University of London, Inglaterra.

 

 



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