Desde já
A maioria de nós não passou diretamente nem por uma guerra, nem por um golpe militar, nem por um toque de recolher. No entanto, no final de março, quase 3 bilhões de habitantes já estavam confinados, com frequência em condições extremamente difíceis. Aconteça o que acontecer nas próximas semanas, a crise do coronavírus terá constituído a primeira angústia planetária de nossa vida: isso não se esquece.
Uma vez superada essa tragédia, tudo começará de novo como antes? Durante trinta anos, cada crise alimentou uma esperança irracional de um retorno à razão, de uma tomada de consciência, de uma parada. Imaginamos o confinamento e depois a reversão de uma dinâmica sociopolítica da qual cada um teria enfim mensurado os impasses e as ameaças.1 A debandada da Bolsa de 1987 iria conter a irrupção das privatizações; as crises financeiras de 1997 e de 2007-2008 fariam cambalear a feliz globalização. Mas não foi o que aconteceu.
Os ataques do 11 de Setembro, por sua vez, provocaram reflexões críticas sobre a arrogância norte-americana e questões desoladas do tipo “Por que eles nos odeiam?”. Isso também não durou. Porque, mesmo quando caminha na direção certa, o movimento das ideias nunca é suficiente para travar as máquinas infernais. Os seres humanos sempre acabam se intrometendo. E é melhor então não depender dos governantes responsáveis pela catástrofe, mesmo que esses piromaníacos saibam fazer cena, tentar apagar o fogo, fingir que mudaram (ler artigo Até o próximo fim do mundo…). Especialmente quando – como a nossa – sua própria vida está em perigo.
A maioria de nós não passou diretamente nem por uma guerra, nem por um golpe militar, nem por um toque de recolher. No entanto, no final de março, quase 3 bilhões de habitantes já estavam confinados, com frequência em condições extremamente difíceis; a maioria não eram escritores observando a camélia em flor em torno de sua casa de campo. Aconteça o que acontecer nas próximas semanas, a crise do coronavírus terá constituído a primeira angústia planetária de nossa vida: isso não se esquece. Os líderes políticos são forçados a levar isso em conta, pelo menos parcialmente.
Assim, a União Europeia acaba de anunciar a “suspensão geral” de suas regras orçamentárias; o presidente Emmanuel Macron adiou uma reforma previdenciária que teria prejudicado o pessoal da saúde; o Congresso dos Estados Unidos votou o envio de um cheque para a maioria dos norte-americanos. Mas há pouco mais de dez anos, para salvar seu sistema em perigo, os liberais já haviam aceitado um aumento espetacular do endividamento público, a ampliação orçamentária, a nacionalização dos bancos, o restabelecimento parcial do controle dos capitais. Em seguida, a austeridade lhes permitiu retomar o que haviam deixado de lado, em um salve-se quem puder planetário, e mesmo realizar alguns “avanços”: os funcionários trabalhariam mais, por mais tempo, em condições de maior insegurança; “investidores” e pessoas que vivem de renda pagariam menos impostos. Por essa mudança radical, os gregos pagaram o mais alto tributo, já que seus hospitais públicos, em dificuldades financeiras e sem medicamentos, observaram o retorno de doenças que eles acreditavam ter desaparecido.
Assim, o que inicialmente sugere um caminho para Damasco poderia levar a uma “estratégia de choque”. Em 2001, uma hora após o ataque ao World Trade Center, a assessora de um ministro britânico havia enviado uma mensagem a altos funcionários de seu ministério: “Este é um dia muito bom para trazer de novo à baila e fazer passar discretamente todas as medidas que precisamos tomar”. Ela não pensava necessariamente nas restrições contínuas que seriam impostas às liberdades públicas sob o pretexto da luta contra o terrorismo, muito menos na Guerra do Iraque e nos inúmeros desastres que essa decisão anglo-americana iria provocar. Vinte anos depois, não é necessário ser poeta ou profeta para imaginar a “estratégia de choque” que está tomando forma.
Corolário do “Fique em casa” e do “distanciamento”, toda a nossa sociabilidade corre o risco de ser perturbada pela digitalização acelerada de nossas sociedades. A emergência de saúde tornará ainda mais urgente, ou completamente obsoleta, a questão de saber se ainda é possível viver sem a internet.2 Toda pessoa já deve carregar seus documentos com ela; em breve, um telefone celular não será apenas útil, mas requisitado para fins de controle. E, como as moedas e as notas constituem uma fonte potencial de contaminação, os cartões de banco, transformados em garantia de saúde pública, permitirão que cada compra seja listada, registrada, arquivada. “Crédito social” no estilo chinês ou “capitalismo de vigilância”, o recuo histórico do direito inalienável de não deixar vestígios de sua passagem quando não se transgride nenhuma lei se instala em nossa mente e em nossa vida sem encontrar outra reação que não seja uma irritação de adolescente imaturo. Antes do coronavírus, já era impossível pegar um trem sem revelar o estado civil; usar sua conta bancária on-line exigia tornar seu número de celular conhecido; andar por aí ao léu era certeza de estar sendo filmado. Com a crise da saúde, um novo passo foi dado. Em Paris, os drones monitoram as áreas cujo acesso é proibido; na Coreia do Sul, sensores alertam as autoridades quando a temperatura de um residente representa um perigo para a comunidade; na Polônia, as pessoas precisam escolher entre a instalação de um aplicativo de verificação de confinamento em seus celulares ou visitas sem aviso prévio de policiais a suas casas.3 Em tempos de catástrofe, tais dispositivos de monitoramento são aprovados pela população. Mas eles sempre sobrevivem às condições que lhes deram origem.
As turbulências econômicas que estão tomando forma também consolidam um universo em que as liberdades estão se estreitando. Para evitar qualquer contaminação, milhões de lojas de alimentos, cafés, cinemas e livrarias fecharam em todo o mundo. Eles não dispõem de um serviço de entrega em domicílio e não têm a chance de vender conteúdos virtuais. Após a crise, quantos deles serão reabertos e em que estado? Em compensação, os negócios serão melhores para gigantes da distribuição como a Amazon, que se prepara para criar centenas de milhares de empregos para motoristas e gerentes de manutenção, ou o Walmart, que anuncia o recrutamento adicional de 150 mil “associados”. Quem melhor que eles para conhecer nossos gostos e nossas escolhas? Nesse sentido, a crise do coronavírus poderia constituir um ensaio geral que prefigura a dissolução dos últimos focos de resistência ao capitalismo digital e o advento de uma sociedade sem contato.4
A menos que… A menos que vozes, gestos, partidos, povos e Estados perturbem esse script escrito com antecedência. É comum ouvir: “Política não é da minha conta”. Até o dia em que todos entenderem que foram as escolhas políticas que forçaram os médicos a separar os pacientes que eles tentarão salvar daqueles que devem resolver sacrificar. Estamos nesse ponto. Isso é ainda mais verdadeiro nos países da Europa central, nos Bálcãs e na África, que há anos veem seu pessoal médico emigrar para regiões menos ameaçadas ou para empregos mais bem remunerados. Novamente, não se tratava de escolhas ditadas pelas leis da natureza. Hoje, sem dúvida, entendemos melhor. O confinamento também é um momento em que todo mundo para e pensa…
Com a preocupação de agir. Desde já. Porque, ao contrário do que o presidente francês sugeriu, não é mais uma questão de “questionar o modelo de desenvolvimento com o qual nosso mundo se comprometeu”. A resposta é conhecida: é preciso alterá-lo. Desde já. E, já que “delegar nossa proteção a outras pessoas é loucura”, deixemos então de sofrer dependências estratégicas para preservar um “mercado livre e sem distorções”. Macron anunciou “decisões de ruptura”, mas ele nunca tomará aquelas que são necessárias. Não apenas a suspensão temporária, mas a denúncia definitiva dos tratados europeus e dos acordos de livre-comércio que sacrificaram as soberanias nacionais e erigiram a concorrência como valor absoluto. Desde já. A partir de agora, todo mundo sabe o que custa confiar a cadeias de suprimentos espalhadas pelo mundo e operando sem estoques a tarefa de abastecer um país em dificuldades com milhões de máscaras de saúde e produtos farmacêuticos dos quais depende a vida de seus doentes, de suas equipes médicas, de seus entregadores, de seus operadores de caixa. Todo mundo também sabe quanto custa para o planeta ter sofrido desmatamentos, deslocalizações, acúmulo de dejetos, mobilidade permanente – Paris recebe 38 milhões de turistas todos os anos, mais de dezessete vezes seu número de habitantes, e se orgulha publicamente disso.
O protecionismo, a ecologia, a justiça social e a saúde estão agora ligados. Eles constituem os elementos-chave de uma coalizão política anticapitalista poderosa o suficiente para impor, desde já, um programa de ruptura.
Serge Halimi é diretor do Le Monde Diplomatique.
1 Ler Serge Halimi, “Le naufrage des dogmes libéraux” [O naufrágio dos dogmas liberais], e Frédéric Lordon, “Quand Wall Street est devenu socialiste” [Quando Wall Street se tornou socialista], Le Monde Diplomatique, respectivamente, out. 1998 e out. 2008.
2 Ler Julien Brygo, “Peut-on encore vivre sans Internet?” [Ainda podemos viver sem a internet?], Le Monde Diplomatique, ago. 2020.
3 Cf. Samuel Kahn, “Les Polonais en quarantaine doivent se prendre en selfie pour prouver qu’ils sont chez eux” [Os poloneses em quarentena devem tirar selfies para provar que estão em casa], Le Figaro, 24 mar. 2020.
4 Craig Timberg, Drew Harwell, Laura Reiley e Abha Bhattarai, “The new coronavirus economy: A gigantic experiment reshaping how we work and live” [A nova economia do coronavírus: um experimento gigantesco que está remodelando a forma como trabalhamos e vivemos], The Washington Post, 22 mar. 2020.