Impunidade dos crimes da ditadura abriu brechas para o retrocesso atual
Presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos fala sobre dificuldades para esclarecer as violações da ditadura, problemas enfrentados desde o impeachment de Dilma Rousseff e a necessidade de revisão da Lei de Anistia, além das expectativas da continuidade dos trabalhos a partir de 2019
Grande parte do apoio ao candidato Jair Bolsonaro (PSL) e seus seguidores é fruto de um pacto de esquecimento estabelecido durante a transição para a democracia no Brasil há quase trinta anos. É o que defende Eugênia Augusta Gonzaga, procuradora da República e presidente da Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP).
A comissão foi criada em 1995, durante a gestão de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), para encontrar mortos e desaparecidos políticos e colocar em prática medidas de reparação a familiares, vítimas e sobreviventes. Sua criação representa um marco no direito à verdade no país: foi a primeira vez que o Estado brasileiro reconheceu sua responsabilidade pelas graves violações cometidas durante a ditadura militar (1964-1985).
Eugênia Gonzaga se engajou no tema a partir do caso da vala comum de Perus. Até hoje, o episódio é o único do gênero que possui trabalhos avançados de identificação das vítimas. A prática de enterros em valas clandestinas foi repetida em outros pontos do país, como Rio de Janeiro e Recife, além de haver suspeitas de seu uso durante a Guerrilha do Araguaia.
Sem esclarecimentos e responsabilização, a visão sobre a história recente do país torna-se nebulosa: assim, parte do eleitorado que apoia o viés militar de Bolsonaro segue acreditando nas benesses do regime durante a ditadura militar no Brasil. “É importante dizer que nenhum governo desde a redemocratização foi ideal no âmbito de implementar uma justiça de transição, de estabelecer o pleno direito à memória. O Brasil segue tímido quanto à possibilidade de abrir seus arquivos”, afirma Gonzaga.
Em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil, a presidente da comissão falou também sobre dificuldades para esclarecer as violações da ditadura, problemas enfrentados desde o impeachment de Dilma Rousseff (PT), a necessidade de revisão da Lei de Anistia, além das expectativas da continuidade dos trabalhos a partir de 2019.
Qual o trabalho desempenhado pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP)?
Temos duas grandes frentes de atuação: descobrir a localização de mortos e desaparecidos políticos e implementar medidas de reparação a familiares, vítimas e sobreviventes em geral.
No âmbito das buscas, o principal caso é o da vala comum de Perus, no cemitério Dom Bosco, em São Paulo. Contamos com uma robusta frente de trabalho para a análise dos mais de mil restos mortais que foram encontrados na vala, exumada em 1990. Abrimos quase mil caixas, organizando o material coletado para separar as ossadas por indivíduos e sistematizar a coleta de material para futuras análises. Quatrocentas amostras já foram enviadas para análise em um trabalho muito árduo ao longo desses anos. É como buscar agulha em um palheiro.
Relatórios do Grupo de Trabalho de Perus (GTP) apontam a possibilidade de haver mais ossadas enterradas clandestinamente no mesmo cemitério, até hoje sem exumação. Por isso, defendemos a ampliação dos trabalhos, com novas escavações para esclarecer totalmente o caso.
Nos últimos anos fizemos diligências oficiais em locais onde supostamente houve ocultação de cadáveres pela ditadura. Passamos por diferentes estados, como Pará, Paraná, Pernambuco e Rio de Janeiro. No Rio, investigamos o chamado “caminho da morte”, que vincula diversas cidades ao aparelho de tortura e execuções. A Casa da Morte, em Petrópolis, é um exemplo do tipo de centro de repressão que tentamos revelar.
No âmbito de reparação a familiares e vítimas, demos atenção especial para o pagamento de indenizações àqueles que as requisitaram por meio da Comissão Especial.
Há outras formas de reparar danos, tal como a retificação de atestados de óbito das vítimas. Em geral, os documentos contêm descrições vagas, sem menção à responsabilidade do Estado por essas mortes. Nossa estimativa é que haja em torno de duzentas certidões a serem corrigidas. A mais recente aconteceu em setembro, no caso do assassinato do diplomata José Jobim, morto em 1979 em decorrência da perseguição política pela ditadura.
Por fim, é importante dizer que um dos nossos esforços atuais é ligado a uma medida jurídica que pode ajudar no esclarecimento do período. Trata-se da “reconstrução de autos”, uma ferramenta legal assegurada justamente para que informações importantes não sejam meramente apagadas. Em anos recentes, as Forças Armadas e o governo declararam que houve a destruição de inúmeros documentos, então temos trabalhado para garantir que haja a reconstituição desses arquivos. Boa parte dos pedidos relativos à reconstituição refere-se à repressão na Guerrilha do Araguaia.
Há episódios de valas clandestinas e comuns no país, que receberam militantes políticos mas também muitos desconhecidos. Em alguns casos, eram valas situadas em cemitérios ou em estruturas voltadas para receber corpos não identificados e também de indigentes. O que se pode dizer dessa violência, e também sobre essas vítimas?
O conceito de desaparecido político que temos no Brasil consiste, basicamente, em indivíduos que tenham se manifestado politicamente de modo contrário ao governo, por militância aberta ou clandestina, depois perseguidos e, posteriormente, desapareceram. É uma leitura muito “fechada” sobre o termo. Mas ao notarmos os casos das valas comuns, como em Perus e em outros cemitérios, a quantidade de ossadas e restos mortais é muito alta, incompatível com a lista de desaparecidos políticos que temos [nota: o relatório final da Comissão Nacional da Verdade apontou a ocorrência de pelo menos 434 assassinatos e desaparecimentos políticos durante a ditadura militar].
Acreditamos em uma leitura mais progressista do conceito, ou seja, que todas as pessoas enterradas nessas valas, ou todas aquelas que tiveram seus cadáveres ocultados, são vítimas de uma política de desaparecimento conduzida pelo regime militar.
A identificação das vítimas, infelizmente, ainda é muito ligada à questão dos militantes políticos. As comissões de familiares e de vítimas possuem um trabalho de militância consistente que nos ajuda nessa busca.
Sobre o restante das vítimas, aqueles completamente desconhecidos, há um fator complicador: a política desumana do Estado sobre o que se deve fazer com restos mortais não reclamados. Há cidades em que, passados três anos do enterro, se não houver manifestação de familiares ou reclamação dos restos mortais, as ossadas são destruídas. É um absurdo, um outro tipo de violência cometida pelo Estado contra as pessoas. Recomendamos a revisão das normas sobre o tema, para garantir aos desfavorecidos a dignidade após a morte – que hoje se mantém restrita àqueles que têm condições financeiras de garantir valas individuais.
De qualquer modo, é fato que a maioria das pessoas enterradas nessas valas clandestinas – criadas durante a ditadura militar – são, também, vítimas do Estado e do regime militar.
Desde o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, as condições de trabalho da Comissão têm piorado?
Institucionalmente e nos bastidores tivemos muito trabalho para convencer a gestão de Michel Temer (MDB) sobre quão importante é a manutenção dos trabalhos, convencê-los da necessidade de reparação às famílias das vítimas. Houve muita turbulência.
À época, houve breve interrupção do repasse de verbas para o laboratório CAAF/Unifesp, responsável pela análise dos restos mortais encontrados na vala comum de Perus.
O governo federal tem o poder de interferir muito em nossa continuidade. Em 2017, tivemos problemas no repasse de verbas e de emendas de orçamento participativo; ou seja, o Executivo pode atuar para nos desmobilizar.
Nossa verba anual gira em torno de R$ 1,5 milhão por ano. O recurso é utilizado para custear passagens e visitas de campo, o trabalho dos técnicos que trabalham na identificação e busca de desaparecidos políticos, e também a própria estrutura da comissão especial. Temos um orçamento garantido de pelo menos R$ 200 mil para 2019, que cobre os gastos mínimos. O resto fica por nossa conta. Para complementar a dotação inicial precisamos de emendas parlamentares para seguir o trabalho. Houve nomes importantes que se reelegeram para o Congresso, como a deputada Luiza Erundina (Psol/SP) e o deputado Paulo Pimenta (PT/RS), por exemplo. Mas tivemos baixas consideráveis, como no caso do PCdoB, cuja bancada diminuiu bastante; historicamente, é um partido que nos apoiou muito.
É importante esclarecer que a existência e a dotação orçamentária da comissão [e também da Comissão de Anistia, ligada ao Ministério da Justiça] é garantida pela lei 9.140/1995. Assim, vamos batalhar o quanto for necessário para seguir o trabalho, tão essencial para reparação e esclarecimento da história recente do país.
O resultado das eleições consolidou a vitória de Jair Bolsonaro (PSL), como também garantiu a expansão da “bancada da bala” e de congressistas militares. Como interpreta esse resultado, e as condições que o tornaram possível?
O Brasil errou ao entrar no regime democrático sem estabelecer uma justiça de transição, sem identificar e responsabilizar todos os culpados pelas graves violações contra opositores do regime militar e também a diversos inocentes.
Vejo que essa onda de apoio é fruto do pacto de esquecimento que o país estabeleceu ao retomar o sistema democrático de direito.
Para piorar, as Forças Armadas não abriram seus arquivos, além de afirmarem que muitos foram destruídos. Nem sequer é considerada a possibilidade de reconstituição dos autos, instrumento importante para resgatarmos os feitos e descobrirmos quem são os responsáveis pelas violações cometidas contra civis e opositores políticos na época da ditadura.
Quando a retomada da democracia se dá por uma via de esclarecimento e responsabilização dos culpados, o resultado é o fortalecimento da sociedade e dos mecanismos, institucionais e legais, que combatem a volta de regimes totalitários. Isso impede que novas violações sejam cometidas impunemente. Casos na América Latina, como no Chile e na Argentina, mostram a importância do direito à memória e à reparação.
Abrir os documentos, revisar a estrutura das instituições e responsabilizar os culpados são fatores que contribuem para uma visão mais esclarecida da sociedade em relação à sua própria história. São medidas que ajudam a combater visões equivocadas, que parte dos entusiastas da ditadura possui até hoje.
Tomemos a estrutura da polícia militar como exemplo: a própria Comissão Nacional da Verdade recomendou, em seu relatório final, que houvesse a desmilitarização das polícias em geral. O que aconteceu desde então? Houve recrudescimento em diversos casos, como o armamento de guardas municipais pelo país. A militarização das polícias traz consigo um sem número de normas que são nocivas à democracia, tais como: proibição do direito à greve; fortalecimento de políticas de repressão e combate; investimento em armamento pesado; durezas da hierarquia militar. Essas características não contribuem para resolvermos o problema da violência no Brasil.
É importante dizer que nenhum governo desde a redemocratização foi o ideal no âmbito de implementar uma justiça de transição e de estabelecer o pleno direito à memória. O Brasil segue tímido quanto à possibilidade de abrir seus arquivos, de esclarecer sua história recente: nossas conquistas e descobertas sempre vieram a duras custas, com poucas verbas, ações capitaneadas por familiares, com pouco apoio.
Desde 1989, nenhuma gestão apoiou integralmente as políticas de transição: todas tiveram cautela para não “desagradar” pessoas intimamente ligadas à repressão durante a ditadura; pessoas que mantiveram sua influência nos rumos do país, em muitos casos. Esse cenário resulta nas brechas para que graves retrocessos possam acontecer, como vemos atualmente.
Qual o papel do Superior Tribunal Federal nesse cenário? E a relevância da Lei de Anistia?
O Judiciário tem sido omisso e não respondeu à altura nesse tema, chancelando culpados por violações ao fazer uma leitura equivocada sobre a Lei de Anistia [de 1979].
Em 2010, o STF decidiu pela possibilidade de aplicação da lei de anistia em favor de agentes da repressão mesmo em processos, casos e inquéritos relativos aos chamados “crimes de sangue”. Desde então, mesmo após a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), o STF não reviu sua posição [nota: em 2011 o Brasil foi condenado por não investigar os crimes cometidos contra civis e militantes durante a Guerrilha do Araguaia; a sentença do chamado caso Gomes Lund foi decisiva para a criação da Comissão Nacional da Verdade]. Atualmente, há pelo menos 38 ações judiciais e 100 inquéritos criminais parados, impedidos de prosseguir por conta dessa decisão do Supremo. Há alguns anos tive reuniões com ministros da corte para debater sobre a necessidade de revisão da Lei de Anistia: me foi dito que o mérito não seria relatado. Isso é um problema grave para combater o esquecimento sobre o tema imposto à população.
*Caio Paes é jornalista.